Ester Aguiar
Venho acompanhando nos últimos dias pelas redes sociais e jornais a polêmica que se estabeleceu, em nível nacional, sobre a novela das nove horas da Rede Globo, Babilônia, escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga e dirigida por Dênis Carvalho.
Há algum tempo não vejo novelas, por opção. O que me surpreendeu foi a força da guerra de opiniões a favor e contra a novela Babilônia, fato que me levou a passar a assistir alguns capítulos da trama para entender o que se passava no imaginário coletivo, a ponto de fazer com que tradicionais críticos da Rede Globo, que participaram de movimentos para tirar o programa BBB (Big Brother Brasil) do ar, por considerar o programa amoral e imoral, declararem seu apoio incondicional à novela.
Corre nas redes sociais uma declaração do Dr. Dráusio Varella diagnosticando o conservadorismo de quem critica o comportamento sexual alheio. Ele afirma que ninguém tem nada a ver se o vizinho é casado com outro homem, ou se a vizinha é apaixonada por uma colega de trabalho. Em outro manifesto, não assinado, divulga-se a caracterização do beijo como ação genérica, que não faz referência à cor da pele, ao sexo de quem se beija, nem à idade.
Por outro lado, moralistas, principalmente liderados por evangélicos e outros religiosos, condenam a novela com argumentos de que Babilônia é um acinte à família brasileira, com depoimentos como: “A arma está em sua mão, desligue durante a Babilônia e dê o maior prejuízo a quem quer desmoralizar a família”. Feliciano, deputado federal pelo PSC-SP, chega a propor o boicote à empresa Natura, por ser uma das patrocinadoras da novela, alegando que “o silêncio dos evangélicos às vezes custa nossos valores”.
A controvérsia chegou até a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, onde deputados se pronunciaram contra o preconceito e homofobia dos que criticam a novela. Na Câmara de Vereadores do Recife, o palpite do presbítero Adauto foi no sentido de vincular a figura de satanás, em debate sobre Babilônia.
O que provocaria este furor da opinião pública assim dividida sobre um seriado televisivo? As cenas dos primeiros capítulos, onde duas atrizes de grande porte encenam um beijo na boca, na condição de casal lésbico? As brigas em família e troca de tapas entre mãe e filha, que chegaram a provocar um aborto? O assassinato de um amante praticado por uma ninfomaníaca? O atropelamento de um jovem favelado negro por um playboy branco e rico?
Passei a ver alguns capítulos da novela. O que percebi?
Primeiro: considero que esta é apenas mais uma novela padrão Rede Globo. Cenários e atores bem posicionados, representando, sempre, papéis muito semelhantes. Os personagens extremamente caracterizados como membros de núcleos do bem e núcleos do mal. Por “coincidência” os maus são brancos e ricos e os bons são negros e pobres; exceção das homossexuais, que são ricas e brancas.
Os negros são humilhados pelos brancos, e fazem, quase sempre, o discurso do politicamente correto e críticas às condições de vida do brasileiro, especialmente, as dos negros, numa demonstração nítida de que o preconceito racial ainda é muito forte no país. Os brancos, em sua maioria ricos, usam clichês preconceituosos, especialmente com comentários contra pobres e negros, e são, quase todos, perversos e portadores de conduta social não ética. Merece destaque a exceção da personagem de uma das parceiras do casal lésbico, que é bom caráter, defensora dos pobres e oprimidos. É advogada, militou contra a ditadura, pelos direitos humanos e, hoje, é defensora da causa dos homossexuais e contra a homofobia.
Depois dessas observações, a que conclusões eu chego? Que a polêmica sobre a novela reproduz, em todos os detalhes, a polêmica que se instalou no Brasil nos últimos tempos, maniqueísta e bipolar que joga, de um lado, os defensores de uma ética, dos direitos das minorias, do discurso do politicamente correto e, do outro, os críticos das mudanças sociais e culturais, uns acusando os outros, sem que se abra qualquer espaço para o debate.
Esta tendência de ausência do enfrentamento de opiniões contrárias, quer seja enquadrado como de direita, quer de esquerda, vem tumultuando o processo democrático de discussão e debate, cada lado querendo impor o seu ponto de vista, sem que se consiga a construção de uma terceira via, capaz de produzir uma nova harmonia e a solidariedade entre grupos. Em nada isto contribui para o fortalecimento das instituições: leva a melhor quem consegue ter mais poder.
E eu, que, diante dos comentários acalorados, fui em busca de um novo Nelson Rodrigues… Em sua época, este autor foi considerado um escritor maldito, amoral e imoral, condenado pela crítica especializada e por grande parte dos leitores e frequentadores do teatro. Qual o seu defeito? Tentar mostrar, sem rodeios “a vida como ela é”.
Através das fragilidades dos homens na vida cotidiana, onde predominam ações instintivas de impulsos e paixões (coisa que qualquer terapeuta ou psicanalista conhece muito bem, ao ouvir os dramas que chegam aos seus consultórios), os personagens que ganham vida na obra de Nelson passam a apresentar conflitos derivados do desequilíbrio entre as instâncias psíquicas, e fragilidade éticas, fazendo que eles oscilem entre o real e o irreal.
Em suas obras Nelson Rodrigues privilegia os desejos inconscientes, primários. Ele trabalha com a crueza, a perversão latente e o não dito que constituem o ser humano.
Preconceito contra os negros? Nada ilustra tão bem como a sua obra “Anjo Negro”, que tem por trama central o caso amoroso entre um negro e uma branca, num relacionamento que mistura prazer e culpa. Preconceito contra o homossexualismo? Basta ler “O Beijo no Asfalto”, onde é mostrado um beijo entre dois homens e a repulsa ao ato como uma perversão, mesmo que seja em um mundo sem leis ou regras fixas, em que não existe respeito mútuo e onde, na luta de todos contra todos, vence o mais forte. Se o caso é de ninfomania, por que não lembrar “A Dama do Lotação”, cuja personagem central, mesmo sendo uma senhora de classe média abastada, sai, como “La Belle de Jour”, para encontrar parceiros nas paradas de ônibus suburbanos?
Mais a Nelson Rodrigues que a Babilônia! E vamos abrir espaço para o debate de ideias, com menos preconceitos e respeito às diferenças.
Brilhante, Ester!
Excelente artigo, Ester! A sua análise é perfeita!
Muito boa e atual a sua conclusão. Na verdade, o que falta em nossa ” pátria educadora” é a educação cultural. A novela não foge, em nada aos padrões da Globo em seus diversos horários. Em síntese, o que se está fazendo, é apenas levantar a audiência do canal, pois todos ficam curiosos em ver o que se critica. Parabéns pelo artigo.