“O fascismo […] já passou e, se necessário, voltará tranquilamente a passar por cima do corpo decomposto da Deusa Liberdade.” Benito Mussolini

 

A França vem de ganhar uma nova e merecida edição de “O medo à liberdade”, de Erich Fromm. A obra é de 1941, e seu autor, o conhecido teórico e psicanalista alemão, dispensa apresentações, até porque já foi muito lido e apreciado no Brasil. Salvo engano, a última edição brasileira desse livro foi do início da década de 1980. Penso que algum editor nacional deveria seguir os passos franceses e também brindar os brasileiros com uma nova edição de “O medo à liberdade”, de preferência, ressalto, com um estudo introdutório que analise e indique aos nossos leitores a atualidade do livro. É escusado dizer que a volta de um livro às prateleiras é quase sempre um claro sinal de seu valor intelectual e de sua pertinência ao debate público.

Não por acaso, a editora francesa (Belles Lettres) voltou a essa obra de Fromm, de resto considerada como uma das três melhores do prolífico pensador freudiano. Explica-se: num tempo como o nosso, em que a democracia volta a ser ameaçada e em que o autoritarismo, populista ou não, assombra dezenas de países, a análise psicossocial de Fromm, tão engenhosa quanto plausível, joga uma luz certeira em meio a sombras angustiantes.

Ao mirar a escalada de Hitler, Fromm vai logo ao ponto ao contrariar a opinião de muitos de que a população alemã era tão somente “uma vítima involuntária”. Nada disso, diz ele, “milhões de pessoas na Alemanha estavam ansiosas de entregar sua liberdade assim como seus pais o estiveram ao combater por ela”. Assim, cai por terra a ilusão de que apenas o líder por si só, com astúcias e força, se apodera do aparelho do Estado para minar a democracia.

Com habilidade didática e força comunicativa, Fromm vai nos mostrar, no que diz respeito à relação com a liberdade, como a filogênese segue a ontogênese, como a história do indivíduo serve de parâmetro a populações e países. Recorda como dialeticamente liberdade e submissão estão entrelaçadas e como não vivemos sem angústia o encontro com a própria liberdade. A submissão, bem entendido, fazendo com que se possa suportar a insignificância e a incapacidade para a autoconfiança. Nesse ponto, Fromm faz um amplo excurso histórico, mostrando como a Reforma Protestante, ao trazer para o indivíduo, uma libertação da autoridade da Igreja Católica vai lhe infundir a angústia de um descentramento que a contemporaneidade apenas agrava. Até o sentido do tempo, assinala o autor, se transformou desde o fim da Idade Média. Enfim, o homem moderno é desamparado por excelência. Hostilidade e ressentimento vão nascendo com o próprio capitalismo, pois este contribui para “o aumento da liberdade positiva, o crescimento de um eu ativo, crítico e responsável”. Paradoxalmente, a contrapartida disso será tornar o indivíduo mais só, tomado de um sentimento de insignificância e impotência. Para o homem moderno, a liberdade adquire assim um duplo e paradoxal significado. Freud, por seu turno, já antecipara o problema: “A maioria das pessoas não quer realmente a liberdade, pois liberdade envolve responsabilidade, e a maioria das pessoas tem medo de responsabilidade”.

É então que, com mais ênfase, entra em cena o Fromm psicólogo social, que verá nos conceitos de sadismo, masoquismo e pulsão de morte as raízes da corrosão da democracia, regime em que as classes médias, desencantadas e ressentidas, tornaram-se presas fáceis do nazifascismo. Por sua vez, a população, numa sociedade de massas, mais do que nunca, está repleta de indivíduos autômatos, prontos a aceitar facilmente o domínio de regimes liberticidas. Mas a fonte do fascismo, como escreveu Lewis Mumford, está na própria alma humana (por isso, mais tarde, Umberto Eco chamará o fascismo de “eterno”). A ação política de Hitler reflete, segundo Fromm, dois grandes traços do caráter sadomasoquista: o amor ao poderoso e o ódio ao fraco. Enfim, sintetiza: “A função de uma ideologia e prática autoritárias pode comparar-se à função dos sintomas neuróticos. Estes resultam de condições psicológicas insuportáveis e, ao mesmo tempo, oferecem uma solução que torna a vida possível”.

No caso da sociedade brasileira, foi Gilberto Freyre quem madrugou em observar as relações sadomasoquistas e a vida política e social. Em “Casa-grande & senzala” (1933), várias vezes se debruça sobre o tema, flagrando-o em nossos costumes, em meio aos quais, destaque-se, a perversão há muito foi naturalizada. Não obstante seu habitual otimismo, Freyre não foi a ponto, como muita gente pensa, de edulcorar a realidade cruel que nos legou a escravidão. À certa altura de sua obra-prima, reflete:

“Cremos surpreendê-los [o sadismo e o masoquismo] em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do chamado ‘marechal de ferro’”.

Outrora, tivemos um marechal de ferro, Floriano Peixoto, hoje temos um capitão enferrujado… O Brasil não ultrapassa a Idade do Ferro…

Daí que ainda hoje exista entre nós um fascismo que não ousa dizer seu nome. Constata-se, assim, que há um claro medo à liberdade e que, infelizmente, a própria liberdade é vista como um luxo para poucos. Como uma condição patológica de família, nosso fascismo de tempos em tempos volta a se manifestar politicamente, trazendo em seu bojo, como é o caso dos dias atuais, a recusa da modernidade, o irracionalismo e a violência. O “não” à liberdade tem nomes: medo e neurose, e o fascismo, disfarçado de autoridade, mora ao lado.