Helga Hoffmann 

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre 1959.

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre 1959.

Está difícil manter a calma na discussão com certas militantes do feminismo nesta primavera de 2015. Só em parte devido a uma questão dentre as fáceis do ENEM deste ano.  A discussão chegou ao mesmo nível de elegância de um debate no Senado, ontem, em que um Senador e um Ministro ficaram alguns minutos gritando “Vossa Excelência é um safado”, com grande ênfase em “Vossa Excelência”.

Achei no mínimo inadequada a tal questão feminista ou de gênero no ENEM. E assim me vi dentro do grupo “eles” (plural cujos membros individuais não foram especificados na postagem que supostamente defendia as mulheres e o ENEM), em “eles gritam contra qualquer um que tenha um mínimo de cultura, pois são tão ignorantes e se acham tão superiores que destilam fel quando percebem que são apenas burros”. Achei que, diante disso, não podia deixar de destilar meu fel.

Vamos à frase de Simone de Beauvoir e às perguntas:

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”.

A pergunta pedia ao candidato caracterizar para qual movimento social da década de 1960 o pensamento de Simone de Beauvoir teria contribuído.  E a resposta considerada correta era “organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero”.

Vamos esquecer que, assim solto, sem explicação, é bem esquisito definir mulher como “intermediário entre o macho e o castrado”. Para começar, no país em que grande parte dos alunos sai do ensino médio com pouca leitura, escrevendo mal e com conhecimento apenas elementar de matemática, essa escolha de uma frase solta, que implica uma interpretação não literal e em captar nas palavras sentidos atribuídos e indiretos, já é indicador do baixo nível cultural de formuladores querendo se passar por eruditos. É mais um sintoma de uma educação que negligencia o básico, português e matemática, e impõe uma retórica de teses gerais que ignoram fatos ou obscurecem a realidade. Sim, o ENEM deste ano teve outras teses impostas por meio de questões, em que o aspecto doutrinário é mais fácil de testar, e de impacto potencial mais grave: por exemplo, impôs que a globalização e a tecnologia são responsáveis pelo desemprego (o que é falso), ou que o desenvolvimento chinês se contrapõe ao socialismo “cuja característica principal é a extinção gradual das classes sociais” (para o que tampouco existe comprovação).  Por isso é que preparadores da garotada que presta o ENEM recomendam responder logo essas questões “fáceis” e, na dúvida, escolher a resposta que é contra o capitalismo, contra a globalização, contra a tecnologia, contra os Estados Unidos. Um esforço de interpretação da frase de Beauvoir era desnecessário, está claro, pouco tempo depois do debate sobre a retirada dos itens sobre gênero do Plano Nacional de Educação.

É no mínimo simplista (ou quem sabe intelectualmente desonesto, em alguns casos) sugerir que uma posição de crítica à questão de gênero escolhida, que implica interpretar uma frase solta que Simone de Beauvoir tratou de explicar em mais de mil páginas de “Le deuxième sexe”, é apenas de pessoas que se encaixam no perfil de Jair Bolsonaro ou Silas Malafala. É possível que esses dois estejam reagindo apenas ao fato de que Simone de Beauvoir defendia o aborto, o sexo livre, relações homossexuais.

Primeiro, é necessário distinguir entre a frase da escritora, que buscava uma expressão-resumo que fosse de impacto, e o uso que dela fez o ENEM. Antes de ser feminista, De Beauvoir pertencia à turma dos existencialistas franceses, e a frase dela aplica à condição da mulher a ideia existencialista de responsabilidade individual, contra o determinismo. Segundo esses existencialistas, “o homem não é, mas se faz”.

E o contexto importa: o livro que explica a frase é de 1949. Isso é apenas 2 anos depois de a penicilina chegar ao Brasil. Na era da cirurgia plástica e do silicone,  a frase “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” pode ter um sentido completamente diferente do aspecto cultural, institucional e histórico analisado por De Beauvoir. Por isso faz sentido a reação rabiscada por uma candidata: “eu nasci mulher, tenho vagina desde que nasci”. Esta pelo menos respondeu depois de tentar interpretar a frase, e não simplesmente seguindo a orientação de preparadores.

Eu sou feminista desde as primeiras horas de vida, pois meus pais sempre trataram com o mesmo espírito de justiça seus filhos do sexo masculino e feminino. Eu estava aprendendo a ler, em português e alemão, quando ouvia de minha avó, Lucia de Ponte, que a mulher que se casa como meio de vida não é diferente da prostituta (e isso foi nos anos 1950s). Eu sou feminista desde que saí de casa aos 17 anos para ser presidente da União Nacional dos Estudantes Secundários. (Aliás, no Brasil não vi nenhum “protesto público pela igualdade de gênero” nos 1960s.) As minhas noções de igualdade de oportunidade e justiça foram confirmadas na leitura das bíblias feministas da minha juventude, “Le Deuxième Sexe”, de Simone de Beauvoir, e “The Golden Notebook”, de Doris Lessing.  Era um feminismo igualitário, não uma proposta de “sindicato das mulheres”. Depois disso muita água correu debaixo da ponte, e eu vi muito oportunismo de mulher tirando vantagens injustas à custa de supostas teses feministas, vi a atuação do “sindicato de mulheres” na ONU e inclusive acompanhei de perto dois processos de assédio sexual na ONU em que as mulheres se fizeram de vítimas com acusações falsas. Tampouco me despertavam qualquer entusiasmo as tentativas de “mainstreaming of women’s questions”: só para dar um exemplo, um seminário sobre “mulheres e comércio internacional”. Propor o que? Que os países em desenvolvimento exportassem apenas têxteis, porque empregava mais mulheres? No fim era pura retórica.

Assim, cansei do tema, talvez porque já não preciso mais abrir caminho e mereça a frase de uma velha propaganda de cigarros ultrapassada: “I came a long way, baby”. Alguém pode até considerar que não tenho direito de discutir feminismo, pois não posso citar uma única vez na vida em que eu tenha sido prejudicada profissionalmente por ser mulher.

Ou quem sabe a memória esteja me traindo.  Só se o fato de ser mulher teve influência no fato de que escapei, por apenas um voto, de ser expulsa da velha UJC, a União da Juventude Comunista dos anos 1950s, ligada ao que era apelidado de Partidão. Já não lembro exatamente o ano, só sei que foi no fim dos 1950s. Mas o exemplo talvez não seja bom, pois até hoje não sei se foi um mal ou um bem não ter sido expulsa.  O importante é que ao menos escapei de ser expulsa da Faculdade, acusada de niilismo pelo que eram então os conservadores de plantão, em especial o Diretor da Fenefi. Escapei por um triz. E o que feminismo tem a ver com esse episódio?  A discussão era em torno do livro de Friedrich Engels, “A Origem da Família e da Propriedade Privada”. Li o livro, até porque fiz o confronto da tradução de Leandro Konder com o original alemão, mas o que lembro de ter “extraído” do livro, quando apenas iniciava a vida universitária, foi que virgindade era coisa do capitalismo, era importante que fosse preservada só para haver ordem na transmissão da propriedade no sistema capitalista. Hoje isso é besteirol, que a virgindade das mulheres já não importa nada (certamente no Brasil) e, no entanto, a transmissão da propriedade continua firme e forte, tem bastante gente vivendo de herança, sem trabalhar, e não se consegue aumentar o imposto sobre a herança. Mas, há mais de meio século, era bem diferente o que se considerava comportamento normal.  Fato é que, por causa de Engels, e possivelmente porque eu não pretendia casar nem tinha propriedade merecedora de transmissão, fui tirar minha virgindade com o colega que me convenceu, depois de discutir por vários dias e dezenas de páginas de “A Origem da Família e da Propriedade Privada”.

Foi um escândalo. Eu não vi, mas parece que teve até reportagem com o tema “quem não tem cadilaque ataca de ‘O Capital’”. A UJC achou que eu devia ser expulsa, nem lembro se queria expulsar também o tal colega. Pois é, o contexto importa. Era bem diferente ser feminista naquela época. É uma história impossível de acontecer mais tarde. O mais interessante da experiência é que a defesa, contra a expulsão, foi feita arguindo com Engels, adicionalmente com “O Capital” de Marx. E como o pessoal do Partidão não podia dizer que Engels e Marx estavam errados, a acusação defendeu a tese de que “a vanguarda não devia avançar demais em relação às massas”. Só rindo – em retrospecto: não sei quanta gente sabe que, na retórica comunista daquela época, ensinava-se aos jovens comunistas que “o Partido (Comunista) é a vanguarda da classe operária”.  Acho que foi a última reunião comunista de que participei.

Hoje em dia esse tema da “igualdade de gêneros” só me interessa, no cotidiano, para cuidar que não se pratique injustiça.  Não é meu tema de estudo, e como tema de debate filosófico só me interessou durante o curso de filosofia na antiga Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro que logo deixaria de ser capital. Mas, diante do vitriolo, achei de mostrar que não sou, usando uma imagem de outra era, um “Bolsonaro de saia”.

Talvez a minha má vontade com o feminismo imposto pelo governo e neste ENEM feminista tenha uma explicação adicional. Meu feminismo é outro, e está refletido nesta postagem da campanha eleitoral de outubro de 2014, que reproduzo tal qual:

“ NÃO ACREDITO!!! QUE MERDA DE FEMINISMO E ESSE? Eu briguei pela igualdade de direitos e oportunidades a vida toda para ver isso?  O último comercial da Dona Dilma diz que “Aécio tem mostrado dificuldade em respeitar as mulheres.” E aí mostra Aécio Neves, nos debates da TV, falando duro com a Dona Dilma e com a boneca Luciana Genro, e pergunta se alguém com essa atitude pode ser Presidente.  Que idiota de feminista é essa que acha que uma mulher pode dizer as maiores barbaridades e mentiras, e esperar que o adversário não responda, simplesmente sorria?  ISSO AÍ É FEMINISMO DA VITIMIZAÇÃO,  NADA TEM A VER COM IGUALDADE DE OPORTUNIDADES. É APELAÇÃO DA GROSSA!  UMA MULHER ASSIM NÃO PODE RESPRESENTAR AS MULHERES DO BRASIL.”

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