Tenho setenta anos. Sou reumático, cardíaco e viúvo. Antes de aposentar-me, acalentei durante anos o sonho de envelhecer à beira mar, estoica e solitariamente esperando a morte numa praia tranquila do litoral pernambucano. A solidão da viuvez muito me doeu. Afinal, tive Carminha a meu lado, minha amada Maria do Carmo, durante grande parte da minha vida. Ficou-me de consolo a filha, Soledade, que aliás seguiu minha profissão. Fui dentista no centro do Recife durante 35 anos. Cuidei de muita gente, até de gente difícil como Sérgio Majo, Natalino, Paulo Farias, Severo Machado, Pedro Gadelha e Valêncio Costa. Se conquistei a amizade e o respeito destes, seres crivados de idiossincrasias e atávico temor à minha cadeira e instrumentos, o fato diz algo em favor do meu apreço por seres humanos, algo de minha singular bonomia. Ao cabo, todos se foram, inclusive Soledade, cujo nome foi venturosamente traído pelo destino, pois encontrou um amor em São Paulo, para lá transferiu o consultório e nunca mais voltou.
Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Leitor voraz de literatura, apesar da inteligência e sensibilidade convencionais, sonhei ler e em alguns casos reler na solidão da velhice as grandes obras zelosamente enfileiradas na minha velha estante revestida de vidros foscos e empoeirados. Lá repousam Cervantes, Sterne, Thomas Hardy, Dickens, Balzac, Machado de Assis e uns poucos mais. Mal fechei o consultório, bati a poeira desta cidade que aprendi a detestar e fui esconder-me no meu cantinho de praia comprado em Porto de Galinhas. Fui dos primeiros a explorá-la, dos primeiros a render-lhe afeição que direi ecológica ou naturalista, pois amei-a desde o primeiro verão em que nela me instalei ouvindo nas noites de lua o violão de Baden Powell e a música suprema de Tom Jobim. Porto de Galinhas era o paraíso ecológico onde sonhei repousar minha velhice desiludida e esperar a Indesejada das Gentes com alguns laivos filosóficos de serenidade e aceitação compassiva do meu fim.
Bastou-me uma semana de aposentadoria na praia para que os turistas e veranistas predadores convertessem minha velhice num inferno. Mergulhado em funda depressão, vendi minha casinha. Sem saída, retornei a Recife onde reocupei o velho apartamento que considerara vender logo que me aclimatasse ao litoral onde fixei encontro ilusório com a Indesejada das Gentes. Vivo agora na área que os corretores de imóveis e publicitários chamam de cartão postal de Recife. Se é isso cartão postal, bem imagino o que seja o cotidiano dos carteiros.
Às sete da manhã os vendedores de gás de cozinha arrancam-me da cama. Rolam lentamente rua afora trovejando no alto-falante as virtudes e o preço irrisório do produto que me abala o sono e a paz doméstica. Depois o ruído incessante da construção civil, o bate-bate sem trégua das reformas de imóveis, o vendedor de cd pirata, as buzinas e alarmes eletrônicos dos automóveis guinchando dia e noite. Minha rua, meu bairro, a cidade inteira tornaram-se um corredor por onde rola todo tipo de mercadoria assaltando os ouvidos da população indefesa e no geral indiferente.
Há pouco um publicitário imaginoso inventou um novo tipo de serviço vendido e prestado sobre rodas sustendo auto-falantes potentes. Quem perdeu ou teve um gato ou cachorro roubado, paga agora a esse meritório serviço para infernizar ainda mais meus ouvidos saturados desse cotidiano de bordel, com perdão das orgias que em nada importunam ou infelicitam os vizinhos. O inferno, dizia o outro, que de resto era francês, são os outros. Se o francês dizia coisas desse tipo, e graças a elas ficou famoso, citado até por gente que nunca o leu, o que diria um velhinho reumático e cardíaco prisioneiro da idade num bairro sem lei?
Hoje, quando descansava do almoço, fui acordado pelos alto-falantes. Falavam em favor de uma pobre senhora cuja gata siamesa foi roubada. Pela manhã outro agente filantrópico, ou zoológico, trovejou o desaparecimento ou roubo de um papagaio falante. Ontem foi a vez de um cachorro amado pela família que o procura de coração cortado. Todos esses infelizes, privados de tão inconsoláveis amores, prometem gratificação substanciosa, além de fornecerem número de telefone para ligação gratuita. Comovido com tanto amor por gatos e cachorros e papagaios, indo de contrapeso tanto desprezo pela minha paz doméstica, enfim encontrei um meio de bondosamente ajudar esses infelizes. Liguei para os órfãos do papagaio disfarçando a voz e dedurei a órfã da gata siamesa. Procedi ao mesmo tipo de troca com outros infelizes, num caso ou noutro enfiando perversamente o endereço e o telefone de algum desafeto. Ignoro que conforto levei à vida e corações de gente tão amável, mas sei que os alto-falantes continuam trovejando pelas ruas.
A perspectiva de uma viagem de uma semana sugeriu-me outra ideia humanitária. Liguei para a agência de publicidade. Alô, gostaria que você gravasse um anúncio e o transmitisse aqui no meu bairro de domingo a domingo. Quero que vá ao ar logo cedo, às sete da manhã e à tarde, logo depois do almoço. Pode ditar o anúncio, meu querido. Paga-se regiamente a quem encontrar um burro velho e reumático puxado por três patas mancas. Só três? Só. Será fácil localizá-lo, se evidentemente andar pelas ruas. Paguei a conta e logo viajei.
Voltei ainda secretamente me deleitando com o ruído que causara no ar do bairro durante minha ausência. Para minha surpresa, alguém gravou uma mensagem na secretária-eletrônica: Alô, dotô. Encontrei seu burro. Morto, mas encontrei. Tem três patas mancas e um par de remos. Estão quebrados, mas é fácil ver que eram usados por um burro reumático. Tudo é possível no Brasil, suspirei desenganado. Tive tanto trabalho para me ver livre do chantagista que desisti de vingar-me dos vizinhos valendo-me do princípio cristão com que todos os dias me confortam a vida: o bem com o bem se paga.
Um dia comprarei um fuzil e serei notícia na mídia universal. Conquistarei enfim meus quinze minutos de celebridade fuzilando um carro de propaganda, envenenando uma gata siamesa ou enforcando um cãozinho veludoso. Ou ainda afogando um velho burro remador. O inferno serei eu.
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Fantastico o artigo “A Boa Idade nos Tropicos”. Espero que o fuzil seja de bosta!
Gostei do conto, e estou aqui dando risada. Durante alguns meses, uns 3 ou 4 anos atrás, dois cães choravam esganiçadamente por horas, no prédio vizinho que dá fundos para os fundos do meu. Era uma condômina que saía, até viajava fins de semana, e abandonava os cães trancados sozinhos – conforme o síndico com o qual fui reclamar, e que não conseguiu fazer nada. Então liguei para o PSIU (um serviço da Prefeitura de S.Paulo para reclamar do barulho). Lá informaram que só cuidavam de barulho de bares e restaurantes depois das 10 da noite. Acrescentaram: a senhora pode ligar para a SUIPA e denunciar tortura de animais. Só consegui responder: “o animal torturado aqui sou eu!”
Helga Hoffmann:
Como é prazeroso pagar riso com riso: você rindo com as desventuras narradas no meu conto (ou crônica ficcional, não importa) e eu rindo com os tormentos que seus vizinhos lhe causam. Neste capítulo, o dos vizinhos do barulho, poderia escrever todo um vasto livro de boletins policiais. Já precisei recorrer até ao corpo de bombeiros, que apenas me acrescentaram problemas. O Brasil é inviável. Os vizinhos que me atormentam brigam comigo quando reclamo, como se o culpado fosse eu. E o fato é que sou mesmo, se lembramos um dos princípios culturais mais potentes no Brasil: os incomadados que se mudem.
O antropólogo francês François Laplantine uma vez publicou, em 1997, um artigo na Revista de Ciências Sociais, da UFC, onde ele constatou, na comparação entre comportamentos no cotidiano na França e no Brasil, um verdadeiro “horror silencii” nestas plagas.
Alguém que não gosta de animais e de crianças só pode ser boa pessoa. De fato, eles e uma mulher apaixonada fazem muito barulho.
Dirceu:
Sua interpretação do meu conto parece hermenêutica de petista. Só faltou você dizer que meu protagonista (aqui convém usar este termo avacalhado pelo academês brasileiro) é golpista porque odeia nossa incivilidade. O conto tematiza, entre outras coisas, esta realidade: nossa incivilidade, a violência de uma sociedade anômica que atormenta seres amáveis e civilizados como meu protagonista (talvez precise ressaltar com todas as letras que ele não é o autor do conto). No mais, não há no texto nada que lhe permita afirmar que ele não gosta de criança e de animais. Os animais entram na narrativa como uma forma de denunciar os abusos decorrentes da anomia característica da sociedade na qual vivemos. E o tom é de humor negro, de crueldade retributiva de certo modo inspirada por minha leitura dos contos de Rubem Fonseca.
Delícia de texto, Fernando. Muitos anos atrás, talvez uns 40, li um livro de certo expert em coisas do Vaticano chamado “Cosa ha veramente detto il Papa”. Comprei-o numa calçada de Roma, para me fazer companhia numa cantina de Trastevere, na falta de melhor opção.
Na época, a entrevista era com o antigo cardeal Montini, então tornado Paulo VI. Uma passagem me marcou para sempre. A certa altura da entrevista, quando falavam, já naquela época, sobre os perigos que a Terra corria por conta de armas de destruição em massa e do desprezo pelo meio ambiente (tese cara a Frei Boff), o papa disse que não estávamos longe do dia em que um dos ativos mais escassos da humanidade seria o silêncio.
Que as pessoas acostumar-se-iam a malbaratá-lo de forma tão violenta que precisaríamos de muito treino para voltar a apreciá-lo e valorizá-lo. Achei isso tão banal para alguém de tanta envergadura. Hoje, à beira da surdez, vemos que só quem é clarividente pode ver.
Abraço,
FD
Meu querido xará: Acrescento à sua alusão erudita o exemplo de Proust, que não suportava o barulho e por isso era dado a idiossincrasias talvez extremas para a época em que viveu. O mundo da técnica, como dizia Heidegger com franca aversão, produziu formas terríveis de ruído, além de progressiva e irreversivelmente pôr em risco a própria sobrevivência de todo o ecossistema. Durma-se com um ruído desses. No caso modesto do meu conto, o problema me parece antes de natureza cultural. Apesar das minhas botas de aldeão, se comparadas às suas de 7 milhões de léguas, vivi na Inglaterra e em muitos outros lugares, também em cidades muito maiores e populosas do que o Recife. Nunca tive que suportar as torturas cotidianas que aqui me perseguem. Se precisasse de argumentos mais fortes e objetivos, lembraria a nossa historiografia social, notadamente a obra de Gilberto Freyre, para ressaltar o quanto o ruído incessante é fruto antes de tudo das formas anômicas de convívio que criamos não apenas no Recife, mas em qualquer núcleo de vida associativa. Um abraço de volta, Fernando.