Helga Hoffmann

Luto, lágrimas, um minuto de silêncio. Alguém pôs um lápis entre as flores, pelo cartunista. Fazia bons desenhos.

Milhares se reuniram nesta manhã triste de quinta-feira, em diversas cidades da França, para homenagear os 12 que morreram assassinados em Paris, no atentado terrorista contra o semanário satírico Charlie Hebdo. Muitos carregavam um cartaz Je suis Charlie (Eu sou Charlie), inclusive gente que nunca na vida tinha visto esse jornal. Em alguns lugares se pregaram grandes fotos do chefe de redação assassinado, Charb, e dos outros jornalistas, Wolinski, Cabu, Maris, e outros. Todos se declaravam unidos, apesar de diferenças de opinião, em nome da liberdade de expressão. Estamos no século XXI, com toda a parafernália da comunicação, e que a liberdade de expressão ainda cobre seus mártires provoca espanto. Mas assim foram homenageados os jornalistas e colaboradores mortos durante a reunião de pauta do Charlie Hebdo: mártires da liberdade. Como disse uma representante de estudantes secundaristas em Grenoble, citada no jornal Libération, esse foi “um atentado à República e ao espírito de 1789″. …”Nós somos a República de amanhã e prezamos mais que tudo a liberdade.”

O semanário já tinha recebido ameaças e um dos cartunistas assassinados dizia que preferia morrer a viver ajoelhado. Solidariedade total a cartunistas, humoristas e jornalistas do mundo inteiro foi a reação imediata quando a notícia do atentado correu mundo. Mas o ato terrorista foi mais que um atentado contra a imprensa. Foi um ato contra a democracia, contra a humanidade. E até mais simples que isso: foi crime, tout court, e crime tem que ser punido.

Assim, foi um choque ver nas redes sociais gente que encontrou argumento atenuante para um ato de terrorismo: que as caricaturas do Charlie Hebdo eram provocação, que havia temas suficientes para fazer humor, não precisavam fazer caricatura do deus de pessoas dispostas a matar e morrer por sua religião.

Lembrei daquele argumento sobre um caso de estupro: “quem mandou ela botar aquela sainha curta!” Ora, eu, pessoalmente, não gostei da tal caricatura do Maomé em beijo gay, por exemplo. E a sainha da moça talvez fosse de fato inadequada. Mas não é disso que se trata. Trata-se da defesa da liberdade (não só da liberdade de imprensa). Não se podem proibir temas. Qual seria o limite na abordagem de um tema? Baseado em que critérios? Além disso, Charlie Hebdo não tinha uma linha antimuçulmana, também fazia piada com judeus, com antissemitismo, com Jesus.

Além das lágrimas, e do barulho da chuva no minuto de silêncio, há medo entre parisienses e mais ainda em outras cidades. Medo de novos atos de violência. Medo entre os muçulmanos que sentem que têm que provar em cada situação, em cada minuto do cotidiano, que não são terroristas. Alguns têm medo de sair na rua, perguntam-se o que será deles agora. Muitos de origem árabe, muçulmanos ou não, participaram das manifestações de luto e de homenagens aos jornalistas.

É fato que os assassinos de 7 de janeiro de 2015 se declararam vingadores de Maomé. Mesmo assim, é terrível que existam pessoas que queiram transformar a luta contra o terrorismo em caçada contra muçulmanos e em medidas para expulsar da Europa os muçulmanos. Que os assassinos puxem o gatilho em nome de deus não significa que o culpado seja o Corão, nem os torna menos assassinos.

Hostilizar os muçulmanos em geral e sem qualquer distinção não é apenas injusto, é combater o terrorismo com barbárie. Além de ser de eficácia duvidosa. Antes de mais nada é preciso separar os muçulmanos comuns, que têm a sua religião como convicção pessoal, e que defendem um estado laico que tolera todas as religiões, daqueles outros muçulmanos que querem a implantação de um estado islâmico e para a sua implantação usam a violência contra todos aqueles, inclusive outros muçulmanos, que não pensam como eles. Tenho repetido uma frase de um ex-chefe imediato na ONU, M.Rahman, bengali de origem muçulmana, em um de seus artigos sobre terrorismo islâmico: “O muçulmano comum não sai por aí matando gente”.

Outra questão, mais difícil, terá que ser enfrentada pelos próprios muçulmanos: será que os muçulmanos comuns, a maioria tradicional e pacífica, podem ser acusados de proporcionar um ambiente propício para o surgimento de elementos terroristas? Examinei essa questão em resenha dos livros de M.Rahman (in Política Externa, vol.22, no. 2, out-dez 2013). Mas eu lembro que em 2001 vimos aqui no Brasil, em algumas faculdades, cenas de estudantes pulando de alegria e aplaudindo quando aviões terroristas derrubaram as torres gêmeas do WTC. Imagino que para eles não era assassinato, era alguma vitória contra o “imperialismo americano”, seja lá o que signifique para eles o chavão. Fanatismo semelhante alguém viu agora no Facebook (mas não vi em jornal sério), de um “esquerdóide” a dizer que os assassinatos no Charlie Hebdo eram culpa do colonialismo francês. Quantos séculos ainda terão que passar antes que outro bando de fanáticos perceba que a era pós-colonial acabou, faz tempo!

A questão de saber se há entre os muçulmanos comuns, a maioria tradicional e pacífica, um ambiente em que é nutrido o terrorismo islâmico preocupa alguns analistas muçulmanos. Segundo M.Rahman, o autoritarismo dificulta a discussão aberta de questões religiosas. A hostilidade à crítica, negando que no Corão há versos que sancionam a “guerra contra os infiéis”, não ajuda a entender nem a enfrentar o terrorismo islâmico. Segundo ele, se o que importa é prevenir a violência, não basta citar frases do Corão segundo as quais “o islamismo é uma religião de paz”. O Corão pode ser (e tem sido) citado tanto para legitimar violência e crueldade, quanto para defender paz e humanidade. (Aliás, violência há também, bastante, nos textos bíblicos de judeus e de cristãos.)

Essencial é examinar o contexto histórico em que foram enunciados alguns princípios e estabelecidas as práticas do islamismo. A crítica maior de M.Rahman é que tanto detratores quanto defensores do Corão ignoram o contexto. Em suma, é preciso sair do casulo da religião e estudar história. Mais que isso, segundo esse muçulmano democrático, religião não pode ser deixada inteiramente a seus intérpretes profissionais. O muçulmano comum precisa começar a ter vontade e poder para, democraticamente, fazer perguntas sobre sua religião.