Ernest Theodor Amadeus Hoffmann foi um intelectual alemão de grande reconhecimento, tendo desenvolvido atividades como jurista, compositor e escritor. De vida atribulada desde a infância, com a separação dos seus pais, era um homem de gênio, que demonstrava dificuldade em seus relacionamentos sociais e dependência do álcool, o que o levou a uma morte precoce, ainda aos quarenta e seis anos de idade.
Amante da música, admirava especialmente Mozart. Compôs várias obras, das quais se destaca a ópera “Undine”, em 1816. Foi a partir da aventura musical que passou a se dedicar à literatura, especialmente à produção de contos fantásticos. Três dos seus contos inspiraram Jaques Offenbach a compor a ópera “Contos de Hoffmann”
“O Homem da Areia” (Der Sandmann) é o mais famoso dos seus contos e teve seu manuscrito concluído em 1815. Está fazendo duzentos anos, portanto, o que merece a sua releitura. Sua primeira publicação foi em 1817.
Segundo Ítalo Calvino, o conto fantástico é de grande importância literária por trazer à tona vários temas da simbologia coletiva, no que representa a irrupção do inconsciente, do reprimido, do esquecido, do que se distancia da atenção racional. O leitor vai encontrar no conto “O Homem da Areia” todas estas características, o que faz com que Calvino considere Hoffmann como o mais fantástico, o mais rico de sugestões e o mais forte em valor narrativo escritor nesse estilo no século XIX.
O conto tem como pano de fundo personagens e imagens da vida cotidiana da burguesia em formação na Alemanha, representada pela família de pequeno Natanael, personagem central da história, cujo pai desenvolve experimentos vinculados à alquimia e a ritos de satanismo, com a participação de um estranho e horrendo visitante noturno, o Sr. Coppelico.
A mãe e esposa zelosa, para evitar o encontro dos filhos com o estranho, os põe na cama contando estórias assustadoras: se elas não fechassem os olhos e adormecessem, o homem de areia viria encher os seus olhos de areia e depois arranca-los e leva-los para a lua. Natanael passa a identificar o homem da areia com o estranho visitante noturno do seu pai.
Esta prática de assustar crianças com histórias malassombradas para as fazer dormir é familiar em várias culturas, tais como a do bicho papão, que arrancava o fígado das crianças para nutrir figuras horrendas que tinham nesse órgão a sua fonte de alimentação.
Criança curiosa, Natanael se esconde no escritório do seu pai para descobrir, realmente, o que se passava nos encontros escondidos do pai. É surpreendido por uma explosão que leva à morte do seu genitor e, assim, o garoto passa a identificar no estranho o responsável pelo acontecimento macabro.
Esta figura grotesca, agora se chamando Copola, volta a incomodar Natanael, já na vida adulta e o acompanha, de forma destruidora, até o final da estória.
Na trama, Natanael mesmo sendo noivo de Clara, sua amiga de infância, se apaixona por Olympia, filha do físico Spallanzan, que na realidade, não é um ser humano, é um robô criado pelo físico e que ganhou olhos do Copola, o homem da areia. A descoberta de que a mulher amada não era um ser vivo leva Natanael a mais uma crise de loucura, tentando matar o seu professor, que o enganou.
É interessante notar que, ainda no início do século XIX, o autor cria um personagem robótico, tantas vezes depois explorado por outros autores, dentre os quais se destaca o personagem de Frankenstein.
Já recuperado do surto psicótico, o personagem volta ao convívio familiar. Não dura muito e Natanael é perturbado por mais uma crise de loucura, e, do alto de um penhasco observatório da cidade, tenta matar Clara, num duelo entre a sandice e a racionalidade dos dois personagens. Na luta, ele se desespera e se atira do penhasco, indo ao encontro do homem da areia, que o espera em baixo, junto com a morte.
Este conto causou grande impacto entre os seus leitores e se tornou a base de vários estudos psicológicos. Freud foi um dos intelectuais que tomou esta trama para análise que fez sobre o sonho, quando identificava o medo de perder os olhos como uma representação do temor de ser castrado, como representação do auto cegamento do criminoso mítico, que tem em Édipo a sua identidade. Avalia no conto a relação entre o medo sentido por Natanael de perder os olhos com a morte do pai.
Freud reflete também sobre a representação e o significado do aparecimento do homem da areia na casa da família, perturbando o amor de marido e mulher e de pais e filhos. Para ele, estas questões podem ser respondidas quando se substitui a figura do homem da areia pelo pai rigoroso e temido, possível autor da castração. Isto poderia estar vinculado à própria história de vida do contista, que teve que se apartar da sua família. O medo da castração seria revivido pelo personagem através do amor obsessivo que ele desenvolve por Olympia, como um amor narcísico. O silêncio de Olympia, que não consegue expressar seus sentimentos e ideias, contradiz-se com a racionalidade de Clara, a noiva.
Em sua análise, Freud afirma que “as formas de perturbação do ego, explorados por Hoffmann, podem ser facilmente avaliadas pelos mesmos parâmetros do tema do duplo. São elas um retorno a determinadas fases na elevação do sentimento de autoconsideração, uma regressão a um período em que o ego não se distinguia ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas”. Estas considerações tornaram-se a base de várias avaliações psicanalíticas, vinculando a libido de ver, o prazer de ver e o objeto do olhar como manifestação da vida sexual, que teria na ação do “voyeur” sua máxima expressão.
Uma coisa que chama a atenção dos analistas desse conto é a simultaneidade entre o real e o imaginário, onde os personagens se mostram como duplos, com traços físicos e/ou mentais semelhantes.
Fernando Sabino, em apresentação que faz ao livro na edição brasileira, expressa a sua admiração pelo autor destacando seu senso do grotesco, do mórbido, do fantástico, do sobrenatural.
Triunfo da loucura sobre a razão? Vitória do fantástico e fantasmagórico sobre o real? Por favor, leiam o conto e tirem suas conclusões.
Gostei do artigo que é precioso para a temática do duplo de muito interesse na clínica psicanalítica além da literatura. Voce pode localizar onde Freud fez esse comentário: “as formas de perturbação do ego, explorados por Hoffmann, podem ser facilmente avaliadas pelos mesmos parâmetros do tema do duplo. São elas um retorno a determinadas fases na elevação do sentimento de autoconsideração, uma regressão a um período em que o ego não se distinguia ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas”.
Grata,
Leitora Suzana Faleiro Barroso
Cara Suzana,
O texto mencionado por você teve como base o artigo de Jefferson Vasques Rodrigues: “O Homem de Areia, o estranho e as Estruturas do fantástico” (WWW. UNICAMP)que cita o comentário de Freud no artigo “O Estranho” e no estudo sobre os sonhos, contidos no volume Edição Brasileira de obras psicológicas – Sigmund Freud . Imago, Rio de janeiro, 1969. Espero que estas informações possam ajudar você nos seus estudos. Obrigada pela participação
Olha ai, Ester Aguiar de Souza; um escrito que nos leva a concepções diversas.
Seria mesmo ” …o triunfo da loucura sobre a razão…” ou vice – versa?