Elimar Pinheiro do Nascimento

Lenin in Smolny, Isaak Brodsky, 1930.

Lenin in Smolny, Isaak Brodsky, 1930.

 

Caro amigo, li sua missiva com alegria e tristeza. Alegre por vê-lo ainda crente e sempre disposto a lutar por um mundo justo. Triste porque tenho a impressão que o seu combate não tem muito fôlego, não vai muito longe.

Tenho o sentimento de que você defende uma proposta do passado, que não tem mais o mesmo vigor de antes, nem a capacidade de mudança que você imagina. Você defende um partido que perdeu sua hora. Não morreu, nem morrerá. Terá sua importância no cenário nacional, mas se transformou em partido convencional, sem utopia e sem capacidade de erguer uma bandeira que atraia a juventude e nos traga esperança. Seus líderes e sua base social mudam, caminham para a trajetória de conquistar o poder para fazer benesses aos seus eleitores, e, sobretudo, servir aos seus membros, mas não para mudar uma Nação.

Se é que de fato este desejo e esta possibilidade existiram um dia, além de nossa imaginação. Nós que nos conhecemos lutando contra a ditadura e enfrentando o frio do exílio europeu e do frio ainda mais árduo, da saudade. No meu caso conheci também a África, para onde me dirigi com a esperança de criar um novo socialismo.

Minhas considerações não têm como alvo suas ideias e menos ainda seus ideais, que respeito muito. Elas abordam questões que você suscita, mas referem-se ao ambiente que vivemos atualmente.

Tento compreender o que se passa, mas me incomodam as avaliações circunstanciais. O que chamo de análises de conveniência, pois elas não me ajudam a compreender o que se passa.

Dou alguns poucos exemplos.

1.Quando o Nordeste, nos anos 1980, estava nas mãos do antigo PFL, era porque os nordestinos eram atrasados, diziam os petistas, em particular sua vertente hegemônica, no caso, os paulistas. Quando o Nordeste na primeira década deste século fechou com Lula, transformou-se na vanguarda.

2. Quando os votos mais pobres, denominados de descamisados, elegeram Collor era porque eram ignorantes. Agora que votam em Lula, são clarividentes.

3. Quando a classe média estava com o PT, nos anos de 1980 a 2010, era o segmento intelectual e avançado do País. Agora que deu as costas para o PT viraram elite conservadora e racista.

4. A imprensa que nós temos é a mesma da fase áurea do Lula, quando sua popularidade chegava aos 80%, e ninguém reclamava. Agora a mídia virou instrumento da elite reacionário e dos agentes do imperialismo. Reclamam que a imprensa não diz o que Dilma está fazendo de bom. Mas imprensa nunca deu notícia do avião que chegou bem, apenas o avião que caiu. Porque as pessoas se interessam é por este e não por aquele.

Em resumo, a análise de quem está conosco é bom e quem está contra é ruim é pobre e não permite compreender o que se passa. Ajuda aos que querem se convencer que estão certos e os outros errados, são argumentos, no mau sentido, ideológico porque aludem à realidade, iludindo-a.

Veja a questão da intolerância que se manifesta ultimamente em vários pequenos incidentes amargos, condenáveis. Não há dúvida que se deve repudiar. São execráveis.

Você me fala de um ódio, de uma intolerância, antes desconhecida, e agora manifesta com força nas redes sociais e vez ou outra em nossos restaurantes ou aeroportos. Quais suas raízes?

Tem um componente de classe? É provável. Mas, não podemos esquecer que no governo Lula quem mais ganhou foram os bancos e não os pobres, que ganharam, claro, mas menos. E os banqueiros e grandes empresários industriais pressionaram o PT em 2014 para que Lula fosse o candidato e não Dilma. Portanto, o capital também se beneficiou e apoiou Lula por um bom tempo, e alguns ainda o fazem hoje. Lula conseguiu, e ainda consegue, colocar junto capital e trabalho. E apenas no imaginário de alguns de nossos amigos persiste a ideia de que o capital está contra o governo do PT e o proletariado a seu favor.

Há setores empresariais e de classe média que têm e sempre tiveram ódio do PT, e de qualquer força política que se coloque efetivamente contra a desigualdade social, porque são empedernidos na defesa de seus privilégios. E não aceitam viver em uma República. São monarquistas enrustidos.

Contudo, não podemos desconhecer que o PT tem uma história de intolerância. Expulsou três de seus deputados quando votaram em Tancredo. Pediu o impeachment de todos os presidentes desde 1989, incluindo Itamar. Expulsou Erundina porque ingressou neste governo. Interveio nas executivas estaduais toda vez que não estavam de acordo com a corrente hegemônica do partido, desde o Rio de Janeiro de Wladimir Palmeiras, até o Maranhão, humilhando o bravo resistente à ditadura, Manoel da Conceição, pois obrigou o PT a ser base de apoio da família Sarney. Não teve coragem de intervir em MG, quando alguns de seus quadros aliou-se com o PSDB na prefeitura de Belo Horizonte. Como nunca o fez no RS. Por uma razão simples, eram os dois polos que disputavam a hegemonia com os paulistas, e, portanto, tinham força. Os mais fracos, inclusive meu Pernambuco, não teve a mesma sorte. E estou citando apenas alguns exemplos.

Caro amigo, não podemos esquecer que foi o PT quem inventou o slogan: nós e eles.

O PT conviveu sempre mal com a ideia e o ideário democrático. Em grande parte, porque em sua trajetória a hegemonia foi ganha pela vertente dos sindicalistas, com apoio de alguns quadros da esquerda que lutaram contra a ditadura. As comunidades de base, e militantes mais democráticos, foram deixando o partido. Ora, o que menos sindicalistas conhecem e gostam é democracia: conheço bem o ambiente porque já fui um deles. Já vi professor sendo literalmente chutado para não subir no palanque porque era de corrente contrária. Os sindicatos brasileiros lembram os trade unionistas criticados por Lenine na passagem do século XIX ao XX: sabem defender seus interesses corporativos, mas são incapazes de lutar pelas mudanças estruturais. No governo Cristovam no DF, o atual senador concebeu um plano para universalizar as creches no DF. Os recursos proveriam de um fundo composto de três partes: do governo federal, com Ruth Cardoso, do governo do Cristovam no DF e dos servidores distritais que abririam mão da ajuda que recebem, prevista em lei. As crianças dos não servidores não puderam ter creches porque o sindicato travou as negociações. De um instrumento de inclusão social os sindicatos, em muitas situações, funcionam como instrumento de apartação.

Mas, não são apenas os sindicalistas que têm dificuldades em conviver com a ideia de democracia, sempre olhada como uma herança burguesa a ser suportada. Esta ideia era reinante e predominante nas esquerdas brasileiras dos anos 1960/1970 da qual participamos. Queríamos substituir a ditadura militar por outra ditadura, a do proletariado.

Talvez um componente não desprezível nesta questão da intolerância resida em um sentimento de traição que uma parte da classe média, em geral escolarizada, sente em relação ao PT, e a Dilma em particular. Ela que ingressou no partido em 2001 e dez anos depois era eleita para a Presidência por este mesmo partido. Classe média que apoiou o PT desde os anos 1980/1990. Lembremo-nos que o PT nasceu como o partido da ética e da mudança e se tornou um partido igual aos outros. Lula mesmo já disse várias vezes: um partido convencional. Mesmo o combate a pobreza que era um trunfo dos governos petistas – e meritório – está em vias de ser destruído com a recessão por três anos (2014/2015 e 2016), e o desemprego que ameaça chegar a casa dos dois milhões.

O PT atual traiu a ética e as propostas de mudanças das suas origens. E teve muitas chances de fazer estas mudanças, em particular a reforma política, que poderia reduzir drasticamente o custo das eleições e retirar as empresas deste meio, e não o fizeram.

Foram cometidos muitos erros. Os mais notórios estão presentes na condução desastrosa da economia no primeiro mandato de Dilma que nos levou a atual situação, com a invenção da “nova matriz econômica”. Uma piada…. de mau gosto. Os resultados estão aí. E não adianta dizer que a culpa é da economia mundial que se retraiu, pois enquanto entramos em recessão econômica outros países tem crescimento de 3 a 5% ao ano. Sem falar da China, com 7%. Mas, ela sempre ocupou um lugar a parte nesta matéria.

E no primeiro ano de governo, os erros continuaram, um atrás do outro. Começando por chamar Levy – independentemente de sua competência ou da justeza de suas posições ou não – que Dilma falava, seria a atitude do Aécio e da Marina: entregar a economia a um banqueiro. Continuando na desastrosa eleição do presidente da Câmara dos Deputados, fruto da arrogância de sua entourage. E, muitos outros, como o de propor para 2016 um orçamento deficitário. Ridículo. O resultado foi a queda do prestígio brasileiro no mundo das finanças internacionais.

Todos esses erros nos levaram a esta situação de recessão perto de 4%, inflação superior a 10%, déficit governamental de mais de 120 bilhões e desempregados acima de um milhão.

Mas, você me fala de defender o governo Dilma e o PT para barrar o crescimento da direita. Foi na base dos erros do primeiro mandato que a direita começou a se reorganizar e crescer. E ao invés de enfrentá-los corretamente, reconhecendo os erros e adotando uma política consistente, agravamos o quadro com uma campanha eleitoral em que a Dilma ganhou, mas não levou. Foi uma campanha imunda, para um partido que se pretendia o paladino da ética.

O PT, e com ele a esquerda, definha e a direita conservadora tende a assumir o poder, cedo ou tarde. Um retrocesso. Mas o que fazer? Defender o PT? Se houvesse possibilidade de mudança seria o primeiro a me inscrever na defesa. Mas com esta arrogância, com a política adotada, é indefensável.

Creio que estamos em um beco sem saída. Adoraria que o PT fizesse sua autocrítica, mudasse, e o governo da Dilma deslanchasse. Todos apoiaríamos. Seria ótimo, mas não tenho esperança.

Vivenciamos no momento atual um beco sem saída, como bem definiu Eliane Brum: “Duas coisas são hoje indefensáveis neste País, o impeachment e o governo Dilma”.

Caro amigo, se encontrar a luz no fim do túnel, por favor, nos fale. De toda forma, lhe falo que não estou pessimista, nem rancoroso. Por mil razões. Duas em particular. O mundo político não se divide entre esquerda petista e direita reacionária. Outras forças políticas existem e estão se movimentando para ocupar o vazio político deixado pelo PT. Em segundo, acho que a esquerda – se vai continuar a ser um termo de referência no futuro não sei – tem e deve se redefinir, rever seu ideário, perder seus preconceitos. Reler as ideias liberais e socialistas, refletir sobre as derrotas do socialismo e suas razões, repensar o papel do Estado, valorizar a autonomia dos indivíduos.

Finalmente, no médio e longo prazos tenho a esperança que conseguiremos vencer a maré e recriar uma força política tolerante, visceralmente democrática, comprometida com a sustentabilidade, sem arrogância, e consistente; acolhedora e sem pretensões de hegemonia forte e autoritária. E, sobretudo, aberta ao entendimento das mudanças que o mundo moderno conhece com uma velocidade atroz. Creio que seremos capazes de jogar as ideias velhas e sem sentido, os discursos sem respaldo empírico, na lata do lixo, e renovar nossa compreensão do mundo e nosso ideário. Mas é difícil e exige coragem, pois muitos, inclusive muitos amigos, ficarão contra, e me execrarão. Espero que você não seja um desses. E continuemos o debate. Se formos democráticos, ambos teremos mudado depois de um tempo. E, provavelmente, para melhor. Com uma compreensão mais fina do que se passa ao nosso redor.

Feliz 2016.

Elimar Nascimento é Sociólogo, professor da UnB.

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