Nada nos salva da morte. Enquanto vivemos, sem que nossa consciência tenha acesso a este inevitável destino, somos impelidos a nos reproduzir, deixando que nossa herança genética passe para as próximas gerações. A ciência mostra que, apesar de termos nos distanciados das outras espécies vivas com uma consciência, linguagem e o registro da nossa história por meio da escrita, somos apenas mais um galho nessa imensa árvore da vida – onde estão as bactérias, as plantas e os grandes mamíferos. Tivemos todos a mesma misteriosa origem há 450 milhões de anos, quando a vida surgiu. Tudo que tem vida está interligado por meio de uma herança filogenética construída ao longo destes milhares de anos.
Eros e Thanatos – sexualidade e morte – são os dois deuses que regem nossa existência.
Sem ter a mínima ideia no vespeiro que estava mexendo, foram as vozes destes deuses que Freud ouviu através dos sintomas das “suas” histéricas. A princípio, e até por formação, utilizou os rigorosos métodos científicos da época, influenciado por grandes mestres como Charcot e outros. Este rigor científico-investigativo o acompanhou até a sua última obra, acrescido de um valioso estilo de escrita. Entretanto, gradativamente foi percebendo que a ciência era insuficiente para dar conta dos fenômenos psíquicos – pelo menos como a psicologia e a psiquiatria pretendiam — induzindo o sujeito a uma “volta à normalidade”.
Foi buscar na mitologia, nos estudos da história das civilizações e, principalmente, na literatura, saberes que pudessem ajudá-lo na investigação da alma humana. Recomenda, com ênfase, em seu texto A Questão da Análise Leiga estas áreas do conhecimento, tão distantes da medicina, como as principais fontes da formação do analista. Considera, ironicamente, a medicina como uma fonte de resistência à formação do analista — rejeitando a ideia de que a psicanálise estaria condenada a ser um apêndice da medicina.
Com relação a literatura, deixa muito evidente que séculos antes dele os escritores já haviam se debruçado sobre os conflitos humanos. Na obra de Shakespeare Freud encontra um vasto material para envolver e consolidar suas investigações científicas, permitindo-lhe ir muito além da ciência.
Com a descoberta do inconsciente e o conceito de sujeito como efeito das suas formações (do inconsciente), assim como Copérnico e Darwin, desnuda mais ainda nossa humanidade, projetando-a, porém, para um universo muito mais amplo e complexo que imaginávamos até então.
A cultura, a religião, o desejo, o sintoma e o sujeito são colocados pela psicanálise em uma perspectiva trágica de uma incessante luta entre a pulsão — aquilo que há de mais primitivo em nós— e a civilização, sendo o sofrimento neurótico não uma doença, mas um preço que se paga para existir como sujeito interditado na realização dos seus desejos —contidos e moldados pela lei que instaura a sociedade e seus valores.
Na tentativa de lidar com esse “sujeito ao inconsciente” passado e presente, causa e efeito, indução e consequência, tudo está virado de cabeça pra baixo se formos comparar o universo da psicanálise com a ciência e a forma como esta última tenta apreender o mundo fenomenológico. Para a psicanálise e suas formações do inconsciente, efeito e causa, presente e passado estão imbricados em uma complexa estrutura permanentemente ativa e dinâmica, onde retroatividade, condensação e deslocamento são terrenos por onde caminham e se formam o ser e seus desejos.
Lacan, mais tarde, situará a linguagem como a força motriz e essência desta estrutura, como também irá revolucionar o conceito de sujeito constituído pelo desejo que provém do outro.
Respondendo a provocativa questão do título deste artigo, se é a psicanálise uma ciência ou um mito. Primeiro, há uma impossibilidade de ser uma ciência, embora se utilize de alguns métodos científicos, posto que seu objeto é inapreensível pela ciência: nossa vastíssima e subjetiva humanidade—para nossa sorte. Segundo, não é tampouco uma mitologia dos tempos modernos, embora se utilize da rica e fantasmática visão que a mitologia clássica nos traz – como uma protovisão do humano e seus indissolúveis conflitos. Como uma nova área do conhecimento humano — essencialmente libertária, materialista e destruidora de mitos e valores que aprisionam e limitam nossa existência—, respondo de forma intencionalmente tautológica: psicanálise é psicanálise.
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“Os grandes dramas de reis e rainhas, príncipes e plebeus, é o constante conflito entre aquilo que são os conselhos da emoção e do instinto, por um lado, e a influência que vem do raciocínio, do conhecimento e da reflexão. Essa é a grande base da tragédia grega ou shakespeariana. Nós, na medida em que as sociedades evoluem, estamos caminhando para uma maior harmonia entre o lado emocional e instintivo e o lado racional e de reflexão. Essa harmonia ainda não se estabeleceu e não vai acontecer nem na minha geração nem na sua. É um trabalho por se concluir. Mas um dia, a convivência em sociedade, que exige que se ponha razão e emoção na balança o tempo inteiro, vai conseguir equilibrar os dois lados.” António Damásio.
Mais uma utopia?
Meu caro João: Lendo seu artigo, prontamente lembrei-me do que Clemente escreveu referindo-se à psicanálise e ao marxismo como as duas grandes mitologias do século xx. Ia me meter um pouco nessa controvérsia, mas logo me dei conta de que o espaço do comentário seria insuficiente. Noutras palavras, imporia restrições de espaço que comprometem os argumentos e considerações que gostaria de fazer. Por isso fico com a ideia de escrever um artigo discutindo com vocês. Apenas adiantaria que acho muito importante esse tipo de diálogo e até mesmo controvérsia em torno de ideias que merecem reflexões mais consistentes e até mesmo revisões e refutações. Infelizmente as condições do meio não favorecem o tipo de debate que me parece necessário para oxigenar e renovar as ideias. Aqui na revista já se esboçaram debates interessantes nesse sentido. Mas o panorama geral é de acomodação ideológica, desconversa e, no limite, intolerância.
A ilustração é maravilhosa. Como soem ser as ilustrações de João Rego. Quanto ao tema, não é minha praia, exceto como “consumidora”, isto é “paciente” ou “cliente” de psicanalistas (e psiquiatras também) em certos períodos da minha vida. Psicanálise é muito útil, embora eu não consiga ver que o seu consumo possa tornar-se universal – tampouco o dos produtos orgânicos, aliás.
Li o artigo e gostei da conclusão: “Psicanálise é psicanálise.” Ora essa, algo único e especial, não é redutível a nada, não dá nem para generalizar o tratamento de um para outro psicanalista.
Amigo João,
Li o seu artigo, e não tenho discordâncias a manifestar sobre ele. E a sua conclusão sobre a natureza da psicanálise – tautológica, como v. mesmo admite – não desmente a minha tese.
Aparentemente, discordamos sobre o conceito de mitologia. Para mim, é tudo aquilo que, não sendo ciência, tem a pretensão de substituí-la: religiões, ideologias, conhecimentos “revelados”, inexplicáveis “gnoses”, etc..
Para concluir: o caráter de “não-ciência” não desmerece a psicanálise, como esforço de compreensão do espírito humano, assim como não desmerece o marxismo, como tentativa de formular as leis que regem a evolução da sociedade humana. Temos, assim, o espaço aberto para o questionamento e o aperfeiçoamento desses produtos da nossa inteligência. Como, aliás, acontece também com a própria ciência, sempre provisória, sempre perfectível.
Um abraço.
Clemente Rosas
Caro Clemente:
Eu não defini a psicanálise como algo de natureza tautológica, e sim a minha compreensão sobre a sua questão. Fiz isto para desviar esta do perigoso fosso científico, que pode ser muito bom para as tecnologias que facilitam nossas vidas mas – repito, para nossa sorte – insuficiente para apreender o objeto que funda a psicanálise: nossa complexa e vasta humanidade.
Se caio na armadilha de tentar fortalecer alguns tópicos científicos, como o rigor de Freud em suas descobertas vou encarcerá-la junto com outras ciências, cujo sentido é sempre na confirmação de hipóteses, crescimento cumulativo e linear de conhecimentos e previsibilidade, para citar algumas características desta última.
A psicanálise não está aí para cumprir este papel. Em essência ela nos ajuda a lidar com desejos inconscientes que nos estruturaram e estruturam como sujeito, numa dinâmica de infinitas combinações incessantes e subjetivas – que vêm à tona em forma de sintoma, um vazio demandando uma fala para, minimamente, podermos lidar com estes.
No fundo, creio que, quando o analista se coloca no lugar da escuta do sofrimento humano, em uma relação transferencial, ele está se situando na posição de quem sabe que ali reside um elemento do enorme conflito estrutural que funda nossa humanidade: a pulsão e a cultura (kultur), sendo esta última uma desesperada tentativa de envolver com o manto civilizatório nossa barbárie – que insiste, a cada guerra, ou ato de violência contra o outro em não se deixar domar.
A Razão que move a psicanálise é uma razão cética sobre se um dia a cultura (kultur), enfim, triunfará sobre a barbárie.
Um forte abraço
João Rego
Amigo João: Não fale em “perigoso fosso científico”, nem confunda ciência, “lato sensu” com tecnologia ou ciência aplicada. Pois, para mim, além da arte – que constitui “outro ministério” independente, nada existe para melhorar o homem além do conhecimento cientíco, e o exercício da razão.
Com sou otimista por princípio, acho que vamos chegar lá, no futuro antevisto pelo seu primeiro comentarista, a quem rendo minhas homenagens.
Retificando: conhecimento científico.