Clemente Rosas

Salvador Dalí, The Anthropomorphic Cabinet, 1936, oil on panel. Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf, Germany.

Salvador Dalí, The Anthropomorphic Cabinet, 1936, oil on panel. Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf, Germany.

Quando estudante de colégio marista, em João Pessoa, rezando o terço todo dia, li, em algum compêndio, que o catolicismo, diferentemente de outras religiões, não se contrapunha ao conhecimento científico.  Pelo contrário, consolidava-se com as suas descobertas e conquistas.  Mas logo compreendi que não era bem assim.

Numa ótica estritamente racionalista, podemos observar que, inversamente, a religião é que tem evoluído, adaptando-se ao avanço da ciência.  Passamos do politeísmo, dominante em todos os povos primitivos, para o monoteísmo, e, já dentro deste, do antropomorfismo para a moderna concepção de um deus como puro espírito de luz, princípio de todas as coisas.

É compreensível que assim ocorra.  No tempo e lugar do surgimento das grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – não havia ciência, muito menos medicina.  Portanto, tudo o que acontecia às pessoas, envolvendo sua saúde física ou mental, só podia ser atribuído a poderes sobrenaturais.  Qualquer profeta que falasse em nome desses poderes merecia crédito e conquistava adeptos.  Se hoje sabemos que a maior parte das doenças pode ser curada pelo próprio organismo humano, independentemente de remédios, naquele tempo as curas eram sempre milagrosas.  E o milagre está na base das religiões e da fé dos fiéis em seus santos.

Os séculos se passaram, as conquistas da ciência deram-se de forma vertiginosa, e o espaço dos taumaturgos foi-se reduzindo.  Hoje, embora seja tema recorrente no cinema, e mesmo em certo tipo de literatura, rendendo bons lucros aos que o exploram, muito poucas pessoas acreditam em casos como o de possessão demoníaca.  E os milagres, ainda formalmente exigidos para as canonizações, são de prova cada vez mais duvidosa.  A religião recolheu-se ao seu nicho de pura espiritualidade.

Mas como estabelecer, agora, uma convivência pacífica entre ciência e religião, dando conforto àqueles que têm a necessidade psicológica de crer no sobrenatural?  Stephen Jay Gould, americano, e Richard Dawkins, inglês, são dois cientistas que podem nos dar uma resposta conciliatória.  Os dois, além de bons escritores, têm uma sensibilidade especial para as conexões da ciência com os problemas sociais e humanos: Gould, já falecido, era filho de um dirigente de partido comunista, e Dawkins nasceu no continente africano, no Quênia.

A proposta de Gould é a dos “non overlapping ministeria” (ministérios não imbricantes).  A ciência cuida das coisas prováveis, a religião das coisas do espírito.  Para a ciência, como nos ensina o saudoso professor Aluízio Bezerra Coutinho, nossa “prata da casa”, tudo precisa ser provado, menos dois postulados básicos: que existe uma realidade externa a nós, e que podemos, com os nossos sentidos e cérebro, captá-la e interpretá-la.  Na religião, só a fé é exigida, e a convicção se dá pelo argumento “ad autoritatem”: a verdade está no que dizem as escrituras, os santos e os teólogos.

Da parte de Dawkins, menos conciliador, há ainda a exigência de que uma disciplina não invada, em nenhuma hipótese, o terreno da outra.  E ele se apressa em apontar que, no caso da imposição dos milagres como realidade, a religião invade o campo da ciência.

Estamos pois, crentes e incréus, entendidos sobre esta melindrosa matéria.  Só espero que nenhum devoto receba de forma passional estes tópicos de reflexão, ao ponto de prescrever, contra seu autor, “fatwas” ou maldições, que já não podem ter lugar em nosso tempo.

 

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