João Rego

Death and Life - Gustav Klimt (1910).

Death and Life – Gustav Klimt (1910).

Nada nos salva da morte. Enquanto vivemos, sem que nossa consciência tenha acesso a este inevitável destino, somos impelidos a nos reproduzir, deixando que nossa herança genética passe para as próximas gerações. A ciência mostra que, apesar de termos nos distanciados das outras espécies vivas com uma consciência, linguagem e o registro da nossa história por meio da escrita, somos apenas mais um galho nessa imensa árvore da vida – onde estão as bactérias, as plantas e os grandes mamíferos. Tivemos todos a mesma misteriosa origem há 450 milhões de anos, quando a vida surgiu. Tudo que tem vida está interligado por meio de uma herança filogenética construída ao longo destes milhares de anos.

Eros e Thanatos – sexualidade e morte – são os dois deuses que regem nossa existência.

Sem ter a mínima ideia no vespeiro que estava mexendo, foram as vozes destes deuses que Freud ouviu através dos sintomas das “suas” histéricas. A princípio, e até por formação, utilizou os rigorosos métodos científicos da época, influenciado por grandes mestres como Charcot e outros. Este rigor científico-investigativo o acompanhou até a sua última obra, acrescido de um valioso estilo de escrita. Entretanto, gradativamente foi percebendo que a ciência era insuficiente para dar conta dos fenômenos psíquicos – pelo menos como a psicologia e a psiquiatria pretendiam — induzindo o sujeito a uma “volta à normalidade”.

Foi buscar na mitologia, nos estudos da história das civilizações e, principalmente, na literatura, saberes que pudessem ajudá-lo na investigação da alma humana. Recomenda, com ênfase, em seu texto A Questão da Análise Leiga estas áreas do conhecimento, tão distantes da medicina, como as principais fontes da formação do analista. Considera, ironicamente, a medicina como uma fonte de resistência à formação do analista — rejeitando a ideia de que a psicanálise estaria condenada a ser um apêndice da medicina.

Com relação a literatura, deixa muito evidente que séculos antes dele os escritores já haviam se debruçado sobre os conflitos humanos. Na obra de Shakespeare Freud encontra um vasto material para envolver e consolidar suas investigações científicas, permitindo-lhe ir muito além da ciência.

Com a descoberta do inconsciente e o conceito de sujeito como efeito das suas formações (do inconsciente), assim como Copérnico e Darwin, desnuda mais ainda nossa humanidade, projetando-a, porém, para um universo muito mais amplo e complexo que imaginávamos até então.

A cultura, a religião, o desejo, o sintoma e o sujeito são colocados pela psicanálise em uma perspectiva trágica de uma incessante luta entre a pulsão — aquilo que há de mais primitivo em nós— e a civilização, sendo o sofrimento neurótico não uma doença, mas um preço que se paga para existir como sujeito interditado na realização dos seus desejos —contidos e moldados pela lei que instaura a sociedade e seus valores.

Na tentativa de lidar com esse “sujeito ao inconsciente” passado e presente, causa e efeito, indução e consequência, tudo está virado de cabeça pra baixo se formos comparar o universo da psicanálise com a ciência e a forma como esta última tenta apreender o mundo fenomenológico. Para a psicanálise e suas formações do inconsciente, efeito e causa, presente e passado estão imbricados em uma complexa estrutura permanentemente ativa e dinâmica, onde retroatividade, condensação e deslocamento são terrenos por onde caminham e se formam o ser e seus desejos.

Lacan, mais tarde, situará a linguagem como a força motriz e essência desta estrutura, como também irá revolucionar o conceito de sujeito constituído pelo desejo que provém do outro.

Respondendo a provocativa questão do título deste artigo, se é a psicanálise uma ciência ou um mito. Primeiro, há uma impossibilidade de ser uma ciência, embora se utilize de alguns métodos científicos, posto que seu objeto é inapreensível pela ciência: nossa vastíssima e subjetiva humanidade—para nossa sorte. Segundo, não é tampouco uma mitologia dos tempos modernos, embora se utilize da rica e fantasmática visão que a mitologia clássica nos traz – como uma protovisão do humano e seus indissolúveis conflitos. Como uma nova área do conhecimento humano — essencialmente libertária, materialista e destruidora de mitos e valores que aprisionam e limitam nossa existência—, respondo de forma intencionalmente tautológica: psicanálise é psicanálise.

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