Sentir conexão com o brasileiro condenado à morte em Jacarta? Assim, uma ligação pessoal, um pensamento dirigido a ele, sem compaixão, uma curiosidade sobre os momentos finais? Que lembranças teve em seus últimos dias? Viveu-os como últimos? Ou terá sido presa daquele inconformismo burro, a frustração infantil ilimitada do brinquedo partido dominando a infância, cujos doces momentos, por isso mesmo, perdeu? Deveria ter apreciado a comida da prisão, procurando identificar os ingredientes mais usados: guardar a memória de uma vida no sabor do condimento, arroz, o nasi goreng, ter-lhe-ão servido? sagu, batata-doce, mandioca, santen, gengibre, folha de lima, um docinho de banana que lá chamam pisang goreng, tudo com muito cominho, coentro, açafrão. O cheiro dos lençóis brancos e duros à custa de goma, a roupa prisional, a cama dura como a terra da favela carioca. Alguma amizade cultivada nos longos anos de cadeia, a quem possa ter sussurrado desejos, sonhos, impedimentos, saudade de uma pessoa qualquer, talvez flutue no morro uma palavra dita na cela e a poesia assim extraditada, fluindo, perdida, seja o último elo com a vida, ainda quando a pessoa qualquer não saiba e possa até ouvir, mas sem atentar para a origem, os lábios de um condenado têm o selo da eternidade, pois o que é a eternidade, senão o sentimento que produzimos na vida um momentinho antes da morte? Não o terá lido, na certa, cairia bem, é isto, um grande poema, épico, romântico, uma ode ou uma elegia? não sei, que poema escolheria eu, condenado à morte sem sentença, quais palavras me lembraria o sentimento de morte iminente, vindo, dobrando a parede no ombro de um soldado, ah, jamais pensaria em poesia ante o fuzil, mas ele pensou, ele, que morria, tinha esperança de vida, ainda que depois da morte, nada pior do que a esperança frustrada, já nos anima o purgatório, “na hora em que lais tristes começava ao nascer da manhã a andorinha, que talvez gritos de antes recordava, e a peregrina mente nossa, asinha, menos da carne e mais do pensar presa, é nas suas visões quase adivinha, em sonhos pareceu-me ver que acesa pendia águia do céu com penas de ouro, de asas abertas e a abaixar retesa; e pareceu-me estar naquele foro lá onde os seus deixara Ganimede”. Pobre coitado traficante tolo, acaso terá conhecido a melodia das palavras? Em muitas pessoas, condoídas, percebi a vida transcorrendo na expectativa de que não fuzilassem o brasileiro na Indonésia. Esse rio melódico é a conexão. Quanto a ele, o homem, sem dramas, esperemos que o último pensamento se tenha dirigido à terra natal, compreendendo, atônito, infante frustrado, enquanto a bala cumpria a trajetória fatal, que bem os mensaleiros e petroleiros poderiam estar naquele patíbulo. E não pensaríamos todos nós, ainda quando abjeta nos pareça a pena de morte
A conexão – João Humberto Martorelli
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Belo texto. E a ilustração do texto é maravilhosa.
Eu fui ler o texto de João Humberto Martorelli a partir de uma conversa com Teresa Sales em que comentei que achava fantásticas as ilustrações da revista Será? Eu não sabia quem fazia as escolhas. Em especial, amei a ilustração de Sócrates para um texto meu sobre um certo professor. Aí Teresa Sales disse que eu devia olhar a ilustração para esse texto de Martorelli. Seria muito limitado dizer que A Conexão trata da pena de morte para o traficante brasileiro na Indonésia. É muito mais que isso, muito mais complicado. O texto é mais humano e ao mesmo tempo mais político. Concordo totalmente, o texto é forte, sem ser violento, uma façanha. E a ilustração é realmente maravilhosa. Perfeita. Claro que pensei em Federico Garcia Lorca.
bj
Realmente uma façanha a ausência de violência num texto tão forte. E vai muito além da questão da pena de morte .E a ilustração traduz com perfeição a”conexão”…