O compositor, ensaísta e diretor de teatro alemão Richard Wagner (1813-1883) levou a ópera a elevadas alturas em matéria de intensidade musical, revolucionando toda a experiência operística. Diferentemente de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Giuseppe Verdi (1813-1901), Wagner se encarregava pessoalmente de cada aspecto de suas óperas. Escrevia os libretos, buscava os cantores, regia e até criou um teatro de ópera sem equivalente. Seu monumental ciclo do Anel dos Nibelungos, com quatro óperas interligadas, ocupa lugar ímpar na cultura ocidental.
Wagner foi um homem de extremos em todos os aspectos de sua vida, da ópera à política, dos escritos teóricos às questões íntimas, mas acima de tudo em sua música e na vasta influência que exerceu. Suas posições polêmicas sobre quase tudo também dificultaram a separação entre os sentimentos pessoais e as relações criativas. Seu pai biológico seria Ludwig Geyer, amante de sua mãe e seu segundo marido, depois de Carl Friedrich Wagner. Ator consagrado, Geyer despertou no menino a paixão pelo teatro e chegou a levá-lo ao palco em papeis infantis. Crescendo em Dresden com a ambição de se tornar dramaturgo, Richard, que na época usava o nome possivelmente judeu de Geyer, devorava as obras de William Shakespeare (1564-1616) e Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
Interessou-se pela música, de início, com finalidades dramáticas. Apesar de não ter concluído os estudos secundários, frequentou a Universidade de Leipzig, onde mergulhou na música de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Sua primeira ópera, Die Feen, ou As fadas, foi composta aos 20 anos sob a influência de Der Freischütz (em português, O Franco-Atirador) de Carl Maria von Weber (1786-1826), obra magnífica e inovadora que é considerada por muitos como o marco fundador do Romantismo alemão na ópera. Logo seria convidado a dirigir teatros de óperas regionais.
Após tempos difíceis em Riga e Paris, Wagner ficou feliz em retornar a Dresden com o sucesso da estreia de sua bela ópera Rienzi em 1842, com forte influência do estilo italiano. O navio fantasma (em alemão, Der Fliegende Holländer) estreou no ano seguinte, reconhecida como a primeira ópera com a inconfundível assinatura musical de Wagner. Regente de talento, ele foi então contratado para a direção da ópera da corte de Dresden, onde Tannhäuser saiu-se melhor em 1845. Seguiu-se Lohengrin, mas a essa altura a militância política de Wagner impediu que a ópera fosse montada no teatro da corte. Em 1848, a revolução na França desencadeou rebeliões na maioria dos territórios alemães, e Wagner, abraçando as novas ideias, envolveu-se em 1849 na revolta de Dresden. Com o esmagamento da sublevação, foi obrigado a fugir.
Residindo em Zurique, dedicou-se à regência, à composição, à leitura do filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) e a escrever. Entre os principais ensaios dessa época está “A obra de arte do futuro” – articulando sua famosa ideia da ópera como expressão da Gesamtkunstwerk, ou “obra de arte total”. Ele apresenta o drama musical como uma arte capaz de fundir diferentes formas de expressão, da poesia à música, passando pelo movimento e os dispositivos cênicos. Wagner também explora a poesia germânica e nórdica em busca de material operístico que traduza suas ideias místicas sobre a força do amor e a identidade alemã.
Em 1852, havia concluído o libreto do seu ciclo de quatro óperas O Anel dos Nibelungos, e em 1857 já compusera as duas primeiras – O ouro do Reno e A Valquíria (em alemão, Das Rheingold e Die Walküre) – além de parte da terceira, Siegfried. Mas nesse mesmo ano sobreveio também a paixão louca por uma mulher casada, a poetisa alemã Mathilde Wesendonck (1828-1902), sua musa inspiradora de Tristão e Isolda (em alemão, Tristan und Isolde).
Tristão e Isolda fala de um amor romântico tão transcendental que só pode atingir a perfeição na eternidade da morte. Essa história trágica foi narrada no séc. XIII pelo poeta alemão Godofredo de Estrasburgo (1180-1210) em Tristan, que inspirou Wagner a deixar de lado o projeto do Anel dos Nibelungos. Os escritos de Schopenhauer sobre o desejo sexual e a morte, temas centrais da ópera, também haviam chamado sua atenção.
Como Tristão, porém, também estava apaixonado por uma mulher proibida, Mathilde Wesendonck foi para Wagner a musa casada de um amor erótico tão grande que não caberia no mundo físico. As insidiosas texturas harmônicas parecem fazer o sofrimento dos amantes doer com beleza. Ao testar os limites absolutos da tonalidade, a ópera representaria um passo crucial para as óperas atonais modernas. A ópera manteve um legado entre os compositores ocidentais e serviu de inspiração a músicos como Gustav Mahler (1860-1911), Richard Strauss (1864-1949), Alban Berg (1885-1935) e Arnold Schoenberg (1874-1951), sendo muitas vezes considerada o fim da harmonia convencional e da tonalidade.
A ópera se passa no mar, perto da Cornualha, e em terras dos castelos da Cornualha e da Bretanha. No navio de Tristão, Isolda está furiosa. Eles se amam, mas Tristão é obrigado a ignorá-la enquanto a acompanha à Cornualha para casar com seu tio, o rei Marke. A criada de Isolda, Brangäne, apela para Tristão, cujo companheiro, Kurwenal, insiste que Tristão não está apaixonado por Isolda. A fúria de Isolda aumenta quando ela lembra que Tristão lhe deve a vida: ele chegara à Irlanda à beira da morte, ferido pelo noivo de Isolda, o lorde irlandês Morold, a quem matara. Ela tinha o dever de matá-lo, vingando Morold, mas o salvou.
Com ideias suicidas, ela pede a Brangäne uma poção letal. Mas seu olhar encontra o de Tristão. Ela busca vingança pela morte de Morold, e Tristão oferece sua espada e a convida a matá-lo. Em resposta, Isolda dá a Tristão uma bebida de “reconciliação”. Os dois bebem a poção. À espera da morte, abraçam-se apaixonados. Quando o navio atraca, Brangäne revela a Isolda que trocou a poção mortal por um elixir do amor. Desesperada, Isolda desmaia.
No ato seguinte, a noite cai no jardim do castelo da Cornualha e Brangäne adverte Isolda contra o “amigo” de Tristão, Melot, que está numa caçada com o rei Marke. Mas Isolda pede a Brangäne que acenda uma tocha, que chamará Tristão. Juntos, Tristão e Isolda anseiam por um esquecimento em que possam amar-se para sempre, distantes do mundo:
Brangäne avisa que o dia está chegando. Tristão assegura a Isolda que seu amor é invencível, mesmo diante da morte. Brangäne volta a adverti-los, os amantes anseiam por uma noite eterna. De volta da caçada, Marke, arrasado, encontra os amantes; Melot é desmascarado como traidor. Tristão o desafia, mas abaixa a espada ao ser atingido por ele.
No último ato, Tristão, à beira da morte no castelo de sua família na Bretanha, é despertado pela música da flauta de um pastor. Kurwenal lhe garante que ficará curado em sua velha casa. Mas Tristão insiste que despertará num lugar misterioso, ansiando pela morte. Kurwenal explica que Isolda foi chamada para curá-lo. Tristão sente o navio se aproximando, e a embarcação com Isolda de fato chega, lançando-o num delírio de felicidade. Entra Isolda. Tristão levanta-se e se aproxima dela, mas morre em seus braços. Num segundo navio chegam Marke, Melot e Brangäne, que falou a Marke da poção do amor. Kurwenal mata Melot. Marke lamenta-se, pois esperava que Tristão e Isolda casassem. Mas Isolda não o ouve, arrebatada pelo amor que compartilhava com Tristão (vídeo a seguir). Como que transportada, ela cai sobre o cadáver de Tristão. Marke abençoa os corpos dos amantes, encerrando a ópera.
Tristão e Isolda deveria estrear em Viena em 1861, mas Wagner desistiu após 77 ensaios. Os dois papéis principais, com efeito, estão entre os mais exigentes, fisicamente, de toda a ópera, e musicalmente não se pareciam com nada até então conhecido. Em 1865, por fim, o casal de cantores Ludwig e Malvina von Carolsfeld estreou os papeis de Tristão e Isolda. Um mês após quatro récitas que ficaram na história, Ludwig morreu. Alguns acusaram as exigências sobre-humanas do papel de matar o chamado Heldentenor – “tenor heroico”, que existiu no período romântico da ópera alemã com grande potência vocal, grande resistência física, capaz de enfrentar os principais papéis wagnerianos, que exigem que ele cante quase ininterruptamente por horas a fio.
Outro fato curioso é que Tristão e Isolda teve a sua estreia sob a regência de Hans von Bülow (1830-1894), amigo de Wagner. Nesse mesmo ano, porém nasceria outra Isolda: a filha de Wagner com a mulher de Von Bülow, Cosima. O escândalo fez com que o rei Ludwig transferisse Wagner para a Suíça. Quando ela enfim se divorciou de Von Bülow, mais um amigo se afastou de Wagner: o pai de Cosima, o grande pianista, compositor e regente Franz Liszt (1811-1886). Wagner casou-se com Cosima em 1870 e se estabeleceu em Bayreuth, cidade no norte da Baviera, na Alemanha, onde construiria o teatro há tanto sonhado e concluiria o ciclo do Anel dos Nibelungos. Lá o casal viveu até o fim da vida e foi sepultado. O lugar se tornou um centro de peregrinação para os fãs do compositor.
Embalados por tantas aventuras amorosas, continuamos no Romantismo em nosso próximo artigo com a grandiosa Aida de Verdi, ambientada no Egito, no tempo dos faraós. Uma das óperas mais populares do repertório, muita gente acredita que Aida estreou em comemoração à abertura do canal de Suez, o que não é verdade. Os descobrimentos arqueológicos nas terras banhadas pelo rio Nilo no final do século XIX desencadearam uma espécie de egiptomania na Europa. Apesar dos cenários monumentais, a obra traz também um caráter íntimo, ao falar dos conflitos individuais e de suas paixões. A história de um triângulo amoroso traz a famosa Marcha Triunfal no final do segundo ato, mas o final que lhe aguarda não tem nada de celebração…
Feliz de ter lido o artigo de Frederico Toscano, muito interessante. Não sou fã de ópera, mas fui ler porque tenho “Tristan und Isolde” , de Gottfried von Strassburg, numa edição de Stuttgart, 1877, quando os dois “s” ainda eram “estsét” (que não tenho aqui no teclado). Ganhei de um marido dinamarquês, que em rompante escreveu a dedicatória “eu sou teu, tu és minha”, acho que está em alemão antigo. Será talvez por isso que ame a palavra “efêmero”? Ainda que não tenha nenhuma dificuldade em ler letra gótica, só li pedaços esparsos, e continuo sem ânimo para tentar as 644 páginas em forma de poema. Mas quem sabe o artigo de Frederico Toscano me leva pelo menos a ler Friedrich Nietzsche, “Die Geburt de Tragödie aus dem Geiste der Musik”, em volume herdado da biblioteca dos meus pais, edição de 1930. São só 25 páginas em gótico e fiquei curiosa com o título, “O Nascimento da Tragédia de dentro do Espírito da Música”, nem sei se tem a ver, mas essa ópera é tragédia em cima de tragédia, sempre digo que sou por demais “arroz com feijão” para esse tipo de coisa.
“der Tragödie” – faltou um r na citação da obra de Nietzsche
Cara Helga, fico lisonjeado em ter despertado sua atenção ao mundo da ópera por meio de “Tristão e Isolda” e em ganhar seu brilhante comentário, que coroa o artigo. Por sinal, a edição de 1877 da obra de Estrasburgo é uma pérola de sua biblioteca, assim como a edição de 1930 de “O Nascimento da Tragédia” de Nietzsche, sem dúvida influenciada pela ópera wagneriana enquanto obra total (Gesamtkunstwerk). Abraços operísticos!
Quem só tardiamente tomou-se de amores pela música operística e assim conheceu Verdi, Ravel, Bizet e sobretudo Wagner, encanta-se com a brilhante introdução ao maior de todos, o genial e controverso alemão. O artigo exala erudição, conhecimento da obra e vida do autor e aptidão técnica, didática para explicar e interessar o leitor no monumento musical-teatral construído por Wagner. Envio agradecidos cumprimentos a Frederico Toscano.
Prezado Marco Antônio, agradeço pelas gentis palavras e recepção ao artigo. Apesar de sua biografia polêmica, Wagner deixou um legado operístico ímpar, de riqueza inesgotável e que merece todo respeito, mesmo por aqueles que possuem gosto dirigido a outros estilos. Nosso objetivo é justamente atrair e estimular novos ouvintes. Abraços musicais!