Cartaz de “A Suprema Felicidade”, filme de Arnaldo Jabor.

 

O filme de Jabor não parece ter alcançado grande sucesso de crítica ou de público.  Os críticos o acharam “desarticulado”, “sem dizer claramente a que veio”, desagradando o autor que, com sua habitual verve, não se poupou de espinafrá-los.  Quanto à plateia jovem, esta acostumou-se ao ritmo frenético do cinema comercial dos nossos dias, feito mais para atordoar e distrair do que para fazer refletir e compreender.  Para os veteranos da geração dele, no entanto, como quem escreve estas linhas, a fita não pode ser vista sem emoção e registro.

Conheci Arnaldo Jabor nos anos 1961/1962, quando eu era dirigente da União Nacional dos Estudantes – UNE e ele membro do Centro Popular de Cultura – CPC, ligado à nossa entidade.  Meus colegas de diretoria eram, entre outros, o Aldo Arantes (presidente), o Marco Aurélio Garcia, o Roberto Amaral, e o CPC congregava figuras ilustres como Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa, León Hirzman, Joel Barcelos, Flávio Migliaccio, Cecil Thiré, Carlos Estevam, Cacá Diegues.  Seu propósito era a conscientização e a politização dos estudantes e das massas operárias através da arte, em suas diversas formas, com ênfase na música, no cinema e no teatro.  Dali surgiram o disco compacto “O Povo Canta”, com “canções de protesto”, o filme “Cinco Vezes Favela”, conjunto de curtas-metragens de Joaquim Pedro, Cacá Diegues, León Hirzman e outros, e a caravana nacional da “UNE Volante”, disseminadora das nossas ideias por todo o país.  Uma das peças apresentadas na caravana era justamente da autoria de Jabor: “O Formiguinho”, sátira à nossa submissão ao “imperialismo americano”.  E suas qualidades de homem de teatro e polemista já me impunham respeito naquele tempo.

Muitos dos episódios apresentados na película, em grande parte autobiográfica, já haviam sido antecipados em suas crônicas semanais, publicadas em jornais de vários Estados brasileiros.  Foram levados à tela para atender a uma necessidade íntima de quem os vivenciou, em ato final de um processo de catarse longamente exercitado, e com o desejo de deixar um documento vivo das agruras, inquietações e desafios da nossa geração.  Também eu estudei em colégio de padres, sofri com a inexorável associação entre sexo e pecado, fui atormentado com a perspectiva das chamas infernais e com a fantasia de um Deus onisciente e carrasco.  Também eu, adolescente ingênuo e desinformado, estive exposto aos conceitos boçais de sexualidade de gente comparável ao pipoqueiro do filme.

Das pregações de moral vitoriana dos padres-professores, também posso dar testemunho.  Da condenação ao “pecado solitário”, com o argumento das milhares de vidas perdidas no ralo do esgoto, ouvi variante igualmente cavilosa: ao cometê-lo, o homem se faria inferior aos animais, que não o praticam – o que não é verdade, sobretudo em relação aos animais superiores.  E a historieta, pretensamente heroica, da vitória da virtude sobre a tentação da carne, do rapazinho que recusa os favores da bela havaiana e foge a cavalo, chorando, está no livro “Estrela em Alto Mar” (Étoile au Grand Large), de Guy de Larigaudie, que li naquele tempo, e me inquietou de tal forma que, passados mais de cinquenta anos, recordo inteiramente.  Com todo o respeito aos espíritos religiosos que ainda defendem a castidade fora do casamento, bem como aos homossexuais, minha interpretação do episódio, vivido e narrado pelo próprio de Larigaudie, é bem outra.  Aquele cavalheiro, desportista de renome internacional e vida aventurosa, que, segundo afirma no livro, teve em seus braços as mulheres mais lindas do mundo, e, por convicção religiosa, “bancou o indiferente”, devia ter, na verdade, algum problema de inibição sexual, ou de não assumido homossexualismo.  De resto, como a Jabor, a mim a história só fez apressar o abandono daquela crença familiar opressora. 

Mas o filme mostra também a tristeza e o vazio das nossas mães, limitadas à vida doméstica, a degradação do amor “pago a varejo”, a traumática iniciação sexual dos jovens, todas as mazelas daqueles “anos dourados”.  E a suprema felicidade de um amor físico autêntico, ainda que passageiro.  Por isso deve ser visto por todos.  Mesmo pelos jovens que, nestes tempos turbulentos, ainda conservem alguma disposição para refletir e conceituar.