Andei pensando muito sobre a crise brasileira e sobre as consequências do desmantelamento da economia, da falta de credibilidade e do civismo que atinge, de uma maneira mais ou menos generalizada, os diversos segmentos da nossa população, em todas as classes sociais, em todos os níveis de escolaridade.
No meu entender, o risco maior desta crise não está somente nas questões objetivas que atingem a renda e o status social, tanto dos mais pobres, como das classes médias. Uma crise dessas proporções atinge, sobretudo, a moral, a autonomia e a capacidade de resistência de cada indivíduo, de cada grupo social. A fragilidade das pessoas as torna suscetíveis a manipulações perversas praticadas, por agentes políticos e por meios de comunicação.
Em uma releitura de Karl Marx e de sua crítica ao capitalismo, fui tentado a utilizar o conceito de fetiche para entender a situação política que vivemos no Brasil. A visão do marxismo sobre o capitalismo e, em particular, sobre a mais valia, estabelecendo o conceito de mercadoria, aponta para uma mistificação com que o discurso dominante desqualificava a importância do trabalho na geração de riqueza, tornando secundária a figura do empregado na economia e na política. Nesta perspectiva, para Marx, a revolução proletária daria ao trabalhador dignidade, como pessoa, e o direito de pensar e de se movimentar em defesa dos seus próprios interesses.
Na juventude, eu e o meu grupo do movimento estudantil acreditávamos nesta visão política, sempre dispostos a participar da revolução comunista referenciada pela experiência soviética. Isto durou até que o conhecimento dos feitos do stalinismoinverteu essa ideia. Criava-se outro fetiche, que substituiu o domínio da mercadoria do modelo capitalismo, pelo domínio da figura mítica de um líder carismático e prepotente, cuja vontade era a única lei. Tudo isso em detrimento da liberdade de pensamento, da ideologia da igualdade, sob a égide da ditadura policialesca que prendia e matava quem não se submetesse à ordem dominante. Os próprios líderes da revolução socialista, como Trotsky, foram mortos pela chamada “ditadura do proletariado”. Os proletários, estes então, tiveram que trabalhar e se calar, aceitando impositivamente o governo do Partido Comunista.
Este modelo de governo ditatorial, baseado no fetichismo do líder inquestionável, fez escola na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, na Cuba de Fidel Castro … e continua se ampliando no mundo, inclusive entre nós, os latino-americanos.
Esses desastres arruinaram as economias e a vida política nesses países, por meio de guerras expansionistas do comunismo, do nazismo e do fascismo na Europa e ainda continuam a repercutir em muitos países , como é o caso mais recente da Venezuela, cujo chavismo destruiu a economia e a vida social de um país fortemente ancorado na riqueza do petróleo e cuja população vive hoje sob um regime de intolerância política, passando fome e buscando refúgio para sobrevivência em países vizinhos.
O fetiche do líder mitificado ou mistificado, que apaga tudo e todos ao seu redor, torna-se assim um dos fenômenos políticos mais inconsequentes do mundo moderno, o que vem sendo combatido por movimentos fundados na ética, como um modelo perverso de negação da democracia e dos direitos humanos. Na prática, o fetiche é uma enganação. Leva multidões a aderir ou a submeter-se inconscientemente a ideologias e a correntes políticas perversas, cuja grande finalidade é a manutenção do próprio poder, em torno de lideranças e oligarquias que podem ser qualificadas, ilusoriamente, “à esquerda” ou “à direita”, mas que camuflam seus verdadeiros objetivos por meio de discursos populistas, enquanto suas práticas não se sustentam em códigos éticos ou democráticos.
Mas porque levantar essas questões teóricas agora? O que o fetiche tem a ver com o momento histórico que estamos vivendo? Que papo é este?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que, historicamente, esses líderes míticos que configuraram as situações a que nos referimos acima, na Rússia, na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal,… surgem em momentos históricos de grandes crises econômicas e de falta de credibilidade nas instituições. O fetiche surge da falta de esperança que leva as pessoas, inclusive os extratos mais cultos, a buscar soluções milagrosas. Daí, embarcar numa falácia que promete soluções de curto prazo é uma alternativa muito mais frequente do que se pode imaginar … Atitudes assumidas com tanto vigor não permitem que se perceba, minimamente, o desastre que pode vir depois. Só a história futura é que vai permitir a cada povo entender o desastre desses movimentos. Foi assim até agora.
Eis a situação em que nos encontramos no Brasil. Uma crise econômica e política que já responde pela falta de credibilidade nas instituições e pela falta de esperança no futuro. Todos podem vir a acreditar em promessas e milagres. Neste sentido, perversamente, este pode ser o momento ideal para investir-se num fetiche político, seja com uma proposta milagrosa, seja com um líder mítico, fabricado pelo marketing profissional.
Em tal perspectiva, este parece ser o momento mais oportuno para se trazer esta reflexão à pauta da discussão política no Brasil. Particularmente, porque estamos em ano eleitoral, quando se investe fortemente em propostas populistas, que se afirmam em torno de nomes que se tornam famosos pelos discursos de fantasia. Esses discursos que encantam os crentes, historicamente, não se têm demonstrado condizentes com projetos efetivos de desenvolvimento sustentável, com inclusão social, estabilidade institucional e econômica, a médio e longo prazos. A nossa história é cheia de exemplos frustrantes.
E o que fazer numa situação dessas? Não creio que haja saída mágica. Trata-se de uma luta ética de construção de uma consciência política e de um civismo social que possam chegar a todas as camadas sociais. Não se trata aqui daquele movimento muito comum, de se dizer: “vamos conscientizar o povo”. Isto é uma grande falácia que, quase sempre, está por trás do próprio fetiche. O civismo não é uma ideologia que se pregue. Não é uma religião à qual alguém se converta. O civismo é quando o filho corrige o pai numa transgressão que ele comete no dia a dia. O civismo é a consciência do direito do outro, é o respeito à ética e à democracia. O civismo é uma prática, não uma ideia que se proclame, mas que se abandona em pequenos deslizes do dia a dia.
Civismo é quando um corredor, como o espanhol de 24 anos, Ivan Fernández, que estava em segundo lugar numa prova de Cross Country na Espanha, viu que o queniano, Abel Mutai, que estava vencendo a prova, reduziu a velocidade, achando que já estava na linha de chegada. Em vez de ultrapassá-lo, Ivan alertou o líder sobre o equívoco e o conduziu para confirmar sua vitória. Civismo é a forma como os habitantes de Brasília, desde o final de década de noventa, aprenderam a respeitar a faixa de pedestre, numa campanha sem ameaça de multas, durante o Governo de Cristovam Buarque. Civismo é uma construção social.
Por tudo isso, penso que movimentos como o nosso, Ética e Democracia, precisam investir em metodologias visando à desmistificação dos fetiches que tendem a dominar nossa política; metodologias que tenham como objetivo a formação cívica da população, inclusive com a formação de lideranças que não venham a transformar-se em cabos eleitorais, mas que consigam lutar pela autonomia de suas comunidades.
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