Helga Hoffmann

Ao fim da campanha eleitoral para o primeiro turno da eleição francesa de 23 de abril, ninguém se arrisca a prever o resultado. Depois que as pesquisas de opinião e analistas supostamente racionais se enganaram sobre Brexit (o referendo que acabou selando a saída da Grã-Bretanha da União Europeia) e sobre as possibilidades de Donald Trump se tornar presidente dos Estados Unidos, parece que a aversão ao risco se aprofundou entre os analistas que acompanham as pesquisas de opinião, enquanto a disposição dos eleitores de assumir riscos parece aumentar.

Ao que parece a tendência da era pós-verdade é rejeitar “o que está aí”, seja lá o que for e mesmo sem maior clareza sobre o que virá em seu lugar. E o padrão pós-verdade esteve presente na campanha francesa: a facilidade com que os candidatos fizeram afirmações que não podiam comprovar foi função da dificuldade de desmascarar falsidades depois que elas se espalham pelos meios de comunicação. Adianta lembrar que só depois do referendo britânico é que ficou claro que eram falaciosas as promessas do Brexit?

A campanha eleitoral francesa conseguiu reunir mais incertezas que qualquer das anteriores. Começaram com o tumulto no Partido Socialista quando François Hollande anunciou em dezembro passado que não buscaria a reeleição de tão baixa que estava sua popularidade. Era a primeira vez desde 1958 que isso acontecia na França. As perspectivas de emprego melhoraram inesperadamente no segundo trimestre de 2017, tarde demais para Hollande e o PS.

A surpresa seguinte veio com as prévias do Partido Socialista, em que saiu vitorioso o candidato da extrema esquerda do Partido, Benoît Hamon, do movimento Jovens Socialistas. Hamon não conseguiu reanimar os militantes do PS, com sua versão social-ecologista e partidária da permanência na Zona do Euro. Não se sabe se isso explica o lançamento de candidatos mais à esquerda da esquerda, tão à esquerda que tocam a direita, como Jean-Luc Mélenchon cujo partido França Insubmissa (FI) tem posição sobre a Europa na prática igual à do Front Nacional, o partido de Marine Le Pen. Mas sempre é possível achar alguém mais à esquerda: para o fundador do Parti de la Démondialisation (Partido da Desglobalização?),Jacques Nikonoff, que quer “devolver a soberania monetária ao povo”, Mélenchon é por demais conservador, pois “uma política de esquerda é impossível dentro do Euro” e Mélenchon ainda pretende discutir tal questão tão indiscutível dentro de sua tese de uma “refundação da Europa”.

Parece que surpreendeu também a derrota tão contundente de Nicolas Sarkozy e Alain Juppé nas primárias dos Republicanos. Os dois se acusaram mutuamente de infiltrar estranhos no partido dando a vitória a François Fillon. Este chegou a estar à frente de Le Pen no início da campanha, mas caiu espantosamente com o escândalo do “falso emprego” que teria arranjado para sua mulher. À medida que a campanha avançou foi se recuperando nas sondagens, mas já não conseguiu voltar à posição inicial, ainda que Marine Le Pen também esteja envolvida em investigações às quais se recusa a comparecer alegando imunidade de campanha eleitoral.

São onze candidatos neste domingo, o que obviamente contribui para a incerteza, quando contemplamos as possibilidades de “voto útil” das várias tendências. Sem falar na elevada proporção de indecisos. A esquerda (moderada, digamos) que quer manter a Zona do Euro fugirá de Mélenchon, extremista,  para Emmanuel Macron, do centrismo amável, social-liberal e europeu? Ou aceitará o PS com Hamon? A direita dos Republicanos, que considera excessivo o radicalismo de Le Pen, voltará para François Fillon, de quem se afastara depois do escândalo do “falso emprego” para sua mulher e filhos? Ou essa direita que não quer Le Pen será “voto útil” para Macron? Le Pen se radicalizou ainda mais no final da campanha, prometendo expulsar até mesmo imigrantes legais e colocar forças militares a controlar as fronteiras.

Estamos no século XXI, globalizado e digital, então sabemos que em seu site a multifacetada Pamela Anderson pediu que os franceses votem em Mélenchon, “a fellow animal crusader”(sic) porque teria oferecido asilo a Julien Assange. Será que ela reparou que, além de querer a França fora da União Europeia, ele andou expressando simpatia por Nicolas Maduro, da Venezuela? Mais ou menos na outra ponta do espectro político francês, Marine Le Pen contava ter apoio dos Nobel Paul Krugman e Joseph Stiglitz, dois críticos radicais do Euro, até que Krugman publicou no Le Figaro um artigo mostrando que a França terá grandes perdas se sair do Euro.

No país que inventou a esquerda e a direita, os dois extremos estão mais embaralhados que nunca nesta campanha. Le Pen, que sempre fala diante de uma plaquinha “au nom du peuple”, declarou há algum tempo que Jean Jaurès apoiaria o programa do Front Nacional. E quem vai averiguar se o Front Nacional de 2017 é diferente do Front Nacional de 1914? Como Hollande já declarou Jaurès “o homem do socialismo” e Sarkozy disse que seu partido era “sucessor de Jaurès, desistimos de entender por ora a afirmação de Le Pen. É tudo uma batalha entre esquerda e direita pela mente e o coração dos operários franceses.

E quem lembra o economista Thomas Piketty, popstar de algum tempo atrás? A provar mais uma vez que os franceses não ligam muito p’ra economista (lembram que seu livro “O Capital” só virou bestseller quando saiu a tradução em inglês?), apoia o candidato do PS Benoît Hamon, mas parece que não está muito confiante, pois já considera seu “voto útil”: disse que seu voto seria antes para Mélenchon que para Macron. Ou seja, prefere acabar com a Zona do Euro, pois considera Macron culpado do desastre do quinquênio François Hollande. Não importa que Macron tenha deixado o governo depois de pouco tempo.

Será um fruto da globalização? O chefe de redação do jornal Libération decididamente teve seu dia de ironia britânica. Contou que dos 11 candidatos o que tem 1% nas pesquisas de opinião tem absoluta certeza que vai ganhar: “Haverá um pastor de ovelhas no palácio l’Elysée”, garantiu Jean Lassalle ao fim de sua campanha. Lassalle vem de uma família de pastores de rebanhos migratórios dos Pirineus. Pode ser que as pesquisas de opinião se enganem, mas afinal de contas os eleitores não são ovelhas.