Teresa Sales
18/março/2015
Prezado leitor, entre no Google e digite o nome do filme, A história da eternidade. Vá direto para o comentário da revista Veja e aí você será informado de aspectos técnicos do filme e de seu sucesso nacional, com os cinco principais prêmios do Festival de cinema de Paulínia em julho de 2014 e o prêmio de público do Festival Internacional de Cinema de São Paulo em outubro 2014. Indico essa fonte de informação não apenas pela crítica, comum a outros comentários ao filme, mas sobretudo por mostrar os três minutos iniciais do filme.
Numa paisagem sertaneja gretada, solo cinzento contrastando com o céu azul, um cego está sentado em uma tora de madeira que lhe serve de assento, embaixo de um enorme umbuzeiro. Toca na sanfona uma canção lamurienta. Enquanto isso, o menino guia do cego se diverte caçando lambu com baleadeira. Abate a ave à primeira pedrada, apanha-a no chão ainda moribunda e enfia no embornal.
Mais na frente saberemos desse cego e de sua paixão por Querência. Por ora, vemos apenas uma casa de porta e janela fechadas onde ela mora, bem na frente desse pé de umbu. Como me disse um dia Zé, nós dois na Fazenda Bálsamo em Bezerros: “é o ar condicionado do sertão”. Enverdece às primeiras chuvas. E, quando seco, como aparece no filme, seus galhos se entrelaçam qual um caramanchão de sombra benfazeja.
A sombra desse umbuzeiro não passou despercebida ao diretor do filme. Sendo pernambucano, por certo ouviu sobre ele muitas histórias, como a de acumular água na raiz quando suas folhas secam, capaz de matar a sede na falta d’água.
No sertão, as árvores e os animais são cheios de histórias, algumas contadas e cantadas por Luiz Gonzaga, como o Juazeiro no tronco do qual ficou marcado o seu primeiro amor. O umbuzeiro desse filme é testemunho também de um grande amor. Diferente do amor perdido do juazeiro, esse do umbuzeiro é desses amores persistentes que não esmorecem às recusas. A musa do cego é uma mulher seca como a natureza em volta de sua casa, calejada pela perda do marido e depois do único filho. Ninguém melhor que Marcela Cartaxo para fazer esse papel. Está magnífica.
Também está nos três minutos iniciais do filme a cena que interrompe a toada do cego pela música de igreja que vai tomando altura enquanto se aproxima um enterro de anjo. A criança morta é o filho da viúva. Ela vai altiva à frente do cortejo solene e assiste ao trabalho dos coveiros, coloca sobre o caixãozinho branco o primeiro punhado de terra e volta para seu retiro de desespero na casa escura.
O amor, o desejo, a paixão, são vividos nesse filme liminarmente, como liminar é a seca sertaneja em que se passa grande parte do filme. A chuva torrencial, prenúncio de bom inverno, é o seu epílogo. Noite de desespero, de desejos aflorados, de paixões vividas. Numa citação do grande cineasta Bertolucci (terá sido proposital?) uma das mais comoventes cenas do filme: a avó matriarca, aqui interpretada por Zelita Matos, qual a Madonna com o senhor morto nos braços, dá o seio duas vezes materno ao neto que logo mais será justiçado pelos crimes cometidos em São Paulo. A leve e pura adolescente Afonsina (Débora Ingrid) se entrega ao tio (Irandhir Santos), antítese boa do pai perverso.
As duas cenas incestuosas, ao misturarem desespero e paixão reprimida, adquirem uma beleza e uma força que ultrapassam qualquer preconceito. Para o que contribui enormemente a atuação magnífica dos atores premiados Irandhir Santos, Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e Debora Ingrid.
Estranho é somente que esse filme, dirigido por Camilo Cavalcanti, autor de vasta produção de curtas e agora merecidamente premiado em seu primeiro longa metragem em importantes festivais brasileiros, não tenha sido até agora aclamado como merece na sua terra. É mais um pernambucano que vem se somar à nossa boa safra de cineastas jovens. Ainda há tempo de seu valor ser reconhecido, no CINE PE que se aproxima. (recado explícito para Sandra e Alberto Berttini)
*
Teresa,
Sua análise do filme nos dá vontade de assistir-lhe; é de uma riqueza de detalhes e grande sensibilidade.
Mas, não é apenas essa a qualidade do texto. Você tem a capacidade de usar a ficção, uma obra cinematográfica (ou literária, como já fez outrora), para fazer um paralelo com a realidade e mostrar características e valores de uma região do País ainda tão desconhecida – o Nordeste, mais, o interior do Nordeste brasileiro -; a beleza e a poesia que permeiam seus recantos, sua vegetação, a sabedoria do povo que aproveita aquilo que lhe é ofertado pela natureza, seja para simplesmente encantar o espírito, seja para suprir necessidades básicas e superar dificuldades.
Ademais, a importância de ressaltar o talento e o olhar atento dos nossos artistas, produtores, escritores, cineastas que, felizmente, despontam na cena nacional, ganhando cada vez mais o respeito dos que respeitam a arte.
Tereza,
seu comentário, leva a nossa imaginação a ” fazer” o filme ser mostrado na tela do pensamento mostrando as cenas vivas na projeção do nosso pensamento.
Os comentários de Jacqueline e Nealdo me deixam lisonseada. Mas que isso, porém, Jacqueline, você complementa com suas observações o que tentei mostrar da natureza bela do sertão valorizada pelo filme.
Decidi assistir ¨A história da eternidade¨ em um cinema, pois o ¨O som ao redor¨ eu tinha visto na televisão e podia ser que o fato de eu não ter gostado, quando quase todo mundo gostou, poderia a ver com o meio onde assisti. Afinal cinema é cinema, TV é TV, para resumir a história.
Pois bem, fui num sábado ao Cinema da Fundação e cheguei lá 1 hora antes do filme para comprar meu ingresso, pois é esta a regra vigente. Não se compra ingresso nos dias anteriores, nem nas horas anteriores à exibição: é 1 hora antes do filme. ¨Porquê? ¨, questiono com a moça da bilheteria. ¨Porque o sistema não permite¨. ¨Porquê? ¨, insisto meio chato. ¨Porque o sistema é assim¨. Mas os sistemas e programas de computador são flexíveis, permitem uma reformulação, uma manutenção, como se diz. Porque não se altera? Não sei, só sei que entrei na fila 1 hora antes e depois entrei noutra fila de entrada na sala, fila essa que ficou quilométrica. Muita gente querendo assistir aquele filme de mais um diretor pernambucano premiado.
Fui atraído pelo filme pelo que eu tinha lido na imprensa, pelos prêmios que o filme ganhou, por ser de um diretor pernambucano, e pelo título, que achei fantástico: ¨A história da eternidade¨. Muito bonito mesmo. No início, como o artigo acima narra, um longo cortejo fúnebre de uma criança, até o cemitério da vila. Longo em termos de tempo mesmo, e triste, muito triste.
A partir daí já fico agitado – vai ser mais um filme daqueles que endeusam o sertanejo, que falam de sua pureza d´alma e do coração. E não foi diferente. Um roteiro lento, partido, com um final que tenta apontar para a pureza e beleza do sentimento das três mulheres sobreviventes da história. Não me lembro de moradores da vila, a não ser no momento que o personagem de Irandir é agredido pelo irmão, mesmo assim uma meia dúzia apenas. Uma vila que tem telefone orelhão que fala com São Paulo, é uma vila mais habitada, tem venda, tem feira, tem movimento. Senti uma produção muito aquém da dimensão que o filme buscava.
Porque a maioria dos filmes brasileiros (excluamos as comédias da Globofilmes e similares) são, na sua maioria, sobre a dor, a miséria e uma, talvez, pequena felicidade dos sertanejos? É um tema recorrente, como se a emoção, a vida, a pulsação, só existisse ali, ou como se os produtores e diretores buscassem sempre expiar uma culpa, a culpa de ser classe média, intelectual, não viver ali com eles, o povo pobre. Então, temos de ser solidários, temos de mostrar sua vida, seu sacrifício, e por aí vai. Nem sempre é sobre os sertanejos, mas sobre os mais pobres, suburbanos, favelados. Não terá sido este o tema do antigo Cinema Novo?
Não há como negar grandes filmes como ¨Cidade de Deus¨, ¨Central do Brasil¨, ¨O auto da compadecida¨, e o excepcional ¨O céu de Suely¨, com a excelente Hermila Guedes e tantos outros que abordam o cotidiano de sofrimento do povo brasileiro. Mas não são esses apenas os grandes temas de nossa cultura. Poucos filmes trataram da vida sob a ditadura militar e do processo de redemocratização que o país viveu na década de 80, a exemplo do ¨O ano em que meus pais saíram de férias¨; ¨O que é isso companheiro¨. Muito poucos mesmo, se comparados com a produção argentina. A filmografia argentina me parece muito mais interessante, explora a história e a vida cotidiana do seu povo, suas classes urbanas, sua cultura, e tem realizado filmes com uma produção muito mais elaborada.
¨A história da eternidade¨ traz, no entanto, um desempenho MAGNÍFICO de Irandir Santos, a meu ver o melhor ator brasileiro na atualidade; de Marcela Cartaxo, fabulosa, e da garota Debora Ingrid, suave como uma pluma. A atuação deles destoa, eles sobram no filme, não há uma produção, uma história mais forte que destaque a grande capacidade deles. Na cena final, onde o personagem de Irandir é assassinado pelo irmão, como já dissemos, não há uma produção, com moradores, figurantes, música forte como a cena, iluminação e som com trovoadas, um terremoto, como é a sua morte dentro da história. Foi uma cena muito pobre comparada com o que poderia ser.