Recife, 20 de julho de 2017
Querido Fernando,
Pô, cara, isso não se faz com os amigos. Puta sacanagem. Ainda ontem fui a uma conversa boa com Zé Cláudio e Wilton de Souza mediada por Joana D’Arc no Espaço Caixa Econômica, a propósito do lançamento do livro organizado por Betty Lacerda, Lula Cardoso Ayres – Fotografias. Você seria a melhor companhia para estar lá comigo, Fernando. Artista multifacetado, o que mais gosto de Lula Cardoso Ayres são as fotografias, para o que teve uma competente companhia: Alcir Lacerda, pai da organizadora do livro.
O conteúdo desse livro, os cenários e personagens fotografados, o Recife, a beleza, coisas da vida. Esses eram nossos assuntos. Falávamos mais por telefone do que ao vivo. Você, ligando, ou recebendo chamada minha, nomeava-me pela última personagem de nossa conversa. Que durava até aparecer a próxima. A primeira foi “Miss Dayse”. Vínhamos discutindo a obra de Gilberto Freyre, a especificidade da questão racial do Brasil. Nasceu daí a personagem, do filme “Driving Miss Dayse”. Eu, a branca. Você, o mulato.
Não havia conversa nenhuma de nossos corpos. Nosso diálogo foi, desde o princípio, todo tempo, de espírito. Profundo. Mesmo com tão pouco tempo de conhecimento, cinco anos. Talvez porque nossa amizade foi de velhos e, com a porta de saída mais próxima do que a de chegada no mundo, os velhos andam mais ligeiro.
Às vezes (que ninguém é de ferro), uma pitada de leviandade contra os que não podiam ouvir os fios de Graham Bell que nos separavam entre o Pina e o Setúbal.
Pessoalmente, nos encontrávamos nas reuniões da revista, nas comidas na minha casa, uma vez na casa de Ester e Sérgio. Você, presença constante. Mesmo da primeira vez, quando nem havia sido convidado, pois seríamos apenas os editores. Foi na tarde em que entrevistamos, no sofá de minha sala, Fernando Lyra. A última entrevista dele antes de morrer. Eu, portadora do convite, anfitriã, não fiz perguntas. Ouvi as de Sérgio e Luciano. Apenas ao final, pedi para ele cantar para nós a música com a qual costumava encerrar as reuniões do Rotary em Caruaru.
O ambiente, ao final da entrevista, estava à vontade. O vídeo mostra: ríamos. Fernando Lyra me corrige.
– Não, Teresa, não é verdade.
– Minha fonte de informação é segura, Fernando.
– As reuniões eram do Lyons.
E finalizou-se a entrevista com ele cantando Laura, com discreto acompanhamento por nós todos.
Você veio com Luciano, um dos editores à época. E chegou rindo da própria gaiatice. Como iria perder aquela entrevista? Com João, que filmava, assistiu a tudo.
Somente nós dois, nos encontramos apenas uma vez. No dia em que nos conhecemos, se lembra? Éramos convidados de Helena para um jantar na casa dela. Você não sabia o caminho. Com o jeito de sinhazinha que decide a vida dos outros, a amiga arranjou tudo para que você viesse de carro até meu apartamento. Daqui, seguiríamos no meu para a casa dela.
Isso foi antes da Revista “Será?”. Sabíamos um do outro por amigos comuns. Lera algumas matérias de teu blog. A imagem que fazia do escritor de interiores era de uma pessoa de estatura de médio para baixa. E me chega à porta um homem alto, bonito, mais para mulato do que para branco, portando um violão, exigência da sinhazinha em troca do jantar. Nenhum de nós dois, naquela quadra da vida, estava com o coração ocupado. Poderia ter resultado num romance, por que não? Afinal, é do acaso que surgem os melhores.
Não sei o que pensaste então, Fernando. Mas, pela sincronia que rápido se estabeleceu entre nós, possivelmente o mesmo que eu. Nascia ali uma comunhão de espíritos. Gozos da alma.
Vai-se um amigo, vai junto um pedaço da gente. Aquele que só ele ocupava, por menor que fosse.
De nosso penúltimo encontro, você, Chico de Assis e eu, aqui em casa, para um projeto de leitura que fracassou à primeira tentativa, ficou minha última personagem das nossas conversas telefônicas: Madame del Toboso. No último encontro, um almoço aqui em casa, você já não estava entre nós. As dores não te permitiam nem permanecer sentado por muito tempo.
Entraste fundo, amigo, em teu interior. E não aguentaste a barra. Acontece. Nas melhores famílias de Londres.
Maravilhoso, comovente! Reflete bem o que ouvi e li a respeito dele, com a emoção dos afetos.