História é passado. Já houve, é irredutível e irreversível. Resta aos historiadores interpretar e explicar o passado através da análise da cadeia de acontecimentos, das circunstâncias e das iniciativas. Cabe apenas entender o que aconteceu e explicar como e porque o mundo evoluiu de determinada forma observando o processo complexo de interação das variáveis determinantes que movem e definem a realidade. Não se pode mudar o passado. E, no entanto, o passado preparou e condicionou o presente. E pode iluminar o futuro. Mas, o que houve no passado era inevitável? Observado e analisado com os olhos do presente, aquela configuração de eventos e processos parece predeterminada, como um determinismo histórico. O passado poderia ter sido diferente?
Em sistemas complexos os eventos são apenas componentes particulares de uma cadeia não linear de variáveis em interação. De modo que, em determinadas circunstâncias, uma pequena alteração em um evento singular poderia desencadear mudanças significativas que levariam a processos históricos distintos. Como um “efeito borboleta” no qual o bater de asas de borboletas na China pode provocar uma tempestade na costa leste dos Estados Unidos. Assim, bastaria que apenas um pequeno evento do passado não tivesse ocorrido para ter desencadeado uma sequência de mudanças que levaria a um processo histórico diferenciado. E, portanto, a uma realidade presente distinta da que temos hoje.
Vamos pensar na história do Brasil da década de sessenta do século XX. A eleição de Jânio Quadros para a presidência República, evento singular em qualquer democracia, desencadeou uma sucessão de fatos e decisões determinantes do nosso passado recente. Renúncia do presidente eleito, posse tumultuada do vice-presidente após tentativa de golpe, emergência dos movimentos sociais, instabilidade política, convergindo para um golpe e a implantação da ditadura militar. Populista e psicologicamente instável, Jânio se elegeu com uma base partidária frágil e renunciou ao mandado antes de completar o primeiro ano (supostamente tentando uma virada de mesa), abrindo caminho para a posse do vice-presidente, João Goulart, getulista e trabalhista de esquerda que despertava a suspeita dos militares.
Depois da tentativa militar de impedimento da posse, o vice assume depois de um entendimento em torno de uma reforma parlamentarista e no meio de uma mobilização social em larga escala em todo o país pelas reformas sociais, instabilidade política e motins de sargentos. Termina com o golpe militar de 1964. A ditadura militar se implanta, a esquerda radicaliza, a repressão se intensifica ao mesmo tempo em que a economia se moderniza e cresce, praticamente definindo até hoje a trajetória política, econômica e social do Brasil. A escolha dos eleitores brasileiros em 1960, a loucura de Jânio, a fragilidade e vacilação política de Jango, a conspiração militar, o golpe e a ditadura militar formam uma sequência de eventos que marcou e definiu a história recente do Brasil.
Mas, a história do Brasil naquele período poderia ter sido diferente? E se o evento de partida tivesse tido outro comportamento? Quais os desdobramentos que poderiam ser imaginados para o Brasil? O Brasil de hoje foi preparado pelos processos desencadeados pelos eventos singulares que deram partida ao processo histórico, entre os quais, as eleições presidenciais daquele ano. Digamos que o resultado das eleições presidenciais tivesse sido bem diferente e que o general Henrique Lott tivesse derrotado Jânio Quadros. Era possível? Claro que era possível. Os dois partidos que apoiavam Lott – PSD e PTB – tinham a mais poderosa máquina eleitoral da época e o candidato tinha enorme prestígio, embora não fosse populista. Conflitos entre os dois partidos, os coronéis do PSD e os radicais do PTB, atrapalharam a eleição do seu candidato e o presidente Juscelino Kubtischek não parecia muito engajado, pensando mais na sua volta em 1965 que numa continuidade da sua base política. A diferença entre os dois candidatos – Jânio e Lott – não foi grande, a vantagem de Jânio foi, principalmente, no Estado de São Paulo, onde tinha sido governador, e ele se elegeu porque, na época, não existia segundo turno (Jânio recebeu 48,26% dos votos e Lott 32,94% sendo que Ademar de Barros, também paulista, recebeu 18,79% dos votos). Tanto era politicamente possível que João Goulart, eleito vice-presidente, era da chapa derrotada de Henrique Lott, lembrando que, na época, a eleição do vice era desvinculada do candicato a presidente.
E se Lott tivesse sido eleito, qual teria sido a história do Brasil? O governo Lott poderia ter implementado algumas reformas estruturais, talvez mais que o muito pouco que João Goulart conseguiu, sem que houvesse ameaças graves à democracia e às regras constitucionais. Com Lott presidente, o Brasil provavelmente não teria vivido o ambiente de instabilidade política dos anos que antecederam e estimularam o golpe militar. O governo Jango fez mais barulho que reais reformas e não tinha autoridade política para conduzir o país no meio das pressões sociais, movimentos sindicais de um lado e classe média assustada do outro, menos ainda contornar a reação e antipatia dos militares.
Lott era um democrata convicto (provou isso em vários momentos) e simpático às reformas sociais além de nacionalista e estatista, conceitos que agradavam a grande parte dos militares, embora ele fosse odiado pela direita anti-getulista e anti-comunista das Forças Armadas. Sendo um militar de grande respeitabilidade, o presidente Lott teria tido condições reais para inibir a conspiração golpísta da UDN e dos militares mesmo porque ele não teria permitido a quebra de disciplina nas forças armadas como a revolta dos sargentos e marinheiros. Lott defenderia a autoridade e a disciplina, possivelmente necessárias naquele momento conturbado da história do Brasil, e não seria facilmente manipulado pelas velhas raposas políticas do PSD e do PTB. Com o apoio da esquerda e com sua sensibilidade social, o presidente Lott poderia ter iniciado, sem a instabilidade política que dominou o país no governo Jango, a reforma agrária, a extensão da legislação trabalhista no campo, a implantação do ensino público gratuito, todas propostas do seu programa de governo.
O jurista Sobral Pinto disse algo parecido: se Lott “…tivesse ido para a presidência do Brasil, teria instaurado um governo de legalidade e de respeito à pessoa humana, e uma vinculação com partidos políticos, porque era um democrata sincero, inteligente e honrado. Com Lott na presidência, não teríamos ditadura militar durante vinte anos, não teríamos a falência nacional. Nada disso teria acontecido”. Tudo isso não passa de especulação em torno “do que poderia ter sido”. Não muda os fatos e não altera a história. Não dá para dizer como seria o Brasil se o resultado daquela eleição fosse diferente. Mas, tudo indica que a história teria sido outra. E o Brasil de hoje poderia ser muito diferente. Talvez bem melhor. Esta especulação serve ao menos para mostrar que cada decisão da sociedade, a começar pela singular eleição de um presidente, que sintetiza a escolha de cada eleitor, desencadeia uma dinâmica política e social decisiva para o destino do Brasil.
Sérgio,
É primoroso seu exercício intelectual. No fundo todos nós nos entregamos a reflexões parecidas em torno de aspectos comezinhos de nossas vidas. Levá-las ao grande palco político, contudo, e sustentá-lo com uma argumentação verossímil, é quase desesperador.
Lê-lo me fez pensar na Vila Maria, na Zona Norte de São Paulo, reduto fechado do Janismo e dona de muitos votos. Não tivesse sido por ela e por outras, a História teria sido bem diferente. A nossa e a do continente, é bom que se diga.
É possível que tivéssemos orbitado no âmbito dos não-alinhados, que tivéssemos ocupado o cenário internacional ao abrigo dos sectarismos que marcariam os governos subsequentes e que já estivéssemos vacinados desde então contra o nefando populismo que nos devastaria meio século adiante.
É sim, Sérgio, um execício intelectual de primeira grandeza e tão sólido que merece ser lido por muita gente. O subtítulo alternativo poderia perfeitamente ser “A eleição que nos tirou a chance de ser uma Espanha na virada do milênio”.
Abraço, FD
PS – Esteja alerta. Não duvido nada que alguém venha a te chamar de “vivandeira de quartel”.
Fernando.
Acho que o titulo deveria ser mesmo esse. Para escrever o texto eu andei pesquisando a época e as propostas dos candidatos e para minha surpresa, Lott tinha mesmo uma proposta forte para educação, o que teria feito toda a diferença na nossa historia destas décadas. Assim, se a especulação tiver mesmo alguma pertinência, a eleição de Jânio terá sido um dos maiores equívocos da historia recente do Brasil. Convite para sua especulação: “E se Tancredo não tivesse morrido em 1985?”
Sérgio,
excelente exercício de “passadologia”, com pinceladas de aulas de história recente.
Prezado Sérgio
É doloroso rever o passado e perceber como tudo seria diferente, como mostrado acima e destacado pelo Sobral Pinto. E é um exercício fundamental, mesmo que nos traga uma certa melancolia em torno do que ¨poderia ter sido¨.Pensarmos que um louco como Jânio teve uma importância tão grande na nossa história, é desesperador. E outros exercícios, como sugere o Sérgio, seriam interessantes: se Tancredo não tivesse morrido? E se Collor não fosse eleito?
Aprender com o passado – não vivemos o presente sem olhar para trás e entendermos nossas razões, na vida e na política. Já foi dito que deveríamos ter duas vidas, uma para ensaiar e outra para viver. Sria bom se isso tambem acontecesse na política.
Caro Afrânio
Em 2010 (06 de março) publiquei um artigo no Jornal do Commércio intitulado “E se Collor tivesse perdido?” (está no livro “Delicia de Arenga” com a coletânea de artigos). A não ser que consideremos na especulação que Collor tivesse tido outro adversário no segundo turno, a derrota de Collor teria significado a vitória de Lula (por pouco não foi Brizola que, talvez, tivesse mais chances de derrotar Collor). Não vou repetir o que escrevi há seis anos mas me limito a transcrever uma citação de uma frase de Lula sobre a hipótese de ter sido eleito em 1989: “Acho que foi obra de Deus não permitir que eu ganhasse em 1989. Se eu chego em 1989 com a cabeça do jeito que eu pensava, ou eu tinha feito uma revolução no País ou tinha caído no dia seguinte”. Será? Queria só lembrar que em março de 1990 a economia brasileira estava numa grave crise com uma inflação de 80% ao mês. Não dizia no artigo citado mas tendo a considerar agora que a melhor alternativa para o Brasil naquela eleição teria sido Mario Covas do PSDB (que, aliás, não teve meu voto, do que me arrependo) que ficou em quarto lugar com 11,5% dos votos, lembrando que Lula alcançou 17,18% e Brizola 16,51%. Merece uma reflexão na base do “E se….?”
Oi, Sérgio!
Pois é, eu votei em Mário Covas! (Você votou em quem, por falar nisso?) Foi um voto “racional”. Não queria Collor de jeito nenhum. Lembro que, quando ele ganhou, escrevi a um amigo: “a impressão que tenho é a de que o pior do Brasil chegou ao poder”.
Quanto a Lula e Brizola, meu coração pendia para o primeiro (aliás, no segundo turno votei nele), mas tinha certas apreensões no que diz respeito à instabilidade que sua chegada ao poder poderia gerar. A ditadura tinha acabado não havia tanto tempo assim, e o feroz anticomunismo dos militares poderia ser atiçado. Lembra daquele “terrorismo” de Mário Amato?… Era 1989 e Lula ainda estava muito longe da “carta aos brasileiros”.
Além de ter certa simpatia por Covas, achava que, num segundo turno, ele tinha plenas condições de derrotar Collor. Acho que os eleitores de Lula e Brizola (que, somados, tiveram mais de 30% dos votos) votariam nele.
Até que nem sou tão “estratégico” assim, mas naquele momento, fui.
Continuo achando que votei certo.
By the way, gostei muito do seu texto. Nunca tive maior interesse sobre o político Lott… Agora sei mais um pouco sobre ele. É, foi realmente uma pena que aquele doido varrido (“a UDN de porre”, como disse Afonso Arinos) tenha ganho aquelas eleições. Meu pai era udenista e lacerdista, e lá em casa se vibrava com o “varre, varre, varre, varre, varre vasourinha / pra acabar com a bandalheira / que o povo está cansado / de sofrer desta maneira / Jânio Quadros é a esperança / desse povo abandonado”…
Ai, saudades!
Abração,
Luciano
Luciano
Naquelas eleições eu votei em Lula. Podes crer. Mas não que quisesse que ele fosse presidente, longe disso. Muito racionalista, eu dizia na época que uma avalanche eleitoral daria ao PT uma feição social-democrata a este partido, diferente do que era o PSDB, pela base trabalhista do PT. Em parte ocorreu isso num certo momento do PT que depois afundou no populismo. Naquela eleição eu tinha certeza de que Brizola e não Lula iria para o segundo turno. Eu dizia que votava em Lula no primeiro e em Brizola no segundo turno. Errei feio, como vê. Acho que Brizola teria muito mais chances de derrotar Collor mas, penso hoje, não faria um bom governo porque teria que enfrentar, de imediato uma grave crise econômica como inflação galopante. Lideres populares (posso dizer populistas?) não conseguem lidar com inflação. Um ou outro iria partir para um congelamento de preços e a historia já mostrou que o resultado é desabastecimento e mercado negro com preços ainda subindo. Pensando proteger os pobres iam afundar a economia e, nessa hora, a maior vitima é sempre o pobre.O pior dos mundos. Como vê, minhas analises eleitorais não merecem a menor confiança. O assunto merecia um seminário.
Oh! Oh! Oh!
Realmente 1989 não é 2016.
Você votando em Lula (mesmo “esperando” que ele não ganhasse) é até engraçado. Fico maldosamente pensando que há vinte e tantos anos atrás eu era mais “responsável” do que você!
Acho que continuo responsável…
Mas nem sempre voto tão racionalmente assim.
Como sabe, o meu voto em Dilma em 2014 foi sobretudo um voto passional, uma maneira de me posicionar contra a eminente classe média escravagista da República dos Bruzundangas, coisa que nunca escondi. É verdade que, aqui pra nós, a opção Aécio Neves não era das mais entusiasmantes…
Enfim, o mundo é um moinho, como diria Cartola.
Abração,
Luciano
Meu caro Luciano:
Não queria transformar a Revista numa conversa pessoal entre nós dois mas acho que as questões levantadas têm implicações políticas gerais que, me parece, justificam meu comentário diante da sua sutil e simpática gozação (Oh! Oh! Oh!). Mesmo que a racionalização em eleição seja meio duvidosa, eu disse que votei em Lula porque apostava, racionalmente, que o PT viesse a ser o partido social-democrata do Brasil e um partido social-democrata de massas. Digamos que eu desejava que o Brasil tivesse um partido desses; Brizola, personalista e populista, não tinha esta vocação, e o PSDB, embora tivesse os melhores quadros e propostas era um partido de intelectuais (no que tem de bom e de limitado). Pois é: tenho uma tendência social-democrata naquilo que é possível nos trópicos. Mas, pensava e ainda penso hoje (concordando em parte com ele) que Lula na presidência teria sido um desastre maior do que Collor (até porque este saiu logo). Para minha surpresa, em 2003 Lula na presidência teve uma postura muito equilibrada, provavelmente graças a Antônio Palloci, fez um ajuste fiscal maior do que o PSDB teria feito. Eu tinha votado em Serra, desistindo do PT virar um partido social-democrata, mesmo irritado porque ele, oportunista, não defendeu o que Fernando Henrique tinha feito de melhor. Mas, nos primeiros anos do governo Lula eu fui um defensor da sua política macroeconômica que, como sabemos, continuou a politica de FHC, muitas vezes contra vários amigos economistas de “esquerda” (me permita as aspas). Ocorre, meu caro Luciano, que no seu segundo governo, Lula vestiu a roupagem populista que tinha guardado no armário e, quando o milagre econômico mundial desandou, resolveu que tinha que gastar mais e mais, seja para manter o falso milagre brasileiro seja para garantir a manutenção do partido no poder (mesmo depois do mensalão). E para isso, como bom populista, fabricou um bocado de mitos que ainda hoje vem enganando os incautos, muitos dos quais perdoam qualquer coisa de um retirante nordestino que virou presdiente e que se vende como opção à “eminente classe média escravagista da República” embora adore os seus encantos. Sintese: nunca fui lulista e, apesar dele, apenas apostava no partido que ele dirigia e que, até então, diga-se de passagem, tinha um respeitável grupo de líderes políticos e intelectuais. A maioria saltou do barco antes que afundasse, provavelmente percebendo o caminho que estava escolhendo. O mundo é um moinho. Mas não convém acreditar nos combates quixotescos contra moinhos de ventos.
Conjeturas quanto ‘ao que poderia ter sido e não foi’, expressas na pergunta “E se…?”, não mudam o passado, é certo. Mas é bom lembrar a frase do pensador britânico Edmund Burke, dita no século xviii (Ernesto Che Guevara citou-a mais de uma vez): “Aqueles que desconhecem a história estão fadados a repeti-la.”
Assim pareceram-me utilíssimas as reflexão de Sérgio C. Buarque sobre a desastrada eleição de Jânio e suas consequências, bem como as lucubrações análogas: e se? Brizola ou Covas, em vez Lula, chegasse ao segundo turno em 1989…?, e se? Tancredo não morresse em abril de 1985…?
Acrescentaria outras, agora na categoria ‘pensar o impensável’, a sugerir que tudo poderia ter sido pior:
E se? a ditadura apresentasse ao colégio eleitoral um candidato mais palatável que Maluf?
E se? Geisel perdesse a ‘queda de braço’ com Sílvio Frota?
Ou, a voltar mais ainda na história e lembrar outro feito do marechal Henrique Dufles Teixeira Lott:
E se Lott? mantivesse-se fiel a suas convicções legalistas e não liderasse o golpe de 11 de novembro de 1955 (à época batizado com engenhoso eufemismo: “retorno aos quadros constitucionais vigentes”)?
Meu caro Sérgio
Sem entrar no mérito politico e histórico do teu excelente artigo, ao lê-lo me veio um episódio pessoal que revela o respeito nacional pela figura de Lott. Aos 16 anos, ainda morando no Crato, escrevi uma carta pra ele pedindo uma orientação sobre o que eu deveria fazer para realizar o meu sonho de ser piloto da aeronáutica. Ele me respondeu de próprio punho e, seguindo sua orientação, só não entrei para a FAB porque, já em Barbacena, descobriram que eu sou daltônico. E se, … eu não fosse daltônico?