Fernando da Mota Lima

Ilustration of Christopher Lasch’s bestseller The Culture of Narcissism (1979).

Ilustration of Christopher Lasch’s bestseller The Culture of Narcissism (1979).

Cresci num mundo assolado pela incultura intelectual. Um dia, sem que ninguém me guiasse, cheguei por acaso a uma estante de livros e esse fato mudou radicalmente minha vida. Através dos livros, dos autores que li e transfiguraram minha vida infeliz e corroída pela rotina e o tédio, passei a ver o mundo com outros olhos. Graças à literatura, expandi imaginariamente os horizontes de minha vida e a solidão, que até então fora uma fonte de sofrimento e carência, tornou-se um modo intraduzível de convívio simbólico com mundos remotos e sonhados, não obstante reais para o ser extraviado que eu era.

Mais tarde descobri a figura do intelectual como agente de transformação política da realidade e me persuadi de que ele era a consciência de um mundo alienado, um mundo no qual sempre me senti estrangeiro. Os intelectuais que então me pareciam modelares foram combatentes de ditaduras e tiranias, defensores, por conseguinte, da liberdade e de um mundo mais justo, quando não utopicamente além das formas de dominação que têm castigado a história humana através de milênios. No século XX, muitos desses intelectuais foram marxistas militantes, nas suas muitas  e variáveis facções, ou pelo menos companheiros de viagem, com perfil ideológico igualmente variável.

Despertei para a política exatamente quando irromperam os anos de chumbo da última ditadura brasileira. Mero companheiro de viagem, eclético e cético por formação e talvez temperamento, nunca aderi ao marxismo. O mundo dividido pela guerra fria enfim desintegrou-se em 1989. Embora há muito fosse crítico com relação ao marxismo, foi depois disso que conheci as formas mais brutais das tiranias impostas em nome do comunismo ao longo do século XX.

Lendo a historiografia mais recente, renovada pela revelação de arquivos até então inacessíveis, notadamente no que foi a União Soviética, tomei consciência mais precisa dos horrores perpetrados em nome de belos ideais utópicos que marcaram de forma profunda a minha geração e algumas precedentes. Esse balanço crítico, também uma revisão de minhas ilusões humanistas, convenceu-me de que os intelectuais são antes cúmplices e agentes da tirania do que a consciência libertária da sociedade. Em suma, não mais me iludo com eles. O que me conforta na minha descrença é saber que são desmascarados também por intelectuais. De tudo resta, portanto, minha percepção do intelectual como figura ambígua.

No momento em que escrevo, assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos. A expressão “traição dos intelectuais” é uma alusão, claro, ao livro famoso de Julien Benda. No meu entender, e sigo aqui parcialmente a noção do intelectual adotada e defendida por Benda, o papel do intelectual é defender os valores universais do espírito orientados para a busca da verdade, ainda que esta seja sempre parcial e até enganosa. Por isso o intelectual sempre trai sua função quando se converte à militância em nome de uma causa ou ideologia particular. O exemplo mais catastrófico dessa traição consistiu na adesão do intelectual ao comunismo no século XX. Iludido pela crença de servir a uma concepção científica da história, ele negou a religião compreendida no seu sentido tradicional e sagrado para converter-se a uma religião secular que nunca ousou dizer o seu nome.

Muitos intelectuais continuam recusando veementemente essa noção de religião secular. Críticos impenitentes das formas tradicionais de religião, que para eles não passam de formas de conformismo político e alienação humana, teimam em defender e adotar teorias sociais teleológicas, ou indissociáveis de um finalismo utópico, como se fossem baseadas em fundamentos científicos e portanto puramente seculares. A matriz dessa concepção é, claro, a obra de Karl Marx. Marx e Engels, e no rastro deles uma infinidade de seguidores intelectualmente admiráveis, presumiam haver descoberto os mecanismos objetivos do desenvolvimento histórico das sociedades, redutíveis a leis científicas. O materialismo histórico e científico, formulado por ambos, seria a expressão da teoria soteriológica que, no frigir das fantasias revolucionárias, é apenas a transposição do céu judaico-cristão para este mundo.

Se esse suposto procedimento científico fosse de fato adotado pelos intelectuais que se supõem seguidores de uma concepção científica da história, seria muito fácil desmenti-la. Bastaria submeter a história do comunismo às leis postuladas por Marx e Engels. A primeira evidência que salta aos olhos é que nenhuma revolução comunista seguiu nem de longe a escrita traçada pela teoria marxista. Se ela se cumprisse, a revolução teria irrompido nas economias mais avançadas do capitalismo (Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos…). Ora, ela irrompeu precisamente na periferia do capitalismo, fato que em nada abalou a fé dos comunistas. Aliás, todos foram profetas malogrados. Marx, Engels, Lenin e Trotsky, entre tantos, nunca se cansaram de profetizar a revolução na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos…

A história humana é tão indissociável da indeterminação e do imprevisível que a revolução alemã, tão ardentemente sonhada por Lenin e todos que comandaram a Revolução Russa, resultou na ascensão de Hitler e do nazismo, graças em parte às lutas autofágicas da esquerda alemã: comunistas, social-democratas e anarquistas. Enquanto se matavam, os primeiros seguindo fielmente a política imposta por Stalin, abriam o caminho para Hitler e suas tropas brutais chegarem ao poder. Enredo semelhante ocorreu na guerra civil espanhola, culminando na vitória de Franco e seus seguidores fascistas, que impuseram à Espanha uma longa ditadura. Também no contexto espanhol se repete o que aconteceu antes na Alemanha sob as ordens de Stalin: os comunistas suprimiram seus aliados anarquistas e socialistas facilitando assim a ascensão de Franco. Quem leu o livro de George Orwell com olhos livres, há muito sabe disso. Por pouco Orwell, combatente do grupo anarquista POUM, não foi assassinado. Desde então tornou-se inimigo intransigente de Stalin e do comunismo.

Em suma, as reviravoltas e desastres da história foram tão imprevisíveis que a teoria marxista da história teria sido completamente descartada, se de fato fosse concebida como formulação científica e submetida à prova dos fatos. Como acima observei, é apenas uma religião secular que não ousa dizer o seu nome. De resto, no Brasil continua fresca e renovável, ironicamente nos segmentos mais intelectualizados, sobretudo na universidade pública. Bastaria considerar a crise política e econômica que no momento sofremos. A esquerda tradicional, nas suas múltiplas facções, inventa narrativas golpistas e toda sorte de explicação delirante para justificar o injustificável. É inútil contrapor-lhe os argumentos racionais do tipo que acima intentei esboçar. Razão e fé são ontologicamente excludentes. Por isso desisti de argumentar.