Vale chamar a Copa de 2022 de “Copa do Deserto”. O estádio dourado de Lusail, em que se dará a final da Copa, está no deserto, ainda que o gramado seja de verdade, regado a água dessalinizada. O Qatar é um deserto com 850 oásis. Essa península aparece no mapa como uma ponta na costa da Arábia Saudita espetada nas águas do Golfo Pérsico. Seu tamanho é metade de Sergipe, o estado mais pequeninho do Brasil. Mas o agito que Qatar faz no mundo não é pequeno.

Cercado de mar, o Qatar tem um pedacinho de 87 quilômetros de fronteira terrestre com a Arábia Saudita, de população 200 vezes maior e Exército 20 vezes maior. Os sauditas já quiseram abrir um canal para fazer do Qatar uma ilha. Nacionais do Qatar são cerca de 300 mil, uma elite dirigente que conta com o trabalho de 2 milhões e meio de imigrantes.

A independência do país, protetorado britânico desde 1916, deu-se em 1971, mais tardia ainda que a independência dos países africanos nos anos sessenta. Tradição de futebol não tem, o futebol começou a ser jogado ali na areia em meados do século 20, trazido por trabalhadores imigrantes e por cataris que saíram para estudar no Egito e na Jordânia. Como um país assim conseguiu ser a sede da Copa de 2022?

Já vi perguntado em outro tom, por alguém que gosta de cerveja: como é que foram fazer a Copa num lugar desses? Pois o Qatar trabalhou muito para alcançar esse objetivo. E investiu muitos bilhões. Foi um projeto de longo prazo, planejado e executado em várias frentes. Uma história fascinante, que vem de longe: o esforço de combater a irrelevância, como estratégia de segurança nacional.

A dinastia Al-Thani tem o poder desde 1825, quando sua riqueza era criada pelos mergulhadores de pérolas no Golfo Pérsico. A riqueza com petróleo e gás só veio após 1949. Mas podemos situar o começo das preocupações e do planejamento recente em 1990, quando o Iraque invadiu o pequeno Kuwait. Algo assim – que o Qatar, encurralado entre a Arábia Saudita e o Irã, queria evitar – foi o que os habitantes do Qatar recordaram quando se agravaram, em 2017, antigos conflitos no Golfo Pérsico. A Arábia Saudita aplicou um bloqueio econômico ao Qatar e impediu a importação de alimentos. Os Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Iêmen, Egito e as Maldívias cortaram relações diplomáticas e aderiram ao bloqueio. A alegação foi que o Qatar apoiava naqueles países grupos de oposição terroristas e tinha relações próximas com o Irã, e, além disso, queriam que o governo do Qatar contivesse atividades irritantes da sua TV Al Jazeera.

Com o bloqueio da passagem para a Arábia Saudita e interrupção de linhas aéreas, ficaram separadas famílias que estavam em viagem. A estatal Qatar Airways foi impedida de usar o espaço aéreo saudita. Muitos cataris, temendo uma guerra, enviaram bilhões de dólares para contas no exterior e o PIB teve queda repentina.

Mas o Qatar já não era um “pobre país” isolado. Havia se preparado para a eventualidade, não se intimidou. O repórter Sam Knight, que está lá no Qatar fazendo a cobertura da Copa para o “New Yorker Magazine” resumiu a determinação na resistência ao bloqueio: “Dezoito mil vacas Holstein chegaram da União Europeia e dos Estados Unidos e foram abrigadas no deserto (Qatar é hoje exportador de laticínios.)” As importações de alimentos que vinham dos vizinhos passaram a vir da Turquia e do Irã. Construíram mais portos, mais estufas agrícolas, mais usinas de dessalinização. Já no ano seguinte a economia voltou a crescer. 

Já antes da Copa da Ásia de 2019 os vizinhos verificaram que Qatar saíra fortalecido do bloqueio. A seleção do Qatar, com todas as dificuldades que enfrentou para chegar a Dubai, sua torcida impedida de entrar, foi a campeã da Copa da Ásia. Comemoração pan-árabe não houve. Mas no mundo esportivo do Oriente a compra do passe de Neymar pelo CF Paris Saint-Germain, o PSG, poucas semanas depois do bloqueio da Arábia Saudita, apareceu como jogada diplomática de mestre: ninguém falou de “pobre Qatar” sob bloqueio, só se falou na compra de Neymar.  É o que disseram peritos que acompanham o futebol no Oriente Médio. Ainda que persistam as “rivalidades” entre países árabes, em janeiro de 2021 o bloqueio foi formalmente levantado. 

O pequeno país estabelecera em tempo contatos com países do Ocidente, através de uma estratégia de “soft power”, da qual fazia parte sediar a Copa Mundial de Futebol em 2022. Desde os 1980s investiu bilhões em cultura e ciência – e em futebol. E não foi apenas comprando clubes de futebol europeus inteiros (como o CF PSG adquirido em 2011 pela Qatar Sports Investment, a mesma que agora comprou participação no português CF Braga, e antes no CF Bayern de Munique, ou ofereceu patrocínio ao CF Barcelona). Desde os 1990s o Qatar vem hospedando competições esportivas internacionais, com o propósito de construir reputação.

O Qatar se abriu para investimentos estrangeiros. Nas obras para a Copa estão envolvidas construtoras do mundo inteiro, chinesas inclusive (como no estádio de Lusail). Convidou arquitetos mundialmente famosos para suas construções, como Norman Foster e I.M.Pei, entre outros. Abriram-se filiais de universidades ocidentais (a Universidade de Georgetown, por exemplo, tem um campus em Doha), instalou-se o Museu da Arte Islâmica em Doha (com fantástico projeto de I.M. Pei), criou-se a orquestra sinfônica, um festival de cinema. Firmou acordos para treinamento por militares dos EUA. O Fundo Soberano do Qatar comprou imóveis em Manhattan e participação societária no Harrod’s ou na Volkswagen.

O Qatar é hoje o maior fornecedor mundial de gás natural liquefeito (LNG). Acaba de assinar (em 29/11/2022) um contrato de longo prazo com a Alemanha, para fornecimento de LNG por 15 anos a partir de 2026. Mas subjacente à sua busca de diversificação para o turismo e outros serviços está a pergunta: como sobreviver à queda no consumo mundial de combustíveis fósseis?

No final de 2010 o Qatar conquistou o direito de sediar a Copa de 2022, na mesma eleição que decidiu a Rússia para a Copa de 2018. Permanecem até hoje suspeitas de corrupção na conquista desse título, mas o fato é que essa conquista catalisou um espantoso boom de construção, que seria impossível sem a imigração de muitos milhares de trabalhadores da Síria, das Filipinas e, sobretudo, do sudeste e sul da Ásia. 

Nessa estratégia de “soft power”, Al Jazeera, a emissora estatal do Qatar, é importante. Começou como canal de TV árabe em 1996. Hoje é rede de vários canais, inclusive Internet, e tem 80 escritórios em todo o mundo. Desde novembro de 2006, Al Jazeera transmite também em inglês, 24 horas por dia, com redações em Washington Londres e Kuala Lumpur. Foi criada pelo governo, com alguma independência editorial, mas hoje já obtém recursos além do financiamento governamental, por acordos de compartilhamento com outras emissoras. Apesar de suas matérias objetivas e críticas, alega-se que Al Jazeera poupa o Qatar, mas a emissora tem insistido que cobre todos os lados do debate. É grande sua penetração nos países árabes e é a rádio árabe mais ouvida entre os palestinos.

Com a Copa concentrou-se atenção no Qatar e as condições de vida no país com suas regras ultraconservadoras de comportamento. Há padrões rígidos de vestuário tradicional, manifestações de afeto e contato físico em público são inaceitáveis, assim como o consumo de álcool. Sexo extramarital ou relação homossexual, assim como ser flagrado bêbado, podem ser punidos com prisão. Nem a mera defesa de direitos LGBTQ é aceita. Os cataris defendem seus usos e costumes e os mais conservadores expressaram até medo da abertura que implicou a Copa e a entrada de hordas de estrangeiros do mundo inteiro sem restrições. Diante da perspectiva de bem mais de um milhão de visitantes estrangeiros durante a Copa, deve ter havido pressão interna dos “amedrontados” para que, a apenas dois dias da inauguração, o governo renegasse o acordo que permitia venda de cerveja nos estádios durante a Copa.

Desde a inauguração intensificaram-se denúncias de abuso de direitos fundamentais e maus tratos dos trabalhadores. Alguns ligam as mortes de trabalhadores imigrantes desde 2010, num total de 6750, à construção de infraestrutura para a Copa. Mas as obras, além dos estádios, abrangem avenidas e pontes, o metrô, uma ilha artificial, mais jatinhos, a ampliação do aeroporto, hotéis 5 estrelas, um estádio desmontável, e toda uma cidade em Lusail, num total estimado de US$ 200 bilhões. Os projetos envolveram um emaranhado de contratos e subcontratos com empresas em múltiplas camadas, que a fiscalização não alcança.

O sistema da “kafala”, que permite a entrada de um imigrante apenas quando tem um patrocinador, foi introduzido no Qatar e outros países do Golfo Árabe durante a era colonial britânica. Assim o trabalhador fica inteiramente dependente do empregador e todos os seus direitos dependem de sua função econômica, em um sistema de castas baseado na origem nacional, que permite maus tratos e abusos, falta de segurança do trabalho e atrasos no pagamento dos operários, e até casos de retenção do passaporte do imigrante pelo empregador. Mas as críticas durante a preparação da Copa, inclusive a denúncia de que o sistema é análogo à escravidão, fizeram com que no Qatar o sistema fosse modificado em 2020, permitindo a troca de emprego, a renegociação de contratos entre empregado e empregador, e liberdade de sair do país. Segundo a OIT, entre setembro de 2020 e março de 2022, 300 mil trabalhadores estrangeiros trocaram de emprego no Qatar. Em 2019 foi introduzido um salário mínimo, de 275 dólares. Ainda segundo a OIT, salários em geral aumentaram em 2021, e nesse ano foi criada legislação que reduz o número de horas em que se pode exigir trabalho ao ar livre nos meses de verão. Resta saber como garantir o cumprimento das regras que permitem mais mobilidade e proteção dos trabalhadores.

 Condições de trabalho no Qatar são insalubres e duras, suas moradias são precárias, não diferentes de favelas, pode faltar água, cuidado médico e até comida. Comparado ao que existe na Europa, as condições de trabalho são intoleráveis, mas os cataris consideram injustas as críticas e mostram as melhorias introduzidas em relação aos vizinhos e aos países de origem dos imigrantes. Ressentem-se de que as mesmas críticas não sejam dirigidas a Dubai, por exemplo. Ou ao tratamento dos imigrantes temporários nas colheitas do sul dos Estados Unidos.  Argumentam, em defesa de sua Copa, que para qualquer cidadão do mundo há menos restrições para entrar no Qatar do que há para entrar nos Estados Unidos. Depois da Copa pretendem oferecer entrada sem visto para cidadãos de mais de 95 países.