O fenômeno Trump não é um fato isolado. Representa a sequência de eventos com o mesmo corte.
Veja: a candidata da extrema direita, na França, Marine Le Pen, foi finalista no segundo turno na eleição presidencial francesa. O primeiro ministro italiano, Renzi, teve as reformas bloqueadas pelo Parlamento. O Reino Unido pediu para sair da União Europeia, pressionado pelo voto das cidades menores. A extrema direita alemã alcançou quantidade de votos nas recentes eleições impondo sua presença na coalizão do governo Ângela Merkel.
O conjunto desses acontecimentos sugere nova clivagem na análise do cenário político. Já não se trata mais de situar os fatos segundo uma ótica de esquerda e direita. Mas trata-se de encarar o século XXI como o espaço onde se desenrola embate entre vencedores e perdedores da globalização. Já não se lida com a disputa entre capitalismo e comunismo. O que interessa agora é quem vai salvar meu emprego, minha qualidade de vida, na economia globalizada.
Claramente as bases sociais da esquerda e da direita sofreram alterações. Não se configura exclusividade de votos do proletariado. Há incorporação de setores da nova classe média de um lado e de outro. E que setores são estes? Setores que se dirigem tanto para a esquerda quanto para a direita. São perdedores da globalização. São trabalhadores de setores tradicionais, menos competitivos e menos abertos à economia global.
Os vencedores são os setores mais competitivos, mais integrados à globalização, mais qualificados e integrados às atividades tecnológicas. Estes mantêm o emprego. Aqueles, perdedores, estão nos índices de desocupação. Com ameaça de não contar com proteção social. Ou, no caso de jovens, de não conseguirem construir um projeto de vida. Lembrando que o desemprego de jovens na Espanha é de 40% e, na França, é de 20%.
A crise econômica, acentuada pelo episódio do “subprime” em 2008, esgarçou a legitimidade política. E, nos últimos dez anos, aumentou o número de pessoas que não se sentem representadas pelas instituições políticas. A governança global não foi capaz de estruturar soluções sustentáveis do ponto de vista social. O desemprego transformou-se em intolerância. E a intolerância transfigurou-se em extremismo político.
O efeito Trump
Trump não é causa. Trump é consequência. De uma história que tem mais de vinte anos. O atual sistema de poder, dominante na América, consolidou-se nos governos Reagan e Clinton. Reagan aplicou a doutrina ortodoxa Thatcher. E Clinton a poliu com verniz distributivista. E muito carisma.
O fato é que a desregulação do sistema financeiro atravessou as gestões Clinton, Bush II e Obama. A desigualdade entre os americanos, nesse período, aumentou. A crise de Detroit reproduziu-se no cinturão da ferrugem. Por sua vez, a política de saúde, proposta no “Obama care”, sofreu cortes que reduziram seu potencial de benefícios para famílias mais vulneráveis.
Em resumo: os mais ricos ficaram mais ricos. E os mais pobres continuaram desassistidos. Estava plantada a semente Trump.
A semente Trump foi cultivada, por anos, pela oligarquia republicano-democrática. Que sempre trabalhou articulada com Wall Street. E negou o necessário a New Orleans no desastre das enchentes. Subtraiu programa de ocupação de mão de obra aos desocupados da periferia de Los Angeles. Hillary Clinton e o marido, dezesseis anos depois de deixarem a Casa Branca, chegaram à ultima campanha eleitoral com fortuna de três dígitos. Honorários pagos pela Goldman Sachs, entre outras.
O efeito PT / PMDB
O modelo ocidental de sociedade se define pelo autocontrole, onde o desenvolvimento promove o crescimento econômico e a integração social. Segundo Norbert Elias, a civilização configura interdependência social que leva ao controle dos afetos e à autorregulação. O desconforto, na sociedade atual, é consequência da ausência de reformas. Reformas que promovam a integração social. E que diminuam a desigualdade entre as pessoas.
Daí, Trump. E, no Brasil ?
Os dezesseis anos de gestão do condomínio PT / PMDB realizaram maquiagem na política de seguridade social. Mas não produziram nenhuma das reformas de que o País precisa. Nem a da Previdência, nem a Política, nem a Tributária.
As estruturas que moldam as instituições econômicas e sociais do país estão inteiramente defasadas. E permanecem mantendo privilégios de castas que detêm poder de influência na máquina do Estado. Enquanto isso, a desigualdade aumenta. A taxa de desemprego atinge dois dígitos. As famílias se endividam. Os jovens não enxergam chances no futuro. E a globalização agudiza as características produtivas e sociais desse quadro.
Qual é o resultado político de tal situação? Um aparente dilema entre nostalgia petista com Lula e brilharete temível com Bolsonaro. A exasperação social escorrega no abismo político. Esta é a réplica brasileira ao fenômeno Trump: Lula ou Bolsonaro. Sendo a aliança PT / PMDB, no Brasil, o correspondente partidário da oligarquia de republicanos e democratas, nos Estados Unidos.
O imobilismo político que bloqueou o “Obama care” lá corresponde à passividade que caracterizou aqui o patronato parlamentar.
Falta de espírito reformista
O que provocou o surgimento de Trump lá foi a falta de reformas. Institucionais e sociais. O que pode provocar o surgimento de Bolsonaro ou a ressurreição de Lula cá é a falta de reformas. Institucionais e sociais.
A repulsa social contra a ordem atual tem produzido Trump, Brexit, extremismo de direita na França e na Alemanha. Mas tem produzido também Emmanuel Macron. Seu projeto político, que emergiu com força de meteoro, busca conciliar avanço social e sistema de mercado. Por meio de reformas na estrutura burocrática do Estado francês. Com impactos na ordem fiscal, sindical e regulatória.
O projeto Macron pode se tornar paradigma. Pode viabilizar-se como modelo contemporâneo de gestão política. Ou apenas constituir registro de mero fracasso. Na circunstância atual, o êxito do projeto Macron tem significado que vai além da fronteira dos Pirineus. Pode virar referência continental.
O fato é que a globalização e a falta de reformas sociais ajudam a transformar a opinião pública de força evolucionária em força reacionária. Quanto mais as pessoas se sentem fracas e inseguras, no contexto de governança global ineficaz, mais extremada politicamente será sua reação.
A questão política, que se põe no século XXI, não é mais entre direita e esquerda. É entre reforma e reação. Reformistas são os que trabalham por mais igualdade social no âmbito do sistema de mercado. São os que apóiam diversidade cultural no contexto de diferentes etnias. São os que defendem democracia com liberdade de imprensa. São os que investem em mediação social com regulação econômica. Reacionários são os que apostam no contrário.
Esses são os valores da sociedade no século XXI: igualdade social, regulação econômica e liberdade política. Os parâmetros deste século passam por estes desafios: menos desigualdade entre as pessoas, mais proteção ao cidadão consumidor e mais segurança à informação de interesse público.
Ou seja, nos próximos quarenta anos, esquerda e direita vão sumir do mapa. A sociedade vai se orientar no apoio a políticas de proteção ao emprego, de prestação eficiente de serviços ao cidadão e de exercício da liberdade individual.
Essa é a direção seguida recentemente pelos movimentos sociais. E pelo voto, dado à direita e à esquerda, nas eleições realizadas na Europa e nas Américas.
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