Frederico Toscano

As últimas horas de Mozart, tela de Henry Nelson O’Neil (1849).

Quase 226 anos após a sua morte, o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) continua nadando na crista da onda da popularidade internacional. Em 2016, foi aclamado como o artista que mais vendeu discos, superando astros da música pop como Adele e Beyoncé (Estadão, 12.12.2016).

Mozart se tornou conhecido internacionalmente ainda na infância por ser prodígio na música – certamente o mais famoso da história. O talento precoce de Wolferl, seu apelido familiar, era tão impressionante que chegou a ser estudado cientificamente pela renomada Royal Society de Londres. Ele compôs sua primeira sinfonia aos oito anos de idade. A história dos 12 meses finais da vida do compositor e sua morte chocantemente precoce aos 35 anos, porém, tornaram-se uma obsessão durante o século XIX – e isso pouco mudou desde então.

O último ano de Mozart sempre foi um presente para a imaginação romântica, colaborando ainda mais para isso se uma celebridade da música morre em aparente pobreza abjeta enquanto escreve uma missa fúnebre encomendada por um misterioso estranho. Seu enterro em uma vala comum e não identificada escandalizou as gerações posteriores. Numa famosa lenda, uma tempestade de neve violenta irrompeu sobre o funeral e o mau tempo piorava à medida que o corpo do compositor descia ao túmulo.

Para coroar a criativa imaginação, espalharam-se rumores de envenenamento após a morte de Mozart, quando seu principal concorrente, o compositor italiano Antonio Salieri (1750-1825), passou a ter delírios fantasiosos na velhice assumindo a culpa pela morte do rival. Isso acabaria inspirando as peças teatrais de Alexander Pushkin (Mozart e Salieri, 1830) e Peter Shaffer (Amadeus, 1979), além do filme ganhador de oito Óscares em 1984. Até então, o século XVIII havia gerado um Mozart subversivo, personificado pelo rebelde Don Giovanni, e um Mozart visionário, compondo as suas três últimas sinfonias numa torre de marfim.

A história da composição da missa fúnebre de Mozart, mais conhecida como Réquiem, deve ser a mais difundida de toda a existência do compositor. Aqui vale uma pausa para esclarecer o gênero musical. Um réquiem (do latim requiem, acusativo de requies, “descanso”) é uma cerimônia prevista na liturgia da Igreja Católica oferecida para o repouso da alma de uma ou mais pessoas falecidas. É frequentemente, mas não necessariamente, celebrada no contexto de um funeral. Era costume os compositores mais antigos musicarem certas partes do texto em latim dessa celebração, que era padronizado. A música para uma missa fúnebre também era conhecida como réquiem. Inúmeros réquiens foram compostos ao longo da história da música, sendo o de Mozart o mais famoso deles por envolver, além da música de beleza ímpar, muitas especulações sobre o contexto de sua composição. O Lacrimosa é uma das partes mais conhecidas da obra:

Canta o coro:

Lacrimosa dies illa

Qua resurget ex favilla

Judicandus homo reus.

Huic ergo parce, Deus:

Pie Jesu Domine,

Dona eis requiem. Amen.

[Dia de lágrimas aquele / em que ressurgirá das cinzas / o homem para ser julgado. / Tende, pois, piedade dele, ó meu Deus! / Ó misericordioso Senhor Jesus, / concedei-lhe o repouso eterno. Amém.]

O caráter romântico premonitório do Réquiem fascinou todos os interessados em música, mozartianos ou não, durante mais de 200 anos. E a primeira vítima dessa fascinação foi o próprio Mozart. Segundo a narração do primeiro biógrafo de Mozart, Franz Xaver Niemetschek (1766-1749), alguns meses antes de sua morte, em 1791, Mozart recebeu a visita de um desconhecido que lhe trazia uma carta anônima. Nela, em meio a grandes elogios, alguém lhe propunha compor uma missa fúnebre, e pedia as condições para tal encomenda.

O compositor consultou sua esposa, Constanze Weber (1762-1842), que o aconselhou a aceitar a oferta. Mozart pediu, então, uma quantia ao que parece moderada, mas não se comprometeu com prazo de entrega algum. Pouco depois, o desconhecido regressou com o dinheiro e a promessa de outro pagamento similar no momento da entrega do trabalho; ao mesmo tempo, recomendou-lhe que não tentasse averiguar quem fazia a encomenda, porque seria inútil.

As diversas narrações do episódio feitas por contemporâneos do compositor diferem entre si em detalhes. Por exemplo, o visitante estava vestido de preto ou com uma capa cinza, segundo diferentes autores; alguns dizem que o pagamento dos honorários foi imediato, outros que foi efetivado na segunda visita; esta, para alguns, aconteceu no dia seguinte à primeira, e para outros, vários dias depois. Somente mais de um século e meio depois luzes seriam lançadas sobre esse mistério.

Em 1954 foi encontrado um retrato a óleo de Franz Anton Leitgeb (1749-1812), que teria sido, segundo todos os indícios, o tal misterioso enviado. Tratava-se de um aficionado por música que tocava vários instrumentos e tinha uma estreita amizade com Franz Walsegg, conde von Stuppach (1763-1827), que foi quem encomendou o Réquiem. Em 1964 foi encontrado, nos arquivos municipais de Wiener Neustadt, cidade a 50 quilômetros de Viena, um longo relatório assinado por Anton Herzog, diretor do Centro de Informações da região, testemunha em primeira mão de todo o assunto (era professor de um colégio que o conde Walsegg financiava).

Esse relatório eliminou quase todas as dúvidas que torturavam os estudiosos. Faz referência ao tal conde, um senhor feudal culto e misantropo, que morava em seu castelo em estilo antigo. Esse curioso personagem era casado com Anna von Flamberg (1771-1791), por quem era muito apaixonado. O conde tocava violoncelo e organizava concertos. As obras interpretadas nessas reuniões eram, em sua maioria, encomendadas secretamente pelo conde a compositores de destaque e depois apresentadas como se fossem suas. A música era executada, e depois o conde perguntava quem se atrevia a descobrir o autor; todos diziam que não podia ser outro senão ele mesmo… “Achávamos divertido como ele nos considerava tão inocentes”, comenta Herzog.

Eis que no dia 14 de fevereiro de 1791, a bela condessa, que tinha apenas 20 anos, faleceu inesperadamente, deixando o seu esposo arrasado. O conde mandou erguer para ela um imponente mausoléu e encomendou a composição de um réquiem, que faria passar como próprio e seria tocado em cada aniversário da data fatídica. A encomenda foi feita a Mozart, que, no entanto, morreria em 5 de dezembro do mesmo ano. Apesar disso, o conde recebeu a obra completa das mãos de Franz Xaver Süssmayr (1766-1803), aluno de Mozart.

Walsegg acabou estreando o Réquiem apenas em dezembro de 1793, em Wiener Neustadt. Depois da morte do conde, foi encontrado no arquivo musical do castelo o manuscrito original, no qual se constatou, após futuras perícias, que Süssmayr havia tentado imitar a letra de Mozart. Solucionado o mistério da encomenda do Réquiem, acaloravam-se a partir de então as discussões sobre que parte da obra o próprio Mozart concluiu e quanto Süssmayr escreveu ou completou depois de sua morte.

Inicialmente afirmava-se que o compositor teria apenas finalizado a seção do Introitus (Requiem aeternam) e esboçado os temas do Kyrie (vídeo a seguir) até o final do Hostias. O Lacrimosa teria ficado somente com oito compassos. Süssmayr teria terminado o Lacrimosa e composto totalmente as partes do Sanctus, do Benedictus e do Agnus Dei. Mas um número cada vez maior de pesquisadores vem discordando dessa explicação.

Em primeiro lugar, a existência de qualquer contribuição de Süssmayr está seriamente em dúvida. A ideia de escolhê-lo foi praticamente um ato de desespero da viúva diante da necessidade de cumprir a encomenda do conde, pois Constanze, que não estava convivendo bem com Süssmayr quando perdeu o marido, segundo ela mesma declarou, encomendou a finalização da obra a outro discípulo do marido, Joseph von Eybler (1765-1846), que ela realmente considerava bem mais talentoso, mas este se recusou a fazê-lo (talvez por se sentir indigno), motivo pelo qual a viúva não teve outra alternativa senão entregar o trabalho a Süssmayr, que a história esqueceu por nunca passar de um compositor menor, como atesta Peter Gay – professor da Yale Univesity e, além de biógrafo de Mozart, notável estudioso do pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939).

A viúva, em reveladora carta a um antigo amigo da família, o abade Maximilian Stadler (1748-1833), de maio de 1827, minimizava totalmente a contribuição de Süssmayr sobre o Réquiem: “Eu achei que qualquer um poderia fazer aquilo”, diz ela, “porque todas as partes principais já estavam escritas”. Nessa mesma carta, Constanze narra que, nos últimos dias de sua vida, Wolfgang trabalhou várias vezes no Réquiem, acompanhado por Eybler e Süssmayr, e que ela mesma participou do ensaio. “Parece-me estar ouvindo Mozart quando dizia a Süssmayr: ‘Ei, você está aí como um pato no meio de uma tempestade. Você nunca poderá compreender isto’”. Constanze chega a sugerir que Süssmayr havia roubado apontamentos que Mozart tinha em seu quarto, aproveitando as circunstâncias, segundo o Prof. Lincoln Maiztegui-Casas, da Universidade de Montevidéu. Esse grave relato é crucial para por em xeque uma suposta contribuição de Süssmayr ao Réquiem de Mozart.

Süssmayr seguiu em frente com sua sede de reconhecimento e logo atribuiu a si praticamente a autoria total da obra, já na época colocando-se veementemente contra os mais chegados a Mozart, desde Constanze até o abade Stadler. Um dos grandes biógrafos mozartianos, o pesquisador H. C. Robbins-Landon, provou que, depois da morte de Wolfgang, seu aluno se aproximou do grupo de Salieri, reconhecido como o maior rival de Mozart, e defende que, já nessa época, ele “jogava nos dois times”.

Era hábito de Mozart planejar integralmente suas obras em mente, nos mínimos detalhes, antes de escrevê-las na partitura, uma de suas qualidades excepcionais como compositor. Todos os documentos da época dizem que ele sentiu-se muito impressionado com aquela estranha encomenda; trabalhou na obra com paixão e, se não a terminou efetivamente, anotando tudo em partitura, foi pela urgência de outros empreendimentos, e não por desinteresse. Neste caso, ele certamente teria passado as instruções para os seus discípulos de como ele planejava construir o Réquiem, para que eles o concluíssem caso ele faltasse. O professor Konrad Küster, da Universidade de Friburgo (Alemanha), em seu livro sobre o compositor (Mozart: A Musical Biography, 1996), afirma que Süssmayr recordou-se, anos depois, de que ele e Mozart conversavam com frequência sobre o Réquiem, inclusive sobre a instrumentação, de modo que tinha uma boa ideia das intenções de Mozart.

O fato é que, em toda a extensão do Réquiem, o resultado é impressionante: a obra possui uma potência expressiva, uma força comovente tão intensa (e, em alguns momentos, apocalíptica e assustadora como o seu Dies irae a seguir), uma coerência e unidade sistêmica irretocável, que só pode ser obra de um músico absolutamente excepcional. Contra as pretensões e intenções de Süssmayr a própria envergadura do Réquiem é mais do que suficiente. Na beleza e poderio da música está a melhor prova de que essa missa teve um autor essencial, que foi Mozart.

A causa da morte do compositor tem intrigado pesquisadores há mais de 200 anos. Teorias apontam que Mozart poderia ter sido vítima de envenenamento, febre reumática e até mesmo de carne de porco estragada. Alguns pesquisadores chegaram inclusive a sugerir que o músico pode ter sido vítima de excesso de trabalho.

Cientistas da Universidade de Amsterdã apresentaram em 2009 uma nova teoria sobre a causa da misteriosa morte do compositor. Em um estudo publicado na revista Annals of Internal Medicine, eles defendem a tese de que Mozart teria sido vítima de complicações geradas por uma infecção bacteriana na garganta. Segundo os especialistas, os micro-organismos teriam infectado os rins, levando a um inchaço geral do corpo e à sua morte. Eles compararam os sintomas de Mozart – febre, irritação na pele, dores no corpo e inchaço, todos registrados em documentos da época – com os sintomas de doenças comuns na ocasião e analisaram milhares de casos entre 1791 e 1793, descobrindo que o edema era a terceira maior causa de morte na época, após a tuberculose e a desnutrição. Segundo o estudo, em dezembro de 1791 – o mês da morte de Mozart – os casos de edema eram ainda mais comuns entre homens de sua idade. Relatos dão conta de que o corpo do compositor estava tão inchado nos últimos dias de sua vida que ele não podia nem se virar na cama.

Mozart foi velado na catedral de Viena em 6 de dezembro e enterrado com discrição em uma cova não demarcada no cemitério da Igreja de São Marx, no subúrbio de Viena, sem ninguém a acompanhá-lo, o que, ao contrário das versões romantizadas, era um costume comum em seu tempo. Era uma época em que se desaprovavam funerais luxuosos e vistosos, o que havia sido objeto de decreto baixado pelo imperador José II. A simplicidade vigente se alinhava às convicções anticlericais e iluministas. É possível, contudo, a partir de um relato do pesquisador Otto Jahn de 1856, que Salieri e um grande amigo, o barão Gottfried van Swieten (1733-1803), estivessem presentes, além de seu aluno Süssmayr e mais dois músicos não identificados.

Os obituários foram unânimes em reconhecer a grandeza de Mozart. A maçonaria fez celebrar uma missa suntuosa no dia 10 – ele era maçom. Vários concertos foram dados em sua memória, e alguns em benefício da viúva. Mozart deixou manuscritos, cartas, instrumentos e outros objetos como herança, mas a avaliação financeira dela à época foi pequena. Hoje o valor do seu legado é incomensurável.