A doença infantil da juventude é a rebeldia. O jovem rebela-se, antes de tudo, por causa da sua insegurança e da necessidade de afirmar sua individualidade. Esta supõe a negação dos pais ou de quem simbólica ou literalmente representa os papéis que assim os definem. Chovendo no molhado, os pais são nossos modelos primários. Mais do que isso, portamos no nosso corpo e no nosso psiquismo, na nossa condição genética, as marcas indeléveis que nos transmitem. Por isso precisamos viver nessa fase da nossa vida essa relação negativa contra eles. Precisamos negá-los como meio necessário para afirmar nossa diferença, nossa singularidade diante deles e da vida. Além disso, o jovem também se rebela contra a vida, contra a realidade que o oprime. Quem já não ouviu ou disse este lugar comum: apagamos na maturidade os incêndios que ateamos na juventude? Sei que os termos do lugar comum não são estes, apenas limito-me a traduzi-los sem lhes comprometer o sentido substancial.
Na minha juventude, a fração mais consciente da minha geração rebelou-se contra a ditadura militar. Considerada a totalidade dos jovens da época, éramos uma minoria insignificante. Mais reduzida ainda era a fração dos radicais que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura. O exemplo genérico sugere a imprecisão do conceito de geração, tão correntemente usado nos estudos historiográficos. Como a oposição ativa e institucionalmente organizada foi suprimida (daí a ditadura), opositores do meu tipo negavam o poder político migrando para dentro de si próprios. Era uma forma de oposição de raiz subjetiva, à margem da esfera pública, que provavelmente punia apenas o opositor. Pelo menos na instância imediata ou empiricamente apreensível. Afinal, o opositor se tornava um desajustado vivendo na contracorrente dos valores dominantes.
Foi por me tornar um opositor da ditadura que passei a me identificar como um crítico e inimigo intransigente dos valores dominantes. Essa oposição se estendia à esfera da família (daí detestar na minha família o que identificava como valores típicos da pequena burguesia), da religião (que não passava de ópio do povo), do capitalismo compreendido como sistema regulador da nossa existência material. Apesar de tanta negação, meu ceticismo afiado por leituras ideologicamente conflitantes vacinou-me contra a tentação de aderir ao marxismo. Assim, meu ambiente de freqüência e escolha era a esquerda, mas fui sempre um companheiro de viagem. Isso me tornava alvo fácil dos que me acusavam de ser um liberal pequeno-burguês. Outros me acusavam de ser trotskista simplesmente porque eu preferia a literatura à política e era leitor de Freud e da psicanálise.
Para além da mera contestação política, os anos 1960 e 1970 acabaram ultrapassando em muito o marco da política para se transformarem numa era de autêntica revolução dos costumes. De fato, a contestação que então irrompeu transbordou dos marcos da política compreendida no seu sentido convencional espraiando-se para os costumes gerais da sociedade. A própria disseminação de regimes ditatoriais em praticamente toda a América do Sul acabou concorrendo para deslocar a rebeldia da juventude para o âmbito dos costumes. Isso grosseiramente explica a explosão das formas de comportamento e das modas que na prática representaram uma força de erosão da família tradicional, dos papéis pertinentes aos gêneros, à sexualidade, ao conjunto das normas de regulação ética da sociedade.
O fato é que, bem ou mal, minha geração, compreendida no sentido acima sugerido, orientava sua rebeldia contra alvos bem definidos. Provavelmente bem poucos sabiam o que precisamente queriam, mas quase todos sabiam o que não queriam. Tínhamos um objeto de ódio contra o qual podíamos em graus variáveis desfechar nossa energia agressiva, nossa rebeldia carente de válvulas de escape e vias de afirmação da nossa individualidade. Um dia, porém, dei-me conta chocado de que me imaginava mudando o mundo, um sistema de poder que me reduzia à insignificância de um grão de areia na imensidão da orla marítima, quando não tinha autonomia nem para viver por conta e risco próprio. Filho de um pai cuja privação de autoridade e comando tornava-o um autêntico pai permissivo avant la lettre, típico da cultura em que hoje vivemos, tinha medo do mundo e estava com certeza totalmente despreparado para enfrentá-lo. Foi aí que, com muito medo, decidi sair de casa e aprender a viver por conta própria. Apreciando retrospectivamente minha vida, não tenho dúvida de que esta foi a decisão mais importante que tomei sem então ter noção clara do seu alcance. Se não a tomasse e seguisse, apesar do medo e de todas as tribulações que daí advieram, teria provavelmente fracassado de forma absoluta.
Para além das motivações negativas – negar a família de que era parte e na qual fui progressivamente deixando de me reconhecer; negar valores morais relativos à sexualidade, à religião, às ambições de futuro e de vida bem sucedida etc – sentia-me também impelido por motivações positivas. Por exemplo: conquistar a liberdade de dormir com minha namorada; viver uma vida regida por valores sexuais e afetivos mais livres; contribuir dentro dos meus limites individuais para a fundação de uma sociedade mais livre e portanto menos repressiva. Assim, saí pelo mundo decidido a não repetir a história do meu pai, fortalecido pela crença de que viveria uma vida muito melhor do que aquela possível nos marcos do mundo em que me formei – e sobretudo deformei, assim ponderava ao cotejar o real com o desejável, o mundo que herdei contra minha vontade com o que me acreditava capaz de conquistar. Não preciso dizer que apanhei muito da vida, que fiquei muito aquém do que ingenuamente me supunha capaz de alcançar. De qualquer forma, continuo acreditando que minha rebeldia, a coragem relutante com que larguei a família para fazer de mim um indivíduo no sentido moderno do termo, tudo isso valeu a pena e me franqueou uma forma de vida melhor do que antes vivi.
Anos mais tarde, já acomodado na fase em que deixamos de ser incendiários para apagar o fogo das paixões juvenis, muitas vezes repassei perplexo na memória coisas que fiz e simplesmente não me podia mais imaginar fazendo. Lembro-me com mais nitidez que essas rememorações perplexas se amiudaram nas minhas noites de solidão inglesa. Cheguei à Inglaterra no dia preciso em que completei 40 anos. Se há uma idade da razão, comigo muito duvido, diria que a minha inaugurou-se no mundo inglês. Se fosse o caso de indicar uma data precisa, escolheria a data da minha chegada, quando pus as pernas trêmulas (uma delas aliás literalmente enferma devido a uma cirurgia para curar uma ruptura de menisco interno) num solo e mundo absolutamente estrangeiros. Ali, naquele exato momento, iniciei um estágio completamente novo na minha vida. Algum tempo depois, curtindo uma solidão prolongada e indizível, no entanto também estranhamente sólida e serena, surpreendi-me no silêncio e no frio repassando na memória os incêndios ateados no Brasil durante minha juventude. Pensava então, completamente perplexo, por vezes entre risadas de espanto e incredulidade, como fui capaz de fazer aquelas coisas nas quais já não me reconhecia, coisas que com certeza não mais sequer cogitaria fazer novamente. Isso traduz, de forma um tanto simplista, minha passagem da juventude para a maturidade.
O que hoje move a rebeldia da juventude? Uma coisa me parece certa: ela não tem um alvo de negação definido. Nisso diria que é radicalmente diferente da minha geração. Na medida em que precariamente o percebo, o jovem de hoje, o típico jovem de família classe média brasileira, não tem contra o que se rebelar. A despolitização do espaço publico privou-o da capacidade de contestar, por exemplo, os valores do capitalismo globalizado. O que Marx designava como fetiche da mercadoria tornou-se uma força tão onipresente no mundo em que hoje vivemos que precisamos de algo que negue nossa humanidade mais elementar para nos compenetrarmos de nossa diferença do reino da mercadoria. Narro um exemplo preciso que certa vez vi no Jornal Nacional da rede Globo. Uma reportagem sobre o tratamento reificante (quem ainda usa este termo que tanto se entranhou na minha consciência antiburguesa?) imposto pelos planos de saúde aos usuários ou pacientes (estes termos de resto suprimem nossa humanidade individual) mostra o que acontece a muitos cujo tratamento urgente e inadiável é suspenso por irresponsabilidade criminosa da operadora do plano. Um pai, cuja filha foi vítima desse crime corrente e impune neste Brasil de códigos legais de ordinário reduzidos a letra morta, declarou ao repórter: “Minha filha não é um carro que levamos de uma oficina para outra”.
Com ou sem juventude, ninguém se rebela contra essas afrontas a nossos direitos humanos que são todos os dias espezinhados pelo tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Precisamos de exemplos da natureza do que acima descrevi para nos dar conta de que há um fator humano diferenciador da nossa condição. Noutras palavras, nossa humanidade falível não deve ser tratada como tratamos um carro avariado. Abstraída essa circunstância excepcional, no entanto, qual é nossa percepção ética e existencial do carro dentro da natureza técnica e instrumental que rege nossa chamada civilização? Vivemos em cidades desumanas cujo funcionamento está dirigido para a supremacia do automóvel. O ideal de todo indivíduo típico, dentro dessa civilização, é comprar um carro para em seguida mergulhar nos labirintos congelados do nosso trânsito que não mais transita. A máquina publicitária, expressão dos valores que movem a ação e a consciência alienada do presente, satura nossas fantasias de consumo com automóveis e uma rede de símbolos de aquisição que, no limite, reduzem nossa humanidade àquilo que os planos de saúde executam e ocasionalmente se revela numa reportagem de noticiário televisivo: somos apenas máquinas degradáveis e descartáveis. Por isso os planos de saúde tratam-nos como os carros avariados são tratados: atiram-nos em qualquer oficina, quando não nos reduzem pura e simplesmente a ferro velho.
Um artigo lúcido e corajoso. Uma reflexão sincera. Um verdadeiro depoimento de uma geração, ou pelo menos, de uma significativa parcela dela.
Meu caro Sérgio: Com inteira franqueza, acho que sua experiência, embora pouco a conheça, é muito mais representativa da nossa geração do que a minha. Fui dos que chegaram mais tarde à política. Por isso minha militância foi bem mais restrita e temorosa. Daí afirmar que minha contestação se traduziu bem mais no plano subjetivo, naquilo que chamei de migração para dentro de mim próprio como forma de negação da realidade política objetiva. O que talvez melhor nos identifique seja a capacidade de revisar nossa experiência coletiva e pessoal. Até onde percebo, poucos fizeram isso. Mas isso é uma história longa e complicada demais para ser abordada nos limites de um mero comentário. Um abraço, Sérgio, e grato pela leitura generosa.
Já bem mais que adolescente quando precisei lutar contra o regime resultante do golpe de estado de 1964 (que me apanhou aos 22 anos, recém-concluída a faculdade e dirigente da Juventude Comunista do PCB), ainda assim vivi rebeldias como as assinaladas no excelente artigo de Fernando Mota Lima e julgo compreender, pelo menos o suficiente para endossar, suas considerações. Só discordaria (em grau) de uma que outra conclusão, coisa de somenos. Por isso limito-me a um aspecto, diria, pura e afortunadamente formal e escrevo esse comentário apenas para registrar a felicidade ímpar da frase com que inicia o artigo: “A doença infantil da juventude é a rebeldia.” A ‘boutade’, à primeira vista um anacronismo, ganha outros foros por que brilhante, sutil remissão ao título de uma obra de Lênin (‘Esquerdismo: doença infantil do comunismo’), então parte necessária de nossas leituras ‘obrigatórias’. Por coincidência revisitei-a, há um par de anos; pareceu-me, afora eventuais transposições no tempo e espaço sempre arriscadas, datada como o autor, sobrepujado pela insanidade stalinista que não soube evitar e sepultou-lhe as teorias. Mas o título permanece novo, viçoso e citação por Mota Lima é um achado retórico.
Caro Marco Antônio: Muito grato pelo comentário, que amplia os limites do meu artigo baseado em memórias coletivas e pessoais. Você observou muito bem a procedência da frase que abre o artigo. É uma paráfrase da obra de Lênin citada no seu comentário. Pena que somente agora, inspirado nas suas palavras, me ocorra uma outra consideração que teria enfiado no artigo e penso que o tornaria melhor. É a seguinte: baseado na evidência que conheço, relativamente ampla, é na juventude que nos convertemos a ideologias como a do comunismo. Quase todos os grandes líderes e teóricos das revoluções, não apenas do comunismo, convertem-se a esses credos seculares na juventude. Uso esta expressão, credos seculares, por não ter mais dúvida de que essas ideologias emergentes na modernidade são um substituto da religião convencional. Melhor dizendo, da tradição cristã minada pelo avanço da secularização moderna, sobretudo a partir do Iluminismo. Todos os teóricos dessas ideologias salvacionistas são filhos diretos ou indiretos do Iluminismo. Quem bem refletiu sobre isso foi George Steiner na sua obra Nostalgia do Absoluto. O assunto merece um artigo para ser melhor explicado. Muito grato, Marco Antônio.
DE pleno acordo com o texto, e também com o comentário acima, do seu autor.
Mais velho como sou, minha experiência de vida foi um pouco diferente. Vivi o tempo de um socialismo esperançoso, com o grande prestígio internacional da União Soviética e as promessas da Revolução Cubana. Quando veio 1964, tentei persistir na atividade política clandestina, mas logo rejeitei, por ilusória, a alternativa da resistência armada, e fui me encolhendo, como um jabuti no seu casco, e sobrevivi. Louvo os comapnheiros, mais ingênuos ou mais obstinados, que perseveraram.
Só não tive essa história de “fuga para dentro”. Passei direto da perspectiva utópica para razão crítica e o que Merquior chamou de “reformismo inteligente”
Meus cumprimentos pela qualidade do trabalho.
Meu caro Clemente: reitero o que escrevi para Sérgio Longman, talvez com maior razão. Como li seus livros, que contêm bastante memória política, e já conversei um pouco com você sobre o assunto, sei que é muito amplo e rico o espectro da sua experiência de militante, de participante de um dos mais conturbados e ativamente esperançosos momentos da nossa história. Como também respondi a Sérgio, cheguei mais tarde, quando todas as vias de ação política legal estavam fechadas. A fuga para dentro é na verdade variação de uma expressão usada por Antonio Candido para caracterizar os que, como eu, cresceram depois do “socialismo esperançoso” mencionado por você. Quando aderi à política, li sobretudo os marxistas, que eram já hegemônicos, mas lia paralelamente liberais radicais como Bertrand Russell, crítico do comunismo desde quando foi conhecer de perto a Revolução Russa e conversou com Lênin (a quem caracterizou como um fanático) e socialistas democráticos e abertamente anti-stalinistas e anti-socialismo real, expressão que não existia ainda. Penso aqui em Erich Fromm. Basta lembrar seu livro A sobrevivência da humanidade. En Passant, como hoje diria Lula depois de emprenhar os ouvidos conversando com seus seguidores acadêmicos, nunca considerei o PT como socialismo democrático. Concluo com uma ligeira objeção, Clemente. Já não consigo qualificar os que optaram pela luta armada como “ingênuos ou mais obstinados”. Eles cometeram um gravíssimo erro político que concorreu para agravar ainda mais a brutalidade da ditadura. Lembraria antes a frase famosa de Graham Greene:a insanidade da inocência. Enfim, admiro a coragem dos que pegaram em armas, mas não celebro o que fizeram nem celebro seu heroísmo. Um abraço, Clemente, e grato pelas adições valiosas ao meu artigo.
Corrigindo: COMPANHEIROS e PARA A RAZÃO CRÍTICA
Meu ilustre escriba Fernando da Mota Lima.
Tomo a liberdade de comentar seu artigo pois, fala de uma época em que estive presente. Tudo se encaixa, desde o início ao final de suas palavras. Entretanto, um trecho, que reproduzo, diz tudo de nós daqueles tempos: Provavelmente bem poucos sabiam o que precisamente queriam, mas quase todos sabiam o que não queriam.
Trovabraço.