Primeiro capítulo
Nos corredores espalhou-se a notícia: a ONU estava recrutando voluntários entre seus funcionários, que falassem português, pois iria organizar eleições em Angola. De organizar eleições não sabia nada, o que eu fazia na ONU há dez anos era escrever relatórios sobre questões econômicas, sobretudo em países subdesenvolvidos, aqueles que diplomaticamente chamávamos “em desenvolvimento”. Nem a ONU sabia bem como organizar eleições em um país em guerra civil. Mas acabara de organizar eleições na Namíbia e os funcionários do Secretariado haviam voltado a Nova York exultantes, a missão considerada um sucesso.[2]
Então, em 1992, me apresentei para ir para Angola, curiosa de ver como era essa atividade que a ONU estava exercendo, para levar paz e estabilidade a países da África. Mesmo porque naqueles anos, segundo o diagnóstico que tínhamos na Divisão, economistas que havíamos estudado a África sob a coordenação de Göran Ohlin, a grande causa da pobreza de vários países africanos eram as guerras internas.
Logo chegaram informações mais precisas. O mandato da ONU não era organizar, e sim, observar eleições em Angola. A ONU já estava em Angola desde o começo de 1989, com o mandato de verificar a retirada das tropas cubanas, conforme havia sido acordado entre os governos de Angola e Cuba. A retirada das tropas cubanas, que apoiavam o governo do MPLA, se completou em maio de 1991, um mês depois da data combinada entre os dois países, e em 6 de junho de 1991 o Secretário Geral da ONU comunicou formalmente ao Conselho de Segurança que a retirada das tropas se completara, isto é, o mandato de UNAVEM I estava cumprido.[3]
A retirada das tropas cubanas era pré-condição dos acordos de paz que se celebraram em maio de 1991 entre as partes em guerra, o governo de Angola, do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a oposição da UNITA (União Nacional pela Independência Total de Angola). Esses acordos abriram o caminho para UNAVEM II (maio de 1991-fevereiro de 1995), em que a ONU recebeu o mandato de verificar os procedimentos acordados pelas partes em conflito, monitorar o cessar fogo, e observar eleições. Os acordos colocavam o ônus da implementação nas duas partes angolanas (governo e UNITA), através do mecanismo de uma Comissão Conjunta Política Militar dirigida alternativamente pelos dois partidos (MPLA e UNITA), em que a ONU tinha um papel marginal, especificando-se que “podia ser representada como convidada”.
A ONU não recebeu um mandato para desarmar forças do governo e da UNITA, nem para confiscar armas. A missão da ONU foi prevista como verificação, e não de manutenção de paz. Somente em março de 1992 o Conselho de Segurança aprovou uma resolução ampliando UNAVEM II para incluir observação eleitoral (a pedido do governo de Angola), e naquele mês foi estabelecido em Luanda o escritório da Representante Especial do Secretário Geral.
Cheguei a Luanda na última semana de setembro de 1992. Ao todo chegaram a Luanda, entre os dias 20 e 24 de setembro, 300 dos chamados “observadores eleitorais” (OE). Lá já estavam 100, haviam chegado mais cedo para ajudar nos preparativos. Todos seriam redistribuídos rapidamente para as 18 províncias de Angola, pois a eleição já estava marcada para 29 e 30 de setembro. Na chegada, tínhamos que passar 2 ou 3 dias em Luanda, na verdade nos arredores de Luanda, Vila Espa, onde estava o acampamento da ONU. Eram contêineres “made in Australia”, uns caixotes, não teriam mais de 2 por 3 metros, com uma cama, uma mesinha e um armário. Perfeitamente suportável para as poucas noites previstas. Os banheiros eram fora, em outros desses caixotes, com 4 ou 5 chuveiros para uso comum. Nada muito limpo, mas sofrível. Havia uma cabine telefônica e uma longa fila, lembro que consegui telefonar, mas já não sei nem p’ra quem nem p’ra onde. Sabia-se, extraoficialmente, que o acampamento fora construído por uma das grandes empresas de construção brasileiras que operavam em Angola.
A estada inicial em Luanda era para treinamento. Fazia-se até uma simulação, com alguns de nós no papel de fiscais do MPLA e da UNITA, de eleitor, de presidente de mesa de votação. E recebemos um folheto azul claro com símbolo da ONU, em inglês, “Procedimentos para rádio comunicação”. Aprendemos que qualquer OE podia acionar uma comunicação de emergência por rádio, mas a mim pelo menos, e à equipe com a qual atuei, jamais mostraram tal equipamento ou como operá-lo. Foi distribuída a todos a lei eleitoral de Angola – em inglês! Na situação concreta teríamos que retraduzir a lei para o português. Por questão de segurança não devíamos deixar o acampamento, que tinha até piscina, ainda que um ou outro dos OEs tenha visitado Luanda, porque algum dos militares ou policiais militares que eram a parte mais essencial da operação ofereceu de levar no jipe. Claro que também me foi oferecido. Recusei. Verificaria, mais adiante, infrações bem mais graves.
Fiz parte do grupo dos OEs encarregados de verificar na província de Malange. Éramos 21 OEs, coordenados por um jovem britânico, Peter Scott-Bowden, recém recrutado especificamente para a missão em Angola. Guardo o nome de todos. Àquela altura já estava claro que a exigência de que os OEs falassem português não se cumpriu: dos 21, o português era língua materna de apenas 2, eu e um funcionário de Guiné-Bissau. Éramos 21 de 17 nacionalidades! Não eram só funcionários da ONU e suas agências, havia também OEs enviados pelos governos de seus países. Nove desse grupo foram transportados para o norte de Malange, Capanda e a região no entorno da capital da província.
Aterrissamos no pequeno aeroporto de Capanda no fim do dia, quase de noitinha, 25 de setembro, depois de muitas horas de voo em um helicóptero militar russo. Desci do helicóptero com o copiloto gritando comigo em russo, percebi que me acusava de fingir que não entendia o que ele dizia, cismou que eu sabia russo e fingia não saber, por mais que eu repetisse “niê ponimáio” continuou gritando. Acabou se acalmando. Fomos gentilmente recebidos por alguns angolanos no local. Mas preciso explicar os gritos do russo: foi meu único atrito naquelas paragens, e não quero, a essa altura, perder minha reputação de funcionária exemplar. Na verdade, um pouco de russo eu havia aprendido, pelo menos para entender o que estava escrito em letras garrafais no tanque de combustível do helicóptero, bem no meio da cabine, rodeado pelos bancos duros em que estávamos sentados. Já não lembro se ali estávamos todos os nove nem se havia cintos de segurança. Em caracteres russos, estava bem grande “NIÊ KURIT” (NÃO FUMAR). O copiloto sentou ao meu lado e acendeu um cigarro. Apontei o indicador para o tanque de combustível e falei bem alto, para todo mundo ouvir: “NIÊ KURIT”. O homem começou a falar alto comigo em russo, mas aí eu já não sabia o que ele dizia. Foi o pior momento de toda a minha estada em Angola.
Em Capanda ficamos inicialmente hospedados no acampamento dos operários e engenheiros da Construtora Norberto Odebrecht, perto do rio Kwanza, onde se construía, desde 1987, a Usina Hidrelétrica de Capanda, em gigantesca operação tripartite Angola-Brasil-Rússia. A russa Technopromexport deveria fornecer e montar os equipamentos e a Odebrecht era responsável pela construção da hidrelétrica, pelo canteiro de obras e toda a infraestrutura necessária. Assim, a Odebrecht pôde abrigar e alimentar a turma da ONU. A cantina era excelente, lembro bem, por motivo anedótico.
Conversei muito com o pessoal da Odebrecht no acampamento, fizemos inclusive uma visita ao canteiro de obras no rio Kwanza. Aquilo era quase uma operação militar, com muita disciplina. O contrato de trabalho incluía visitas regulares ao Brasil, os homens brasileiros não deviam se envolver com angolanas para não causar brigas com os angolanos, mas ao que parece as mulheres angolanas preferiam brasileiros, mais carinhosos e menos mandões – conforme me contaram os brasileiros, é claro. Dada a instabilidade e situação de guerra, havia um avião preparado para a emergência de uma evacuação, até um ordenamento do acesso ao avião eles já tinham, me disseram que o último a entrar no avião seria o médico dos brasileiros no acampamento.
Logo no primeiro dia o pessoal brasileiro de construção da usina me avisou que eu devia chegar cedo ao refeitório, porque se chegasse tarde não encontraria muita coisa: os russos não se contentavam com o que comiam ali na hora e pegavam várias porções do iogurte, das frutas, dos sanduíches e levavam para o quarto. Os brasileiros observaram espantados. Achei na ocasião que os russos, recém-saídos do regime comunista e de um sistema de rações, estavam baratinados com a noção de propriedade, confusos entre propriedade privada e coletiva. Eu notara, também, uma loira bonitinha arrancando as flores da área comum do acampamento e levando seu ramalhete. Era contratada da empresa russa e namorada do coronel irlandês que chefiava o componente militar da operação da ONU na província de Malange, igualmente hóspede da Odebrecht.
Assim como o pessoal de construção da Usina de Capanda, os militares e PMs já estavam há mais tempo na região. Os militares de muitos países, inclusive uma elevada proporção de brasileiros, haviam chegado muitos meses antes dos OEs civis. O trabalho dos OEs só foi possível por causa do componente militar (350 militares) e de polícia (126 monitores) que já estavam lá antes das eleições como parte dos acordos para a Comissão Conjunta Política Militar, além de 155 encarregados angolanos envolvidos. O pessoal militar e da polícia foi incorporado na observação eleitoral: já tinham examinado as estradas, detectado se não havia minas enterradas, e verificado a localização dos postos eleitorais. E verificado muita coisa mais. Um coronel do Congo, bonachão e do tipo sedutor, contou-me que existia compra e venda de diamantes, informal. Acho que não era entre OEs, para quem isso estava expressamente proibido, no treinamento em Luanda até havia sido avisado que “se algum OE fosse preso por negociar diamantes não deveria esperar ajuda da ONU”.
Encontrei lá vários militares brasileiros e membros da PM brasileira. O Comandante Alves Campos, líder de equipe em Capanda, é quem sabia o caminho para chegar às aldeias que tínhamos que observar. Contavam que um soldado brasileiro bem magro, que os colegas chamavam de Vareta, já estava acampado ali há tanto tempo que havia sido adotado por um macaquinho: o bicho vinha buscar sua ração todo dia e subia no ombro do Vareta, de tão manso. Ainda que não devesse necessariamente associar militares com ditadura, não consegui deixar de comentar com eles a ironia: estavam ali arriscando a vida para construir democracia em Angola.
Do acampamento de Capanda fomos novamente redistribuídos, às vésperas da eleição.
(ESTA NOVELA EMOCIONANTE CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)
[1] Em memória a Margaret Anstee, diplomata britânica que foi a Representante do Secretário Geral da ONU para Angola em 1992-1993. Anstee ocupou funções relevantes nas áreas de ajuda humanitária e assistência em desastres. Disse uma vez que para um trabalho dedicado na ONU era preciso arriscar.
[2] A ONU organizou a primeira eleição da Namíbia (novembro de 1989), quando essa região, antiga South Western Africa, se tornou independente da África do Sul e terminou o apartheid. O primeiro presidente da Nambia, Sam Nujoma, tomou posse em março de 1990 na presença de Javier Perez de Cuellar, Secretario Geral da ONU, Frederik de Klerk, presidente da África do Sul, e Nelson Mandela, que acabara de sair da prisão. Em 1993, Frederik de Klerk e Nelson Mandela, em conjunto, receberam o Prêmio Nobel da Paz. Poucos lembram que o Nobel da Paz foi para os dois, pois ambos, De Klerk e Mandela, contribuíram juntos para o fim do apartheid.
[3] UNAVEM é a sigla para United Nations Angola Verification Mission, a frisar que a missão é apenas verificar. No romance do cubano Leonardo Padura, Vientos de Cuaresma, um dos amigos do detetive Mario Conde, o Flaco, recorda a contragosto seu inferno e sua tragédia em Angola, de onde só pode voltar ferido e para sempre sem o movimento das pernas.
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