Clemente Rosas

Sigmund Freud, fundador da psicanálise, em seu gabinete.

Sigmund Freud, fundador da psicanálise, em seu gabinete.

Quando eu estudava Direito, na João Pessoa dos anos 1950/60, assisti a uma conferência na Faculdade de Filosofia sobre questões relacionadas às ciências do comportamento. O conferencista chamava-se Mirandolino, Mirandolino Caldas, se não me trai a memória. Baixinho, mirrado, cabeçona calva, óculos sem aro na ponta do nariz, era a própria encarnação do Doutor Silvana, o gênio do mal, arqui-inimigo do Capitão Marvel. E o Doutor Silvana bradava, inflando as veias do pescoço:  “Eu nego a psicanálise! A psicanálise não é ciência! É mitologia, e da boa!”

Ninguém se atreveu a contestar o professor Mirandolino. Nem apareceram os que, segundo ele, haviam sido publicamente desafiados a debater o tema. Mas a psicanálise era a grande novidade na província, com a sua charmosa irreverência, escandalizando beatos e encantando os jovens rebeldes. O professor foi esquecido, e eu nunca imaginei que, muitos anos e muitas leituras depois, viesse a concordar, ainda que moderadamente, com as suas ideias.

De fato, o problema da bela construção teórica freudiana, para vir a merecer foros de ciência, é a impossibilidade de comprovação das suas teses pela via dos experimentos.  Com efeito, se o inconsciente – conceito básico da teoria – é, por definição, íntimo e não suscetível de exame direto, será também, ipso facto, inacessível à investigação empírica. E se pensarmos no recurso à outra forma de evidência científica – a observação – veremos que os fenômenos psicanalíticos, a exemplo dos complexos de Édipo e de Electra, são também de prova difícil e duvidosa.

É por isso que uma figura respeitável como o biólogo Peter Medawar, prêmio Nobel, para nossa honra, nascido no Brasil, considerou o freudismo como “o mais estupendo embuste intelectual do século XX”. E um polemista famoso como Karl Kraus, fundador e diretor do jornal vienense “Die Fackel” (A Tocha), classificou a psicanálise como “aquela doença mental que se imagina uma terapia”.

Há quem contra-argumente, entre os defensores da psicanálise, que ela “não é uma ciência de observação e sim de interpretação”. Mas isso implica desqualificar a disciplina como ciência natural, colocando-a no plano das humanidades. E também reduzir sua prática a uma espécie de “curandeirismo sofisticado”, na expressão de José Guilherme Merquior.

Concluindo, não há que se negar a existência de um psiquismo infraconsciente, nem tampouco o fato de que neuroses e psicoses podem ter fundamento na sexualidade reprimida. Essa, aliás, foi a grande contribuição de Freud para a melhor compreensão dos problemas da sociedade moderna. Mas temos de reconhecer que postulados como o complexo de castração, as fases oral e anal da sexualidade humana, e os parâmetros de interpretação dos sonhos, trazem a eiva de um alto grau de artificialismo, e são carentes de rigor científico.

Da mesma forma, em meus primeiros estudos do marxismo, então tido como “materialismo dialético”, ou “científico”, não me dava conta da proximidade dos conceitos de revisionismo e heresia, semelhança que, por si, já desmente o caráter científico da doutrina. Pois o revisionista, execrado e excomungado pelos camaradas do velho PCB, era apenas aquele que propunha algum reparo, ou alguma glosa, às premissas da teoria marxista-leninista. Exatamente como ousaram os hereges, queimados pela Inquisição, na interpretação da doutrina cristã.

No entanto, no puro exercício da razão, e colhendo as lições da História, ao longo de mais de século e meio de convivência com a teoria e a prática da ideologia marxista, podemos chegar a algumas conclusões que lhe contestam a natureza científica, e lhe acentuam o componente mitológico.

Começando pelas suas premissas, há que ser reconhecido o fato de não ter mais o operariado industrial as características de vítima da exploração pela burguesia –  e, consequentemente, de potencial espírito revolucionário – dos tempos de Marx.  Tomando o exemplo do Brasil, vemos que os trabalhadores na indústria já se situam entre os “incluídos”, diferentemente dos “apartados” (informais, biscateiros, desempregados), o que leva um pensador irreverente como o senador Cristovam Buarque a falar em uma “mais-valia triangular”. Além disso, já não têm a expressão numérica do século XIX, ficando em desvantagem para a massa difusa de prestadores de serviços, empregados públicos, microempresários e autônomos.

Quanto à validez explicativa do seu principal instrumento analítico, muitas são as transformações que a dialética vem sofrendo, desde a gênese, com Platão, passando pelo enfoque hegeliano, até a concepção marxista. Ao ponto de prestar-se a várias conotações, como contradição lógica, refutação científica, transformações físicas, conflitos sociais ou estágios evolutivos, como bem observa José Guilherme Merquior, que por isso a rotula de “senhora de pouca virtude”. Suas três leis – a da contradição, a da ação recíproca e a do “progresso por saltos” – que pretendem explicar as transformações da natureza e da sociedade, não passam, assim, segundo Merleau-Ponty, de “magia”, ou de “projeção animista do espírito na matéria”, também segundo Merquior.

De resto, mesmo marxistas mais modernos, como Lukács e Sartre, já descartaram a “dialética da natureza”, e o prêmio Nobel Jacques Monod demonstrou, em seu famoso livro, que, se há algum princípio regente dos fenômenos naturais e da evolução, este é o do acaso e da necessidade, revisitando a fórmula intuída por Demócrito, pré-socrático a quem Platão, certamente, deve ter prestado homenagem.

Por fim, numa perspectiva teleológica, cabe a ponderação de que a sociedade socialista universal, projetada pelos marxistas para após a fase da “ditadura do proletariado” (que nunca houve, nem há agora), uma sociedade sem classes, sem moeda, sem exploração do homem pelo homem, com abundância e bem-estar para todos, contém forte componente de escatologia, aproximando-se do paraíso dos cristãos, ou do nirvana dos budistas. E até aí não pode chegar a ciência.

Mas, como nenhuma contribuição intelectual deve ser desprezada, ressalvo a formulação marxista para a explicação das crises econômicas de superprodução. Segundo Marx, elas ocorrem pela “contradição” (aqui no sentido de incompatibilidade) entre o caráter social da atividade produtiva e o caráter privado da apropriação dos bens produzidos, determinada esta pelas relações de produção. Os ciclos econômicos seriam, assim, inerentes ao modo de produção capitalista, e não provocados por especulações monetárias, falsas expectativas, “preferências pela liquidez” ou quaisquer outras hipóteses explicativas da chamada “ciência burguesa”. Pois na verdade nenhuma destas teve, até hoje, o dom de evitar as referidas crises, ficando apenas no plano das medidas paliativas.

Por isso, mesmo rejeitando o brilho falso de ciência, e descartando os componentes mitológicos do marxismo, devemos continuar a garimpar verdades nesse extraordinário esforço interpretativo da atividade humana. Mas –  e aqui vai o recado para velhos companheiros de lutas e de idealismo – como declarou a velha senhora Joan Robinson, em entrevista à revista Veja, em 19.09.1979, “precisamos de pessoas que, como os discípulos de um cientista, se sintam na obrigação de testar as suas hipóteses, e não ajam como os discípulos dos profetas, que apenas repetem as palavras do mestre”.

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