Camilo Soares
Fotógrafo e professor de cinema da UFPE

Detail of an Assyrian relief from Nimrud showing horses and horsemen of the royal chariot, 725BC. Photograph: Steven Vidler/Eurasia Press/Corbis.

Detail of an Assyrian relief from Nimrud showing horses and horsemen of the royal chariot, 725BC. Photograph: Steven Vidler/Eurasia Press/Corbis.

“Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem”
(Vladimir Maiakovski)

A violência dos atentados na redação do jornal satírico Charlie Hebdo em Paris e em uma palestra sobre liberdade de expressão em Copenhague reacende os holofotes sobre um antigo fantasma que tormenta os homens e sua história: o medo da imagem. O anárquico Charlie ousou reproduzir as caricaturas de Maomé publicadas pelo jornal Jyllands-Posten de extrema direita dinamarquesa (o que só faz confirmar a complexidade ideológica do tema), fato incontestavelmente ligado aos atos de terrorismo por poder ser considerado blasfêmia no credo muçulmano e que deu corda a infindáveis debates na mídia e nas redes sociais sobre se aquelas imagens eram impublicáveis ou não. No entanto, julgar o direito a existir das imagens foi deveras confundido com a aprovação ao que elas representam, o que só torna mais claro a ambígua paixão que as imagens ainda são capazes de emanar.

A interdição à representação divina nunca foi um monopólio muçulmano, como muitas vezes querem nos fazer acreditar as teses de guerra de sociedades ou choque de culturas incompatíveis. A censura estética é arma antiga e fiel das religiões monoteístas para evitar a paixão aos ídolos pagãos, mas também contra os perigos de desvios e liberdades. A preponderância da palavra já era a norma para os judeus no Primeiro Testamento; mais adiante, a iconoclastia foi imposta a ferro e fogo durante um século na aurora do cristianismo, bem antes que os pastores da Reforma Protestante viessem a negar novamente a imagem. A figuração de entidades poderia levar a interpretações desviantes, pois a imagem nunca poderia alcançar a forma justa do divino (impossível de reter num tempo e espaço preciso), refletindo apenas uma apreensão imperfeita, parcial e aberta à imprevisibilidade de gostos e impressões.

Assim na terra como no céu, a capacidade da imagem na expressão do verdadeiro na história humana foi comumente contestada. Isso animou uma interessante briga na década passada, quando quatro imagens tiradas clandestinamente por judeus de um campo de exterminação de Auschwitz em agosto de 1944 gerou um artigo de Georges Didi-Huberman sobre a importância daquelas imagens como testemunhas do holocausto. O problema para seus detratores é que, tentando usar imagens para falar do “inimaginável”, o teórico francês teria caído num puro fetichismo, numa crença cega nas imagens, incapazes de expressar a verdade de dor tão incurável. Para Gérard Wajcman, por exemplo, o contraponto perfeito daquelas imagens vazias lembradas à toa por Didi-Huberman seria o documentário Shoa, de Claude Lanzmann, que, em nove horas de filme, descreve os campos de exterminação sem utilizar qualquer imagem de arquivo, apenas depoimentos de sobreviventes (inclusive ex-soldados nazistas). O próprio Lanzmann, que considera seu filme como um monumento inigualável e determinante sobre o assunto, opina que tais fotografias não poderiam ser utilizadas como suporte para a compreensão do assunto, pois careciam de imaginação. Recaímos aqui não apenas numa descrença total pela imagem, mas num medo do que elas podem gerar como interpretação, como colocar a vítima no papel do carrasco (seriam, por exemplo, os árabes os judeus de ontem? E os judeus seus carrascos?) Wajcman ilustra o perigo da imagem com o mito da Medusa, que transformava em pedra quem olhasse o horror insuportável de sua imagem.

No entanto, é justamente a natureza lacunar da imagem e sua incapacidade de representar o real que, para Didi-Huberman, torna tais fotografias um instrumento importante para análise histórica. Para ele, tais fotos não buscam revelar toda a verdade do extermínio, mas são importantes como imagem apesar de tudo (é o título de sua obra sobre o assunto), ou seja, apesar de sua natureza falha e incompleta diante o real, devendo sim ajudar nossa leitura do mundo e da história por nos oferecer, ao contrário do que pensa Lanzmann, a possibilidade (ou o direito) à Imaginação. Para Didi-Huberman, Perseu só pôde matar a Medusa, pois a imagem do monstro, refletida no escudo presenteado por Atenas, permitiu-lhe aprender a encarar o intolerável para poder vencê-lo.

Não é de hoje que o fantasma da imagem assombra tiranias. Por inúmeras vezes, Hitler demonstrou seu pavor cheio de intolerância em relação às imagens: mandou, por exemplo, destruir as monumentais pinturas de Gustav Klimt que retratavam a medicina, a filosofia e a jurisprudência com corpos voluptuosos e desnudos numa representação carnal da ciência. Teve ainda que lidar com seu medo de uma Medusa mais sutil do que as libidinosas de Klimt, ao constatar que a vasta série fotográfica de August Sander sobre o povo alemão não refletia os cânones estéticos da raça ariana. O trabalho do retratista acabou virando mais uma arte degenerada modernista, perseguida pelo regime nazista que não a queria nem como reflexo, nem expressão, muito menos como documento histórico. Ainda bem que tais fotografias sobreviveram às fogueiras da inquisição do Nacional Socialismo e nos dão hoje a oportunidade de ver, sentir e imaginar um povo alemão felizmente impuro e não ariano, em contraponto à ilusão da ideologia fascista veiculada nos filmes de propaganda.

Na Russia comunista, por sua vez, a incrível geração da vanguarda formalista foi engolida por um realismo socialista insosso e sem graça imposto por Stalin. Grandes artistas como Eisenstein, Vertov, Rodchenko, sofreram pessoalmente com o endurecimento do controle expressivo. Para esses artistas, a arte deveria servir a elevar a percepção e a cultura do povo, como respondeu Maiakovski quando trataram sua poesia de difícil. Maiakovski findou sua vida ao ver a revolução que tanto amava acabar em corrupção, nepotismo e censura de expressão, como descreve Roman Jakobson em A Geração Que Esbanjou Seus Poetas: “A angústia diante dos limites fixos e estreitos e o desejo de superação dos quadros estáticos constituem um tema que Maiakovski veria sem cessar. Nenhum curral no mundo poderia conter o poeta e a horda desenfreada de seus desejos.” Resolveu desaparecer por si mesmo, antes de sua imagem ser apagada nos retoques macabros da memória visual do regime, como na fotografia em que os dirigentes do partido sumiam, um por um, do lado de Stalin (e da história oficial), conforme eram assassinados.

Mas isso não quer dizer que toda a imagem seja valiosa em si, pelo simples fato de ser imagem, como as fotografias de cadáveres na imprensa marrom ou vídeos que incentivam a violência (como o happyslapping). Talvez aí sim tenhamos uma imagem fetichista, que isola no tempo e no espaço em vez de contextualizar e problematizar o que é mostrado. Aqui estamos na imagem mostro-pra-existir (o que é também tão evidente nos selfies e vídeos de viagem publicados em redes sociais), tornando o visível apenas uma autoafirmação compulsiva ou deslumbramento inseguro da transmissão da imagem de si. Por isso, ainda é tão importante uma estética que seja dialética, para a qual o visto nunca é total e plenamente reconhecível. Ultrapassando a cortina da primeira camada de expressão, a imagem pode finalmente acender a faísca da reflexão que faz ponte entre o visto e o implícito.

Mas, sedutora que é, a imagem contracena na batalha midiática como arma tão eficaz como uma kalachnikoc. A partir da polêmica análise de Baudrillard de que o suicídio do terrorista é, dentro dessa guerra de significações, simbolicamente mais forte do que as mortes das vítimas, pois ultrapassa a capacidade do Ocidente de compreender tal ação, Boris Groys aponta que a estratégia do terror atual advém sobretudo da fé na mídia: “O botão que o terrorista aperta para detonar a bomba é o mesmo que inicia a maquinaria midiática”. A cobertura que a mídia fará dará continuidade ao seu ato, sendo aliás mais confiável do que qualquer bomba. Daí a contradição de uma iconoclastia capaz de matar por caricaturas satíricas, mas sabe colocar em cena, como num espetáculo high-tech, a decapitação de prisioneiros em vídeos para internet. Mata-se pela (ou por causa da) imagem ao mesmo tempo que se mata na imagem.

Por outro lado no Ocidente, a justificação das invasões e mortes (de civis, inclusive) na guerra contra o terror, em nome da propriedade individual inviolável à dignidade humana, é para Groys apenas um tapete rasgado aqui e ali pelo aparecimento de imagens que mostram a sujeira debaixo. Por exemplo, os vídeos e fotos feitos por soldados na prisão iraquinana de Abu Ghraib, com corpos nus forçados a posições explicitamente sexuais, justamente desprovidos de qualquer dignidade humana, são também, para Groys, claros sinais de um velho e perverso método de emancipação do mal aos moldes da inquisição, além de ser um reflexo do conceito fetichista de liberdade do corpo que a sociedade ocidental está acostumada a veicular nas mídias convencionais ou sociais. No terrorismo de hoje, a guerra midiática é usada pelos dois lados; em ambos revela suas contradições.

Na gestão entre o visível e o invisível nessa peleia de imagens se encontra, para Marie José Mondzain, a violência de situações de agressão articuladas em discursos, sendo assim fundamental a formação visual para se entender que tal guerra é sobretudo travada contra o pensamento, funcionando num fluxo contínuo de transmissão e censura de imagens. Para ela, pensar a imagem é responder ao destino da violência e refletir sobre a responsabilidade de seu uso: “Acusar a imagem de violenta no momento onde o mercado do visível assume o efeito contra a liberdade é fazer violência ao invisível, ou seja, abolir o lugar do outro na construção de um ver juntos”.

De volta aos atentados recentes, o ódio contra as imagens parece apontar antes de tudo para uma relação de poder, onde a representação é vista com desconfiança devido ao duplo regime de sua natureza, que de um lado revela e de outro encobre o não visto, deixando margem à subversiva ação da imaginação, onde liberdade, desejo e ambiguidade deixam apavorados os quadros estáticos e corroem os monumentos de suas verdades absolutas.
DIDI-HUBERMAN Georges. Images Malgré tout, Paris, Les Éditions de Minuit, 2008.
Groys Boris, “The bodies of Abu Ghraib”, in: Site Magazine, #15, pp. 6-7, Estocolmo, 2005.
JAKOBSON, R. (2006). A geração que esbanjou seus poetas, São Paulo, Cosac Naify, 2006.
Mondzain Marie-José, L’image peut-elle tuer ?, Paris, Bayard, Coll. Le temps d’une question, 2002.