João Rego

Cobra.

Cobra.

A mãe de Jânio tinha um olho de vidro. Todas as vezes que ia brincar com ele em sua casa, ficava meio arredio quando ela se aproximava de mim. A casa ficava dentro da Vazante em um lugar privilegiado, um ponto elevado olhando a curva do Rio Ipojuca, tendo ao lado um frondoso pé de umbu cajá, de um tipo raro de umbu, meio rugoso, de forma irregular, porém doce e ácido ao mesmo tempo — assim como as pessoas e a vida.

Seu pai —embora venha sua imagem perfeita em minha memória, é impossível recordar seu nome — era um tipo de xamã do agreste, um curador-de-cobra, a quem todos chamavam quando mordidos ou para ajudar a lidar com as bichas, quando encontradas. Uma vez, eu estava com papai na Olaria da Vazante. Ele havia ido transportar um “carrego” de tijolos na camionete cinza Willys e estávamos esperando o pessoal carregá-la, quando um deles encontrou duas cobras enroscadas brigando — lembro que eram enormes e uma delas era preta. Chama-se correndo o pai de Jânio.

Lá vem ele, baixo, moreno, tinha um biotipo — destaco agora— muito parecido com um indiano. Aliás, toda a família era muito parecida com os indianos: a mãe, Jânio e as irmãs. Se transportássemos todos para o interior da Índia, numa daquelas vilas a beira do Ganges, ninguém iria notar que eram do agreste de Pernambuco. Ele chega com naturalidade e total confiança em seu poder sobrenatural— diz-se que são imunes a qualquer tipo de veneno de cobra— mete a mão no meio dos tijolos e pega as duas cobras, ainda enroscadas uma na outra, em feroz embate. Separa uma delas, e a outra, pegando pelo rabo e, rodando no ar— zum, zum, zum — estoura sua cabeça em uma pedra. A primeira, deixara ir, explicando que era cobra do bem, sem veneno, portanto sem possibilidade de fazer mal a um homem ou animal. Para minha surpresa, comecei a entender que a dicotomia entre bem e mal existia, aos olhos do sábio xamã, também na natureza e não apenas entre os homens.

Aos sábados, quando o pai de Jânio ia para a cidade receber seus proventos, ficava sentado num banco de madeira na frente do escritório de meu pai. Sempre tranquilo e contido no falar, levava consigo uma pequena e venenosa cobra coral que ficava carinhosamente enroscada em seu braço. De vez em quando alisava a sua colorida cabeça, aí era que a bichinha se aninhava nele, como se estivesse pedindo mais carinho.

Seu Natalício!!! Era esse seu nome! Finalmente, depois de tanto remexer nas minhas memórias com este texto, o nome me veio à mente.

Foi Jânio, seu filho, quem me ensinou que em nossas caçadas de baleadeiras podíamos matar todos os passarinhos, menos dois: um, porque era impuro; outro, porque era sagrado. O primeiro, o Anu-preto, pássaro de médio porte, que comia os carrapatos nos lombos dos bois, aranha e tudo que era bicho peçonhento. Por isso, era considerado impuro para o consumo humano. O outro era a Lavadeira, um passarinho branco com listras pretas nas asas e que, como se alimentava de pequenos peixes, vivia sempre na beira do rio, entre as baronesas. Jânio, que tinha a minha idade, me dizia com seriedade e a convicção ingênua e bela daqueles que têm fé:

— Elas estão sempre nos rios ou nos lagos por que estão lavando o manto sagrado de Nossa Senhora, mãe de Jesus.

Me esforçava para ver aquilo que ele dizia, talvez até sentir, mas em vão, não conseguia ver além de um simples pássaro na beira do rio. Este é o destino dos céticos, uma natureza nua e crua sem fé nem fantasias.

Julho, 2014

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com