Em muitos sentidos, este artigo é um desdobramento de um outro, intitulado Chico Buarque e o Tropicalismo, recentemente publicado nesta revista. Importa frisar esse fato, pois ele justifica algumas repetições talvez inevitáveis. Quando Caetano Veloso completou 70 anos, a mídia não perdeu viagem. Convenhamos, vender notícia é o fim inscrito na natureza do seu funcionamento. Visando alcançá-lo, ela não mede princípio. Essa questão, de nítidas ressonâncias éticas, é tão velha quanto o ovo ou a galinha. Quero dizer, há críticos da mídia que a responsabilizam por alienar o público; outros, notadamente os que fazem a mídia e dela vivem, replicam alegando que vendem o que o público quer. Como não tenho resposta para a questão, nem sei de quem a tenha, retomo o caminho do qual me desviei.
A mídia não perde viagem, como dizia, e assim cuidou de reacender uma rivalidade já esquecida. Quem é melhor: Caetano ou Chico? Para início de conversa, a rivalidade é invenção da mídia, não deles. Irrompeu no auge do tropicalismo, quando Caetano, Gilberto Gil e outros anárquicos astutos levaram ou fingiram levar a sério o lema: é proibido proibir. Se na França, de onde proveio o lema, o cassetete baixou sobre os libertários, o que dizer da ditadura brasileira? Bem, deu no que deu. Como todo mundo sabe disso, vou em frente. Antes esclareço a expressão “anárquicos astutos”, que não entrou no parágrafo por acaso. Chamo a atenção dos ingênuos, que ouvem na música apenas música, para o fato de que o tropicalismo foi um investimento astuto dos seus líderes, uma estratégia para converter o mercado da arte de massa em ascensão no Brasil em forma artística e trampolim para o estrelato.
Foi nesse contexto que a mídia e críticos de vanguarda de notável talento (penso antes de tudo em Augusto de Campos) forjaram a rivalidade. Reduzida ao essencial, dizia-se que Caetano simbolizava a vanguarda artística, a música de invenção para a massa. Apostava-se também no célebre trocadilho de Oswald de Andrade, um dos inspiradores do tropicalismo: um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico. Escrevo sem aspas porque estou citando de memória. Hoje o trocadilho parece hilariante, mas os vanguardistas acreditavam piamente na inteligência e refinamento educável da massa. Não era à toa que eram de vanguarda.
Na política, a vanguarda revolucionária também apostou nesse mito. Contrariada pelas evidências históricas e sobretudo movida pela convicção arrogante de ser a portadora da verdade, portanto líder do processo revolucionário, encontrou em Lênin o teórico e agente supremo do voluntarismo revolucionário. Desprezando a ignorância e a alienação das massas, como Marx e a maioria dos salvadores da humanidade, Lênin forjou a imagem do revolucionário profissional armado de vontade e tenacidade de aço e absoluta devoção e disciplina partidária. As vanguardas estéticas, em contexto claramente distinto, estamparam na história da arte sua arrogância estética e seu desprezo pelo público ignaro. Nas suas diferentes e múltiplas tendências, de esquerda ou de direita, autoproclamaram-se fundadoras da revolução, do novo como critério estético primacial. Essa presunção arrogante e destrutiva lateja nos manifestos que se sucederam investindo contra o passado e a tradição. Em graus de radicalismo variável, isso pode ser facilmente notado nos manifestos e happenings. Bastaria lembrar o manifesto bárbaro dos futuristas propondo a destruição dos museus e todas as instituições zeladoras da tradição e da continuidade artística.
Voltando ao registro da música popular, assunto óbvio deste artigo, também conviria lembrar o happening protagonizado por Caetano Veloso em 1968, quando sua música É proibido proibir foi desclassificada em meio à atmosfera turbulenta de um dos festivais de música da época. A música em si valia e vale muito pouco, mas a explosão do autor, contraposta à fúria do público incendiado pelo espírito revolucionário da época, tornou-se um documento definitivo do conflito entre a vanguarda estética e a política. Outro fato que merece registro é uma música de Gilberto Gil, hoje felizmente esquecida, na qual Gal Costa urrava levando o público ao delírio: “a cultura, a civilização / elas que se danem / eu não”. Como não lembrar Freud diante dessa ancestral polaridade entre Eros e Tânatos?
Voltando ao enredo, se Caetano simbolizava o novo (não confundam com novidade, coisa que hoje se forja muito mais do que naqueles tempos ainda relativamente pudicos em termos de ética de mercado), a invenção sintonizada com a montagem de uma sociedade de consumo moderna, Chico, coitado, foi reduzido a símbolo de um passado feito de realejos, serenatas, Carolinas na janela, um Noel Rosa de viaduto, um tocador de cavaquinho num mega show de rock. É claro que a chama alastrou-se chamuscando os astros em competição, até então amigos. As tensões e divisões daí decorrentes afetaram também outros astros já estabelecidos ou em ascensão, como seria de prever, mas Chico e Caetano eram as estrelas maiores do firmamento televisivo. Logo, seria natural que a mídia concentrasse os refletores sobre os dois. A rivalidade tornou-se notícia de vida longa e lucrativa. Os astros se reconciliaram publicamente num célebre show realizado em Salvador, depois do exílio de ambos, mas ainda sob vigilância severa da ditadura.
A ditadura recolheu a dentadura, e outros instrumentos mais atemorizadores, a Globo fez as pazes com Chico, censurado durante anos, e em meados dos anos 1980 produziu uma série de shows sob o título Chico e Caetano. Claro que o sucesso foi imenso (eu, que há anos não vejo televisão, vi e gravei tudo) e um dos programas, pelo menos, mereceria uma edição em DVD: o que teve Tom Jobim e Astor Piazzolla como convidados. Como veem, isso era biscoito fino para a elite do público de massa, o paradoxo é intencional, que alegremente se diluiu em farelo. Se antes Chico ludibriava a censura ditatorial cantando: “hoje você é quem manda / falou tá falado /não tem discussão…”, hoje me queixo em vão do mercado, que fala e vende o que quer à nossa subserviência consumista.
Que faz um astro ético diante da potência diluidora do mercado? Caetano Veloso, com seu talento camaleônico, faz o jogo da mídia e do palco com astúcia refinada pela prática que remonta ao tropicalismo, com seu narcisismo de muitos gumes. Quanto a Chico, de temperamento mais retraído, com um sentido de coerência mais retilíneo, mede à distância a corda bamba na qual Caetano se deleita em fazer malabarismos. Em suma, cada um com seu talento e modo de ser. O que é inegável é a importância da obra que produziram. É esta que importa e por isso não convém rebaixá-la à disputa fútil de um Fla-Flu, pois a isso se reduz a rivalidade promovida pela mídia.
Artistas de múltiplos talentos, Caetano e Chico têm personalidades e formas de expressão muito distintas. O primeiro, justificando seu narcisismo ostensivo, se transfigura no palco, na criação acionada pelo contato vivo com o público. O segundo, contrariamente, é artista cujas pérolas são lapidadas em estado de reclusão. Sendo assim, Chico resiste ao palco, se retrai no contato direto com o público. Para ele a criação estética é o avesso, por exemplo, do happening, tão afim ao estilo irreverente e provocativo de Caetano. Prolongando no mais alto sentido a tradição lírica, compreendida tanto literária quanto musicalmente, Chico trairia sua força criadora se embarcasse num movimento como o tropicalismo. O que importa é que se renovou extraordinariamente. Calou assim a crítica que o opôs à rebeldia tropicalista levianamente reduzindo-o à medida de um artista ultrapassado.
Nos anos 1970, ambos amadureceram e renovaram sua obra. Chico associou a música ao teatro, experiência já iniciada na década precedente, também ao cinema. Caetano também compôs música para cinema, mas no geral confinou sua obra à música e à crítica ocasional, sempre exercida em tom inteligente, provocativo e não raro autopromocional. Como ele canta num dos seus melhores versos, “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. O Chico tardio concentrou-se na paciente elaboração de romances que lhe têm valido o apreço da crítica e sobretudo do leitor. É claro que, apesar do seu talento literário indiscutível, o romancista muito se beneficia da fama do compositor e cantor. Quanto a Caetano, escreveu o melhor livro de memórias que temos da efervescência musical dos anos 1960 relacionada ao contexto social e ideológico. O leitor sabe que me refiro a Verdade Tropical.
Portanto, concluo repisando o que acima escrevi: cuidemos da obra, opinemos sobre ela à margem do espírito barato do Fla-Flu alimentado pela mídia interessada apenas em vender notícia. Um dos grandes privilégios da arte brasileira é ter produzido dois artistas tão extraordinários. Penso que perdem apenas para Tom Jobim. Mas este está acima de comparações e paralelos. Tom é simplesmente o maior compositor popular do século 20. E notem que não usei nenhum qualificativo geográfico, isto é, não afirmei que ele é o maior do Brasil. Tom é simplesmente o maior e ponto. Há quem erradamente suponha que encerrar o artigo nestes termos comparativos é incorrer no Fla-Flu reducionista que acabo de criticar. Não é o caso. O que afirmo sobre Tom Jobim não é mera opinião cega ou arbitrária, mas um juízo crítico implicitamente baseado em farta evidência procedente não apenas da apreciação estética especializada, mas também da recepção da obra compreendida em registro múltiplo. Mais que tudo, é o juízo do tempo, juiz soberano, quem me dá razão. Qualquer música de Tom, não obstante as décadas decorridas e a repetição incalculável, transmite ainda o frescor, a beleza e a comoção da grande música.
Meu caro e querido Fernando!
Você me humilha com sua capacidade de, de uma sentada (pois, como o conheço de perto, sei que é assim), produzir um artigo de tanta qualidade analítica e estética como esse que acaba de nos presentear. Eu… eu sou capaz de passar um dia inteiro para produzir um parágrafo, que no dia seguinte deleto. E recomeço minha “luta” com as palavras.
Mas, para não dizer que só falei de flores, venho introduzir um bemol no seu entusiasmo incontido e superlativo por Tom Jobim: “Tom é simplesmente o maior compositor popular do século XX”. E destaca que não fez referência a qualquer fator geográfico… O que incluiria, por exemplo, a Argentina e os EUA. Uau! Fernando, meu caro Fernando, uma das coisas que você me ensinou, a mim que sou um “glauberiano” (a definição foi sua…), foi temer e evitar coisas como essa: “o maior”… Óbvio que Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é o nosso grande Mestre e Maestro Tom Jobim.
Isso não está em discussão. Mas, Fernando, quando escuto um Piazzolla de “Libertango” ou um Gershwin de “Rapsody in Blue”… sei não. Acho que você poderia nuançar seu superlativo…
Abração,
Luciano Oliveira
Meu querido Luciano: depois de arrancar os espinhos que você me cravou no artigo, matutei um tiquinho sobre a possibilidade de melhor justificar meu escorrego glauberiano. Acredite que fui até catar nas estantes alguns livros de estética e sociologia da arte movido pelo desejo de lhe demonstrar que havia fundamento no meu elogio superlativo a Tom Jobim. Depois sosseguei ao admitir que você, por ironia, está se tornando bem mais sensato do que eu. Afinal, por melhor que me justificasse, nunca poderia demonstrar com objetividade absoluta a suposta verdade do meu juízo. Nos juízos estéticos, assim como naqueles que se prendem à região ôntica das humanidades em geral, não existe verdade absoluta. Assim, tiro meu cavalinho da chuva, onde deixarei Tom Jobim ensopado, e sairei de fininho tocando um tango argentino, como diz o verso de Manuel Bandeira. Embora eu tanto procure calibrar o alcance do que afirmo, prova de que as flores no início do seu comentário tão generoso têm perfume suspeito, é já a segunda vez que você me pega tonitruante como Glauber Rocha.