Agony the death struggle – Egon Schiele -1912 ( Recorte)

Agony the death struggle – Egon Schiele -1912 ( Recorte)

João Rego

A seu Lila (Maurílio Rego). (in memoriam) 19.05.2015

O grito de terror da minha mãe perpassou o meu corpo. Acordo assustado. Tenho treze anos e não imaginava nunca que toda a minha infância estava se dissolvendo naquele momento. Pulo da cama e corro para a cozinha, de onde veio o grito. Encontro minha mãe sentada no chão, chorando e urrando, em estado de puro desamparo, abraçada ao corpo inerte do meu pai. Vejo o homem que me protegera e me amara durante toda a minha vida, derrubado, sem vida. De forma exasperada, arrastamos seu corpo pela porta da cozinha até o chão da entrada de carros que separava nossa casa da Casa Grande. Minha avó Ernestina sai, vestida em sua camisola, e quando vê a cena diz com a sabedoria e a calma que só a velhice permite:

— Ele está morto. Eu sei que ele está morto.

Eu, em choque, sem entender ainda que a realidade se desmoronava aos meus pés, revido com energia:

— Não vovó, não diga isso!

— Sei por que já vi seu avô morto.

Minha mãe:

— Joãzinho corra vá chamar Pepeu que ele pode dirigir até o hospital.

Saio num pique só, acordo Pepeu e Clívia, sua esposa, nossos vizinhos. Pepeu, de tão assustado sai como estava, de cuecas. Entra na pickup Aero Willys e, com muito esforço, juntos, conseguimos colocar o corpo dele sentado na boleia, entre mim e Pepeu. Coube-me, naquela hora, a missão de segurá-lo para não cair. A camionete cinza voava pelas ruas vazias da madrugada de Caruaru. Minha mãe ia em pé atrás na carroceria, urrando e batendo na capota como um último e primitivo protesto contra o Deus que estava tirando seu marido das nossas vidas. Ela tinha apenas trinta e três anos.

Chegamos na emergência do Hospital São Sebastião. Os médicos, todos amigos, entram em polvorosa. Tiram o corpo do meu pai e o colocam, por estas ironias do destino, no mesmo canto, na mesma maca que eu fiquei recolhido, quando atropelado aos cinco anos de idade. Enquanto o médico, não lembro seu nome, tentava revivê-lo dando choques em seu peito, pude perceber, quando, por um momento, nossos olhares se cruzaram, o pânico e a impotência dele diante da tragédia que estava em suas mãos. Ele, em pé, com o desfibrilador na mão, grita para os enfermeiros que dessem um jeito para que eu não visse esta cena. Estava abraçado à minha mãe, tentava protegê-la. Lembro de ter sentido uma picada no braço. Apaguei.

*

Acordo ainda grogue sob o efeito do sedativo. Estou em um dos quartos da Casa Grande, a casa de meus avós paternos. Sou conduzido, ainda cambaleante, para a sala do velório. É na grande sala da frente que está o caixão; a rua apinhada de gente querendo dar o último adeus a Seu Lila – como era conhecido. Ele não era um homem público, apenas alguém, filho de uma família abastada que, durante toda sua vida, exerceu com maestria a arte de fazer amigos — independente de idade, cor, credo ou classe social. Ao lado do caixão estão minha mãe toda de preto, sentada com um véu no rosto; Monquinha e Jacqueline, minhas irmãs mais novas. Luciano, o filho mais novo, tinha apenas três anos, fora levado para casa de amigos. O fluxo incessante de pessoas vindo da Rua 13 de Maio não irá parar até a hora de levar o caixão para o cemitério. Volto a apagar.

*

Anos depois minha mãe relata que naquele momento de dor, durante o velório, chegou Oldacino do Tijolo, conhecido na cidade pelo tipo de empreendedor bem-sucedido, mas que mantivera o mesmo estilo de vestir e de ser de quando era pobre. É este o homem que coloca seu chapéu no peito em sinal de reverência ao morto e faz o mais belo discurso que alguém poderia fazer naquele momento. Relembrou ele que, quando menino pobre que carregava areia do Rio Ipojuca no lombo do burro, meu pai, filho de Seu João do Rego, fazendeiro bem-sucedido, tirava comida da feira da casa para dar a ele e a outros na mesma situação de pobreza. Anunciou que ali estava partindo um homem com espírito iluminado que, durante sua vida, com seu bom humor e magnanimidade, cultivara amigos verdadeiros.

Minha mãe, ainda hoje, quarenta e seis anos depois, lembra com emoção que ancorou o seu desamparo naquele discurso e se confortou.

*

Teresa Rego tomou uma decisão radical. Deixou para trás Caruaru e partiu com seus quatros filhos para Recife. Eu, o mais velho, com treze anos; Monica, Jacqueline e Luciano, o caçula, com três anos, compúnhamos o pesado fardo que o destino colocara em seus ombros. Sozinha, desamparada e bela, atributo que mais atrapalhou do que ajudou, trabalhou com todas as suas energias para nos educar. Um dos fatores do enfarte do pai havia sido a impossibilidade de lidar com a falência do patrimônio da família.

A morte do pai, pelo desamparo e a capacidade de lhe jogar em um abismo de angústia, quando se é ainda uma criança, é um dos significantes mais importantes na estruturação do sujeito. Assim como outros traumas importantes, você cresce e tece sua vida sem se desgarrar dele. A Função Paterna, quer pela presença ou pela ausência – esta, ainda mais poderosa – funda sua humanidade.

Hoje, após tantos anos, olho para trás e compreendo, com certa serenidade, a morte como condição inalienável da nossa existência. As vezes vem precoce e injusta; outras, tardia e dolorosa, dilacerando lentamente, com a doença, nosso corpo.O certo é que, qual misterioso espectro, usando o tempo como afiada e infalível arma, demarca e nos impulsiona à vida – mesmo que disto não tenhamos consciência.

 

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