Fernando da Mota Lima

 

Sérgio Longman escreveu um livro que por certo vai contrariar boa parte da esquerda ainda resistente a ajustar suas contas turbulentas com a história. Essa é mais uma das muitas ironias da história que mais adiante cuidarei de melhor explicitar. Começando pelas linhas mais visíveis e elementares do livro, Sérgio Longman narra no Último Comunista em Cuba a viagem que empreendeu acompanhado por Heráclito, que confere título à obra, e Rubens. Os acasos da amizade juntaram na mesma estrada três amigos que, como logo observará o leitor, têm pontos de vista muito diferentes sobre a ideologia e, portanto, também sobre o modo como apreendem a realidade cubana. Este é talvez o traço mais fascinante da narrativa desfiada por Sérgio Longman. Fosse ele um ficcionista, um escritor empenhado em injetar imaginação ética e dramática aos fatos vividos ao longo da viagem, teríamos com certeza um enredo de romance lastreado pela tensão entre a amizade e o antagonismo ideológico, entre dois modos irredutíveis de percepção da realidade. Mas o próprio autor se confessa um observador aderente aos fatos. Por isso, como ele próprio afirma, o livro que se vai ler é o de um documentarista, o do viajante atado à trama dos fatos aferíveis, não impressões de viagem tecidas pelo olhar subjetivo de quem escreve. Isso não o isenta, friso, de também incorrer em apreciações subjetivas quando parte dos fatos para a avaliação do regime político que os produzem, assim como nas passagens em que reluta entre a amizade e a divergência ideológica.

Alongando um pouco o tema esboçado ao final do parágrafo acima, as primeiras linhas do livro de Sérgio Longman já o anunciam de forma nítida. Se a dedicatória explicita a amizade e a admiração que Heráclito inspira ao amigo autor, o desdobramento dos parágrafos de abertura também evidencia as tensões ideológicas que melhor se definem à medida que o livro avança e as pressuposições ideológicas se chocam com a realidade. Quanto mais avançamos na leitura, mais nos apercebemos do quanto são inconciliáveis a percepção e a apreciação que o autor e Heráclito tecem da realidade cubana. A obra vai assim gradualmente dividindo-se entre a amizade e o antagonismo ideológico. Esse o nervo ético e dramático ao qual antes me referi.

Longe de mim a pretensão de explicar a resistência notável ainda em muitos comunistas e outros esquerdistas de proceder a um balanço efetivamente crítico do fracasso colossal do comunismo. Esta é, portanto mais uma ironia da história: a ideologia que tanto se extremou na crítica e autocrítica racional da realidade histórica revela-se estranhamente incapaz de ajustar suas contas com a história. Mencionando sumariamente esta questão no parágrafo inicial, assinalei as ironias da história que me parecem projetar alguma luz sobre essas regiões sombrias da história e do psiquismo humano. É disso que passo a cuidar isento de qualquer pretensão, reitero, de expor explicações satisfatórias. Limito-me apenas a indicar algumas ironias observáveis na história de algumas ideias e convicções de Karl Marx e seus seguidores.

A história das ideias está saturada de mal-entendidos e ironias, quando não contradições aberrantes. Nesse sentido, arriscaria dizer que, quanto maior a difusão de um sistema de ideias, maior a possibilidade de mal-entendidos e desvios entre as proposições originais do sistema e a sua recepção pelos intérpretes e seguidores. Como a difusão e o impacto das ideias de Marx foram de fato extraordinários no século 19 e sobretudo no século 20, não é de estranhar as deformações que sofreram.

Dado que o objeto dessas reflexões é a Revolução Cubana, começo lembrando que, segundo Marx, socialismo em país pobre socializa apenas pobreza. Foi precisamente por essa razão que ele, baseado nas leis do desenvolvimento histórico, que acreditava haver descoberto, previu que a revolução proletária irromperia nos países capitalistas mais avançados. A ironia histórica, como sabemos, desmentiu as leis científicas de Marx. Assim, a primeira revolução alegadamente proletária eclodiu na periferia do capitalismo. Trocando os fatos em alguns miúdos, a Revolução Russa foi fruto de um complexo de fatores que nada tinham a ver com as previsões de Marx. Se a realidade não se comportou de acordo com o previsto pela ideologia, pior para a realidade, que a partir de então teve que ajustar-se à camisa de força do dogma. Como, no entanto, não há dogma que se imponha absolutamente à realidade, esta acaba forçando os ortodoxos a rever e corrigir muitas das proposições originais do sistema.

Embora isento da preocupação de teorizar sobre a realidade observada, Sérgio Longman demonstra, com a simples narração dos fatos, como o regime cubano foi incapaz de promover o desenvolvimento das forças produtivas, lembrando o jargão tão caro aos marxistas. Se é verdade que a revolução promoveu notavelmente a igualdade social num grau inconcebível em qualquer país da América Latina, avançando em quesitos de desenvolvimento social patentes no aprimoramento da educação e da saúde, na esfera econômica Cuba continuou sendo uma economia de base agrária e monocultora. Enquanto contou com o apoio decisivo dos subsídios provenientes da União Soviética, foi possível manter a economia funcionando. Mas aí veio o desabamento imprevisível e colossal de todo o bloco soviético e Cuba semelha agora, a julgar pelo livro de Sérgio Longman e tantas evidências facilmente verificáveis, um país afundado na inércia econômica e social.

Se o autor constata e narra os fatos acima, se a paralisia do país é evidente na realidade imediata apreendida pelo olhar do narrador e pelo olhar da câmera, que documentou fotograficamente a paisagem física e social do livro, Heráclito, o último comunista, parece viajar imerso num sonho. O livro nos transmite a impressão, até aonde vai a percepção do autor, de que estar em Cuba, para Heráclito, é como viver um sonho da juventude, algo que embalou suas fantasias ideológicas e retorna, sob o estímulo da realidade suspensa no tempo, como a realização de um sonho.

Retomando a questão das ironias da história, o marxismo, seguindo ainda a concepção de Marx, é uma filosofia da práxis. Marx enuncia isso de forma inconteste quando diz que os filósofos até então se limitaram a interpretar a realidade. A questão, acrescenta ele, é transformá-la e essa transformação é fruto, antes de tudo, da prática histórica. Além disso, a transformação proposta por Marx tem um sujeito histórico preciso: o proletariado. É, portanto, irônico que a filosofia da práxis não passe hoje de uma teoria adotada por intelectuais acadêmicos. Esses revolucionários de cátedra são facilmente identificáveis nos círculos acadêmicos latino-americanos, mas sobrevivem ainda nos países do capitalismo avançado. Pergunto-me se a adesão de tantos intelectuais ao marxismo não é um sintoma da nossa carência de uma religião substitutiva, ou uma religião secular, como tantos já salientaram, inclusive o autor deste livro que comento. Desde o advento do Iluminismo, no século 18, a aceleração dos processos de modernização, tão bem estudados por Max Weber e outros teóricos, esvaziou o céu da transcendência religiosa. Os intelectuais, até por serem um dos agentes desse processo, dissolveram sob os próprios pés o solo das crenças tradicionais. Talvez por isso tantos tenham abraçado ideologias salvadoras como o marxismo com um fervor dogmático capaz de inspirar inveja a muitos religiosos convencionais.

Lembraria por fim uma outra ironia: a da conversão do universalismo marxista em ideologia particularista. Mais precisamente: nacionalista. Quem não lembra o tom de convocação revolucionária inscrito no Manifesto Comunista: “Proletários do mundo inteiro, uni-vos”? O sentido universal deste enunciado é inquestionável. No entanto, devido a circunstâncias históricas que não vem ao caso expor num mero prefácio, logo o universalismo da revolução foi convertido em ideologia nacionalista. Esta foi a variante irônica do marxismo que triunfou na América Latina e no terceiro mundo. Não esqueçamos de que antes triunfou na própria Rússia imposta pelo stalinismo.

Talvez importe salientar que a crítica ao fracasso evidente da Revolução Cubana não supõe, pelo menos no caso de quem assina estas linhas, adesão ao capitalismo tal como existe em países do tipo do Brasil. Entretanto, isso é o que de ordinário muitos comunistas e simpatizantes deduzem e logo denunciam quando a crítica é enunciada. Com freqüência, o leque de rótulos ideológicos lançado contra o crítico é tão esmagador que anula, já de partida, qualquer possibilidade de discussão. O crítico é prontamente desqualificado como neoliberal, imperialista e outros insultos e assim estamos conversados.

Queria de minha parte frisar que nunca endossei nem endosso o modelo de capitalismo que existe no Brasil. Para mim ele é e continua selvagem, para lembrar uma expressão apropriadamente difundida durante a última ditadura. Acredito que nossa dívida histórica é tremenda, manchada por desigualdades iníquas, repiso a frase que já virou chavão. Portanto, estamos ainda muito longe de criar uma verdadeira democracia social. Por isso também afirmo que grande parte do povo brasileiro vive, no nosso cotidiano opressivo, em condições que bem pouco diferem de uma ditadura. O que acredito é que as soluções revolucionárias propostas por comunistas e outros militantes de esquerda não resolveram os problemas fundamentais associados à desigualdade e à injustiça social e ademais impuseram um custo humano catastrófico aos países onde tais experimentos sociais foram tentados. O que acredito é que a solução, nada fácil num país com as características do Brasil, seria algo semelhante à social democracia existente em alguns países europeus. E fico por aqui por não ter competência para argumentar de forma mais razoável.

Concluo com uma nota bem pouco otimista. Receio que este prefácio esbarre na resistência do leitor guiado pela ideologia cega e por isso hostil ao exame da realidade. Os argumentos que nele exponho, inspirado pela intenção de propor as questões num terreno objetivo e teoricamente isento, além de objetivar estabelecer algumas conexões entre a matéria do livro e as implicações teóricas e ideológicas que talvez concorram para esclarecer melhor o que Sérgio Longman narra ao longo da sua viagem, não precisam convencer quem já sabe do que acima escrevi. Por outro lado, duvido que sejam acolhidos com isenção crítica pelo leitor que deles diverge ou segue fiel a uma ideologia diluída em religião secular, como aliás observa o autor. Restaria apostar no leitor jovem, aquele que não foi contaminado pelos embates e experiências típicos da geração da qual Sérgio Longman, Heráclito e eu somos parte. Como dizem os autores conscientes de que a obra que escrevem deixa de ser deles a partir do momento em que é publicada, Sérgio Longman sabe que sua narrativa, que é também um testemunho histórico, não mais lhe pertence. É o leitor quem dela fará o que não é da competência de quem a escreve. Espero que saiba aproveitá-la do melhor modo possível.

Recife, janeiro de 2015.