Clemente Rosas
1 – A CLASSE MÉDIA INJUSTIÇADA
Precisamos de pessoas que, como os discípulos de um cientista, se sintam na obrigação de testar as suas hipóteses, e não ajam como os discípulos dos profetas, que apenas repetem as palavras do mestre. Joan Robinson, entrevista à VEJA em 10/09/1979
Surpreende-me, hoje, o fato de não ter percebido, em meus jovens anos de militância esquerdista, a semelhança das concepções de revisionismo e heresia. Com efeito, o “revisionista”, execrado pelos companheiros do Partido, era aquele que propunha alguma ressalva, alguma glosa, aos postulados da doutrina: a luta de classes, a lei das contradições, a mais-valia, a tendência ao empobrecimento da classe operária, a marcha inexorável da História rumo ao socialismo. O “herético”, por sua vez, era, no passado, o religioso postulante de alguma interpretação dos livros sagrados que se afastasse da oficial, ditada pelo Vaticano.
E, no entanto, como bem disse a senhora Joan Robinson no texto em epígrafe, precisamos hoje, ainda mais que ontem, de pensadores dispostos a reelaborar as velhas teorias, submetê-las ao crivo da História e de uma razão crítica despida de preconceitos. Pois se, nas ciências naturais, cujo objeto quase não muda, a observação e a experimentação, com apoio em instrumentos cada vez mais sofisticados, nos levam à descoberta de verdades insuspeitadas na natureza, com mais razão ainda devem as ciências sociais, cujo objeto – a sociedade – é sempre cambiante, permanecer abertas à reformulação e ao refinamento.
Tomemos, por exemplo, como tema de análise e com foco no Brasil, a classe média. Alvo da antipatia, e mesmo do ódio declarado, de alguns dos nossos intelectuais – que, paradoxalmente, não deixam de ser integrantes dela – a classe média brasileira vem sendo a grande injustiçada, o bode expiatório das mazelas nacionais.
Originalmente identificada com a pequena burguesia, e rotulada como “a classe que inveja a burguesia e teme o proletariado”, a classe média de hoje é composta de servidores públicos, profissionais liberais e microempresários. Cento e cinquenta anos após Marx e cem anos após Lênin, ela supera numericamente o operariado. (As últimas estimativas censitárias revelam que somente os servidores públicos, nos três níveis da Federação, já são mais numerosos do que os empregados no setor privado). E esta é uma das realidades aparentemente desprezadas pelos seus críticos modernos, ainda com as retinas impregnadas das cenas das grandes massas de trabalhadores, nos primórdios da Revolução Industrial.
A outra realidade é que, curiosamente, os líderes revolucionários sempre foram oriundos da classe média. Foi assim nas revoluções francesa e russa. Foi assim no Brasil, com os tenentes da Revolução de 1930, talvez o único movimento cívico-militar a merecer esse título, em nosso país. E no caso dos “founding fathers” do marxismo-leninismo, entre Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Stálin e tantos outros, há apenas duas exceções, honrosa a primeira, ignominiosa a segunda: Engels, de família de industriais, e Stálin, filho de um sapateiro.
Diante de tais fatos, como explicar a aversão à classe média, por parte de pensadores brasileiros? Culto à classe operária como categoria abstrata, associando, de forma maniqueísta, os trabalhadores fabris ao Bem, e os pequenos burgueses e “white collars” ao Mal? “Mauvaise conscience” injustificada, por pertencerem a uma classe social supostamente manipulável, ou nociva? Deixo a questão ao estudo dos psicólogos.
Até mesmo porque a concepção do operariado industrial como a classe explorada da sociedade capitalista, e como tal potencialmente revolucionária, no mundo de hoje, no Brasil, e especialmente na Região Nordeste, precisa ser revista. É o que veremos a seguir.
***
Bem pensado, Clemente. Essa questão sempre me leva de volta ao velho Aristóteles, para quem a estabilidade de um governo residiria, sempre, na manutenção de uma enorme classe média. E a sua epígrafe é genial.
Uma reflexão interessante, por quem tem boas credenciais para fazê-la.
Além da coragem para se meter num vespeiro… Acho que os economistas tem maior preocupação com a possibilidade de “medir”, medir de algum modo as variáveis em discussão. Eu notaria que no Brasil, ao menos até há pouco, o que era comumente chamado de “classe média”, de “média” não tinha nada, era uma amontoado variado que, em termos de renda, correspondia aos que estão nos 10% de nível de renda mais alto. Parece que em décadas recentes a noção de “classe média” mudou, depois de muito mais discussão sobre “inclusão”, e a afirmação dos últimos governos petistas de que haviam incorporado à “classe média” parte das camadas de renda mais baixa, isto é, teriam elevado os pobres à condição de “classe média”. Aguardo o próximo artigo de Clemente Rosas, já que “operariado” também pode ser, e tem sido,”desclassificado” seja como “aristocracia operária”, seja como “lumpenproletariado”.
Muito bom Clemente . Aguardo a sequência , abraço amigo .
Precisava ler este artigo. Realmente, as rotulações e definição de perfis e papel das classes sociais precisam de uma releitura de seus significados, na pós-modernidade e na sociedade brasileira atual. Fico aguardando os próximos. Abraço
Obrigado, amigos e amigas. Seus comentários me enriquecem. A avaliação final, ao término da sequência dos artigos, será aguardada com ansiedade.