Clemente Rosas

Mané da Caixa D’água – tipo popular de João Pessoa.

Um dos encantos das pequenas cidades – a João Pessoa da minha infância poderia ainda enquadrar-se nessa categoria – é a presença de tipos populares, que ganham notoriedade por alguma característica física, ou mental, que apresentem.  Talvez o mais remoto desses tipos tenha sido Sampaio, um alfaiate irreverente e dicaz, de quem Coriolano de Medeiros, fundador da Academia Paraibana de Letras, deixou registro em livro.  Este, eu não conheci.  Mas dou aqui notícia de vários outros do meu tempo de infância e juventude.

Pão de Bico

A alcunha não poderia ser mais adequada.  Era um cidadão gordo, mas de uma gordura toda especial, compacta, sem dobras, que se concentrava na cintura e afinava para cima, nos ombros, e para baixo, nas coxas e pernas.  A molecada não lhe dava trégua, pelas ruas:

– Pão de Bico!

E ele reagia com impropérios.

Um dia, como bom católico, acompanhava uma procissão, cantando em coro um “bendito”:

O meu coração

É só de Jesus

A minha alegria

É a sua luz

E aconteceu que, ao entoar o terceiro verso, um molecote interveio, da calçada:

– Pão de Bico!

E ele, seguindo a linha melódica do cântico religioso:

– É a tua mãe…

Pombu do Pé Roxo

Não lhe retive o nome de batismo.  Era rebuscado, indicativo talvez de uma origem nobre, que não a impediu de, por razões desconhecidas, ficar reduzida à indigência.  Vestia-se de forma extravagante e antiquada, portando sempre uma sombrinha vistosa, e com os pés metidos em meias da cor das patinhas dos pombos.  Daí o apelido de Pombu.  (O deslocamento da sílaba tônica, que os gramáticos chamam de “hiperbibasmo”, e explica a grafia com a vogal “u” final, deve ter ocorrido em razão do som do apelo repetitivo dos criadores de columbídeos, ao chamar a criação para o repasto.  Como o ti-ti-ti para as galinhas e o cuxe-cuxe-cuxe para os porquinhos).

Devo a Pombu do Pé Roxo um incidente desagradável de minha infância.  Pela implacável perseguição sofrida por parte da meninada, ela havia desenvolvido uma surpreendente acuidade auditiva para o apelido.  E assim, quando um dia aproximou-se das grades do terraço da mansão da minha avó, para pedir um auxílio, e eu me prestava a atendê-la, levando o recado, e sussurrei ao meu irmão, a vários passos de distância, sua identificação popular, não fui poupado:

– Pombu não!  Eu me chamo Maria Guilhermina etc, etc…  Você é um menino muito mal educado, vou me queixar à sua avó e à sua mãe…e por aí seguiu, numa longa recriminação, que me deixou esgotado.

Mas a velha senhora foi mais infeliz em seu incidente com as Forças Armadas Nacionais.  Passando em frente ao quartel, foi provocada por um soldado:

– Pombu do Pé Roxo!

Foi imediatamente queixar-se ao Comandante, que mandou prender o soldado e a recebeu em seu gabinete, para as desculpas.  Ao final da atenciosa entrevista, o graduado militar perguntou-lhe:

– Por curiosidade, me diga a senhora: por que a chamam de Pombu?

– Pombu não!  O senhor me respeite, sou uma dama da sociedade, etc, etc…

E o Comandante mandou soltar o soldado.

Mané Caixa D’Água

De registro Manuel José de Lima, “o filho do lavrador que abalou o Brasil”, como intitulou um dos seus livros (editou toscamente uma dúzia), ou “o engraxate que chegou ao topo da onda”, como lhe sugeriram para outro, era, surpreendentemente, conservador e elitista: não gostava de pretos nem de pobres.  Mesmo assim, por eutrapelia ou por deboche, era louvado por intelectuais e acadêmicos.  Chegou mesmo a receber uma homenagem no restaurante Cassino da Lagoa, um dos melhores da cidade, em desagravo por sua não admissão à Academia Paraibana de Letras.  E foi protegido do governador Ernani Sátyro, companheiro de lides literárias.

De sua vasta produção poética, conheci apenas um arremedo de quadra, de verniz filosófico:

 

Ladeira da Catedral

Tu é maior do que eu

Mais eu posso subir em tu

E tu não pode subir n’eu

Azeitona e Maria Regimento

Eram duas humildes afrodescendentes, que mendigavam pela cidade, e de quem nada se sabia.  Da segunda, dizia-se que, de tão fácil e disponível, podia ser desfrutada por todo um regimento de soldados.  Quando estendia a mão, para uma esmola, aos jovens bem nascidos que se postavam na rua em frente à Catedral, por ocasião da festa de Nossa Senhora das Neves, padroeira da cidade, era apenas correspondida, gentil e maldosamente por alguns, com um “shake hands”:

– Como vai a senhora?  Vai bem?

Da primeira, que fazia jus ao nome, recebi, na minha inocência infantil, reprimenda bem mais direta e peremptória que a da velha Pombu.  Passava em frente à nossa casa, quando eu, sentado na balaustrada, saudei-a:

– Azeitona!

E a negra, olhos entorpecidos pela cachaça, dirigiu-se a mim, complementando a fala com um gesto característico: dedos da mão unidos, voltados para cima.

– E o cuzinho?  Tá bonzinho?

Mocidade e Zé da Banana   

O primeiro chamava-se João da Costa e Silva.  Do segundo, recordo apenas o epíteto, merecido por ter como negócio uma banca de bananas.  Melhor assim, pois pode ter-se tornado um respeitável juiz, ou promotor, e o apelativo lhe soaria hoje desprimoroso.  Ambos pretendiam-se intelectuais e se esforçavam para isso.

Mocidade talvez fosse chamado assim pela sua convivência preferencial com a juventude, ao ponto de ter sido abrigado, por algum tempo, nas dependências da União Estadual dos Estudantes da Paraíba (UEEP).  Fazia visitas frequentes à Faculdade de Direito, onde, a pedido dos universitários, subia num banco e declamava poemas de Castro Alves e Jansen Filho, bardo paraibano de extensa produção em estilo acadêmico e notoriedade como versejador ilustrado.  Ao ser aplaudido, proclamava:

– É por isso que não posso deixar esta Faculdade!

Mas suas boas relações não se limitavam aos jovens.  O próprio Governador do Estado chegou a abrigá-lo no Palácio.  E a temporada só terminou quando o hóspede, numa cachaça, promoveu desordens e desacatou a Primeira Dama.

No mandato governamental seguinte, a tentativa de aproximação não foi bem sucedida.  O Governador Ernani Sátyro o descartou com a seguinte observação:

– Olha, Mocidade, cada governador tem o seu doido.  Você é o doido de João Agripino.  O meu é Mané Caixa D”Água.

Quanto a Zé da Banana, era comovente ver o esforço que fazia para falar com acerto, vencendo a má dicção e a dificuldade de articular as palavras.  Com grande empenho, conseguiu entrar na Faculdade.  Compensava as limitações de compreensão decorando os textos.  Alguém que passava, à noite, em frente à sua modesta habitação, ouviu-o, em voz alta e pausada, tentando decorar a definição de Lógica:

– LÓGICA:  Lógica é a ciência…das leis… ideais .. do pensamento…

Discursando em um grêmio literário, coisa daquele tempo, empolgou-se:

– Meus senhores!  O Grêmio Literário Dias Júnior é como as pirâmides do Egito!

A risada foi geral.  E ele:

– Seu presidente, eu sei que estou sendo ridicularizado!

Mas um dos assistentes retrucou:

– Absolutamente, nobre colega!  Nós rimos pela magnificência da imagem!

Nunca soube se Zé da Banana chegou a concluir o curso de Direito.  Mas todos os professores se compadeciam do seu esforço.  Prefiro pensar que tenha conseguido, e ainda hoje seja um compenetrado juiz interiorano.  Aposentado, naturalmente.

Vassoura

Chamava-se Maria Isabel Bandeira.  Vestindo, em tecidos brilhantes, as cores nacionais – verde e amarelo – percorria a cidade cavalgando um rocim esquálido, que bem faria par à montaria de Dom Quixote.  Para completar a imagem, portava um arremedo de lança, pouco mais longo que um cabo de vassoura.  Daí, talvez, o apelido.

Das muitas peripécias de Vassoura, a maior teve origem no comportamento do seu Rocinante, que achou de aliviar-se na calçada do Hotel Tambaú, pouco tempo depois de sua inauguração, quando era a grande novidade e o grande luxo da capital paraibana.  Reclamada pelos funcionários do hotel, valeu-se de um constrangedor antecedente, ocorrido, de maneira imprevista, em longa rodada de uísque, com o supremo mandatário do Estado.  E contestou:

– Ora essa!  Se o governador faz isso aí dentro, por que o meu cavalo não pode fazer aqui fora?

Epílogo

Meu amigo Paulo Pontes – que se foi tão cedo, privando-nos de muitas obras do nível de “Gota D’Água”, “Brasileiro, Profissão Esperança”, “Um Edifício Chamado 200”, que poderia ainda conceber com seu talento – no espetáculo que produziu em homenagem à nossa terra (PARAÍ-B-A- BÁ), incluiu um quadro sobre os doidos paraibanos.  Surgiam todos em cena, ao mesmo tempo, cada qual com seu delírio, culminando com um deles que, girando o dedo indicador ao lado da cabeça, proclamava:

– Pra ser doido na Paraíba, é preciso ter… JUÌZO!

Não havia plateia, por mais sisuda, que resistisse à comicidade da cena.

Por sua vez, o poeta Ascenso Ferreira, em seu livro “Catimbó”, dedica um poema aos “bêbados de fim de feira, que o imposto de consumo afugentou”.  E arremata:

Ai! Que melancolia nas vendas fechadas!

Que tristeza científica nas vendas fechadas!

Que saudade dos bêbados de fim de feira!

Assumindo a relativa afinidade que podemos encontrar, na dimensão do sonho, entre loucos, ébrios e poetas, faço coro ao inesquecível Ascenso:

Ai!  Que saudade dos doidos da Paraíba, que a modernidade afugentou!