Paulo Gustavo

É provável que o “Dom Quixote” de Cervantes seja um dos primeiros livros a abordar o livro e o seu fascínio e, nesse contexto, o livro e seus inimigos. Quem não se lembra, no romance, como a sobrinha e o cura jogam fora vários dos seus mais queridos livros de cavalaria? E isso, claro, porque as fabulosas e fantásticas histórias tinham-lhe transtornado a mente, sendo mais que suspeitas de lhe mudarem o comportamento. A intenção, claro, era a melhor possível. Mas o fato é que o expurgo castrou a alma da própria biblioteca do valoroso fidalgo manchego.

O policiamento e a perseguição aos livros remonta aos tempos pré-gutemberguianos. A imprensa, popularizando-os, apenas ampliou esse pernicioso poder. Constata-se o óbvio: que o primeiro inimigo dos livros é o seu próprio criador: o ser humano. Dispensável mencionar que o totalitarismo e o autoritarismo — tanto à esquerda quanto à direita — são inimicíssimos do livro. Em maio de 1968, também não se queria conversa com os livros.

Outro inimigo do livro, como se sabe, é o fogo. É um substantivo que arde para sempre na consciência dos que amam os livros. Muito pior que a água, o fogo é o Nero ou o Átila dos livros. Lembremos da Biblioteca de Alexandria como um emblema desse permanente terror. As línguas das labaredas sempre devoram com assombrosa gula todas as páginas, todas as palavras, reduzindo-as à humilhação do pó. Um pó que jamais ressuscitará.

Dentre os bichos, além de traças e cupins, há os ratos. Tão úteis à ciência nos laboratórios do mundo, os ratos, por outro lado, podem nos levar preciosidades, roer tesouros do conhecimento. Em saborosa crônica, publicada em 07 de agosto de 2017 na Folha de S.Paulo, o escritor Ruy Castro nos lembra que para esses inimigos dos livros há o antídoto dos gatos. Recorda ele que “Não apenas os gatos ficam bem entre os livros, como são seus guardiões nas noites em que os sebos ficam fechados e sob sua pior ameaça — os ratos”. Por que os gatos “ficam bem entre os livros”?  Castro não diz, mas bem que podemos imaginar. O silêncio e a tranquila circunspecção dos felinos são pelo menos duas características que casam bem com livros e leitores.

Quanto a traças, cupins e insetos em geral, outro bicho serve de excelente antídoto natural: os morcegos. Na sua crônica, Castro menciona que milhares de livros da Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, em Portugal, devem sua vida aos morcegos, predadores naturais dos minúsculos e insidiosos inimigos daquela maravilhosa biblioteca criada no século 18. Mas os morcegos, à semelhança de nós outros, também têm suas necessidades fisiológicas, e assim também é necessária uma indispensável higiene em prol da boa sobrevivência dos livros.

Voltando ao ser humano, “um bicho da terra tão pequeno”, para lembrar o verso de Camões, há que se apontar ainda outros inimigos menos visíveis dos livros. Menos visíveis, mas completamente humanos. A falta de educação e cultura. O analfabetismo. Matam o livro antes mesmo de o livro nascer. A pobreza extrema também seca na nascente a fonte dos livros. De resto, como diria Guimarães Rosa: “Quem mói no asp’ro não fantaseia”.

No Brasil, os apartamentos da nova classe média, tão feios quanto diminutos — pobres ovinhos sem qualquer gema ou clara de esperança —, parecem nos dizer: “Aqui livro não entra”, “Livros não são bem-vindos”. Com efeito, se mal há espaço para armários e camas, se mal há espaço para mesas e cadeiras, como esperar por livros em tais ambientes? Também elas, essas residências, são inimigas dos livros…

E ao amigo dos livros, como o historiador Oliveira Lima pintou a si mesmo no seu célebre epitáfio, o que resta? Eu vos responderia em quatro palavras: a prontidão dos amantes.

 

Paulo Gustavo