Fernando da Mota Lima

O Facebook é uma das evidências definitivas da transição de um mundo baseado nas relações face a face, expressão cunhada pela sociologia e logo estendida à linguagem corrente, para as relações virtuais. Trocando isso nos meus miúdos, deixamos de nos encontrar, de nos ver e tocar materialmente para nos relacionar como signos verbais e imagéticos, ou ainda audiovisuais. Por isso o Facebook é a grande esquina global onde todos se cruzam, se veem e se falam sem sequer precisar levantar-se da cadeira. Basta agora um clique no mouse e logo todos nos conectamos, nos fazemos milagrosamente presentes, não obstante ausentes, fechados cada um na sua ilha ou casulo.

Todos os dias vejo e converso com pessoas que nunca encontro. Estou só, cada vez mais só, e todavia povoado, aturdido por vozes e imagens, textos e palavras que já não vivo como um estado de vivência alucinada, mas como o novo estado de normalidade e modo de ser inventado pela tecnologia digital.  Aprendemos a prescindir do outro e a lavrar ainda mais fundo nosso egoísmo e solidão porque nos tornamos essa inefável figura remota e imediata, ausente e presente, solidária e indiferente, ávida de vida e notícia e todavia aridamente entediada. A revolução que nos refaz é tão inusitada e contraditória que corrói as categorias lógicas mediante as quais a linguagem expressava a identidade e a contradição, as noções de espaço e tempo, de velocidade e duração. Em suma, estamos todos aprendendo a ser outro a cada dia. As condições do ser e do tempo foram viradas de ponta cabeça e não sabemos ainda o que fazer deste admirável mundo novo.

Embora declare minha incompetência que tem algo de geracional para lidar com a tecnologia digital, longe de mim pintar o Facebook com tintas sujas e paletas tortas. Aliás, se assim procedesse seria apenas contraditório de modo inconsequente. Pois não sou parte da rede, não me conecto quase diariamente para saber dos amigos, próximos e remotos, íntimos e estranhos? Apesar de ser um navegante bem seletivo e inconstante, tenho olhar atento para captar tudo que me parece interessante, inteligente, tudo que confere sentido e presença às pessoas que amo – agora virtualmente, vá lá, mas antes isso do que nada.

Cadastrei-me no Facebook por sugestão de um amigo. Além de ser incompetente para fazer essas coisas, ele me deu um conselho muito razoável: como tenho um blog e quero ser lido, então deveria cadastrar-me para postar o link de tudo que publico no blog. Segui o conselho com uma intenção, mas, como é freqüente, a realidade engendrou outras – ou outros efeitos, melhor direi. Bem pouca gente freqüenta meu blog, mas em compensação acabei sabendo do paradeiro de amigos há muito desaparecidos da minha vida. Passei a saber onde estão, com quem estão, o que comem, o que opinam e tudo que expõem na vasta esquina global. Aprendi inclusive a me valer da hiper-exposição da rede para melhor evitar quem não desejo, a melhor saber de quem quero, a rir com as postagens que me desatam o riso, a me comover com a beleza que irrompe na telinha numa multiplicidade de formas.

Em suma, encurtando o caminho, pois ninguém mais tem paciência para ler mais de uma página, o Facebook é o que já disse: a grande vitrine ou esquina global do mundo revolucionado pela tecnologia digital. É ainda tribuna, antro de fofoca e narcisismo sem freios ou senso de conveniência, palco de afetos e insultos, de indignação e conformismo.  É ainda o palco onde todos nos supomos artistas e portanto importantes. Aqui todos se concedem uma importância indevida, uma relevância que ilude até os mais anônimos. Aqui, como tudo que é invenção humana, planta-se tudo e tudo frutifica, até o que já nasce podre. Há gosto para tudo e desgosto idem. Por isso importa recortar, cada um a seu modo, o seu jardim e lavrar o que resulta em colheita coletiva e portanto incontrolável. Quero dizer, cada um faz o que quer com o jardim alheio: há quem distinga a flor e amorosamente a recolha para enriquecer seu próprio jardim, assim como há quem a esmague ou simplesmente ignore. Somos assim ambivalentes em tudo: no amor como na guerra, no condomínio como no Facebook. Somos o bem e o mal porque estes pólos indissociáveis estão entranhados na nossa natureza. Concorre ainda para agravá-la o fato de que o bem não raro produz o mal e vice-versa. Agora ninguém mais precisa visitar ninguém, pois a internet fundou definitivamente a aldeia global. Se você não gosta, não importa de que ou de quem, basta desconectar. Desconectei.

Já que este texto não é escrito para o mural do Facebook, então posso esticá-lo à vontade. Mas não ao ponto de entediar o típico leitor de blog e revista eletrônica, que nesse contexto é apenas uma variante do feicebuqueiro (que vá o neologismo). Quero dizer, um leitor algo mais paciente, que não larga o autor no meio de uma frase simplesmente porque este excedeu a medida de uma página, não importando sua qualidade. Seguindo uma sugestão de leitura de Fátima Duques, li uma crônica bem curta, mas certeira, de Ronaldo Monte, blogueiro mais experimentado do que eu. Ele critica com humor seco e preciso a diluição do conceito de amizade introduzida pelas redes sociais. É um fato que muito me incomoda. Embora tenha noutro texto deplorado essa nova noção de amizade, o amigo de Facebook, aproprio-me das sugestões oportunas de Ronaldo para acrescentar à minha improvisada caracterização do Facebook um aspecto  cuja omissão empobreceria ainda mais minhas ponderações.

Importaria lembrar que a depreciação do conceito de amizade independe em certo grau da erosão afetiva causada pelas redes sociais. Na realidade, ela está entranhada na nossa mentalidade cultural, tendente ao desleixo e inconsequência das relações afetivas. Não é à toa que qualquer estranho, a propósito de tudo ou de nada, bate nas nossas costas e efusivamente nos chama de amigo ou amigão. No Brasil, dentro ou fora das festas e bares, todo mundo é amigo, todo mundo pulveriza na inconsequência das nossas relações este ser tão precioso e raro: o amigo. Outra evidência consiste na leviandade com que nos prometemos visitas e marcamos encontros sem que nunca umas e outros se tornem realidade. São coisas que dizemos por dizer com a inconsciência com que respiramos  ou dormimos. Os estrangeiros que conheci ou acolhi no Brasil ficam desorientados quando se apercebem de que os convites e supostas visitas são apenas “para inglês ver”. Nada disso é para valer, assim como uma infinidade de coisas que prometemos e juramos não são para valer. Charles de Gaulle foi muito generoso quando disse a frase que ficou registrada na nossa história: Le Brésil n´est pas un pays sérieux. Antes que me corrijam, já sei que de Gaulle não disse esta frase, assim como sei que Fernando Henrique Cardoso não disse: esqueçam o que escrevi. Flaubert disse que era Madame Bovary, embora não fosse. Ou era. Citar é uma coisa, apurar a veracidade da fonte é outra bem diferente. Fiquemos apenas com as citações.

Ronaldo Monte tem razão quando pisa no pé do Facebook irritado com essa banalização da amizade, que na rede se faz e desfaz com um simples clique no mouse. Mas volto a insistir neste ponto: somos um povo de amizades inconsistentes e fantasiosas. Somos amigos de carnaval, de festas que a troco de nada pipocam em qualquer terreiro ou esquina. Isso diz muito sobre a nossa futilidade e há muito me educou para desconfiar do foguetório dos amigos que me cercam nas circunstâncias convenientes ao egoísmo, à leviandade, ao mero acaso das circunstâncias. Amigo é outra coisa e não se faz no ruído momentâneo das festas e bares. Amigo é jóia rara que precisamos lavrar durante anos, sobretudo nas circunstâncias adversas e até extremas, pois é quando a amizade de fato reponta nas linhas puras da sua raridade.

O Facebook dissolveu o sentido real da amizade, que agora se faz ou refaz num simples clique, mas a cultura brasileira minou há muito, entre festa e batuque, misturando e diluindo cores e afetos, o sentido ontológico da amizade. Quem duvidar que procure um amigo na hora da necessidade, aquela que define quem é quem, quem é amigo ou simples parceiro de copo e de passo carnavalesco. Se amizade não se faz no Facebook, também não se faz num país onde todo mundo é amigo e amigão, onde as crianças aprendem desde os primeiros dias de escola a chamar a professora de tia e tiazinha. Uma cultura que assim socializa suas crianças está lavrando desde a origem o culto da amizade inconseqüente e confundindo amor e amizade com falso parentesco. Portanto, não culpemos o Facebook por males entranhados na nossa cultura que tanto celebramos, como se essa manifestação de amizade fosse algo além da futilidade dos afetos. Quantos estrangeiros não se enganam com esse foguetório, esses braços abertos para a amizade que não passa de festa? Quando a festa acaba e os bares se fecham, quando a escuridão desce sobre nossas vidas, quase sempre descobrimos desamparados que não há e nunca houve nenhum amigo real.