Frederico Toscano

Produção de “Lucia di Lammermoor” no Metropolitan Opera (EUA) em 2007, dirigida por Mary Zimmermann, com a soprano alemã Diana Damrau no papel-título durante a mais famosa cena de loucura da história da ópera, em que Lucia acaba de apunhalar o marido na noite de núpcias. O contraste do vestido branco com as mãos ensanguentadas causa forte impacto.

Baseada no romance “The Bride of Lammermoor” (A Noiva de Lammermoor) do escritor inglês Sir Walter Scott (1771-1832), a ópera “Lucia di Lammermoor” é a obra mais requintada e de mais duradoura popularidade do compositor bergamasco Gaetano Donizetti (1797-1848), sobre libreto do poeta napolitano Salvatore Cammarano (1801-1852), também autor de outros textos como “Il Trovatore”, musicado por Giuseppe Verdi (1813-1901). Donizetti definiu sucintamente o seu gosto quanto a libretos: “Voglio amore, e amore violento!” (Quero amor, e amor violento!) – “Lucia di Lammermoor” fornece isso com abundância.

No repertório há quase dois séculos e rica em melodias inesquecíveis, “Lucia di Lammermoor” é o clímax da ópera romântica italiana, mencionada em duas grandes obras do Romantismo: “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert (1821-1880), e “Anna Karenina”, de Leon Tolstói (1828-1910). Drama pungente sobre o esmagamento do amor e da vida em meio a uma briga de clãs familiares, também evoca “Romeu e Julieta” de William Shakespeare (1564-1616).

Sir Walter Scott, a personificação do Romantismo Gótico, era extremamente popular na Europa do século XIX. Teve 16 de seus romances adaptados como óperas. “Lucia di Lammermoor”, de Donizetti, é a mais conhecida dentre seis versões operísticas de “The Bride of Lammermoor” (1819). A última ópera do siciliano Vincenzo Bellini (1801-1835), “I Puritani”, inspirou-se em “Old Mortality”; o “Cisne de Pésaro”, Gioacchino Rossini (1792-1868), transformou “The Lady of the Lake” em “La Donna del Lago”; e a ópera “La Jolie Fille de Perth”, do francês Georges Bizet (1838-1875) é inteiramente baseada em “The Fair Maid of Perth”.

A ópera se situa no Castelo de Lammermoor e suas proximidades, na Escócia, em 1669. Iniciando o primeiro ato, Enrico Ashton lamenta seus infortúnios e o prazer que devem dar a seu inimigo mortal, Edgardo Ravenswood. Conclui que a única solução é um casamento rico para sua irmã, Lucia. O capelão Raimondo Bidebent diz que ela está triste demais com a morte da mãe para se casar, mas Normanno, amigo de Enrico, afirma que ela já está apaixonada: ele testemunhou seus encontros secretos com Edgardo – que por ele foi salva de um touro feroz. Enrico fica furioso com a notícia. No jardim do castelo, em sua primeira ária, Lucia lembra de ter “visto” a amante de um antepassado dos Ravenswood ser apunhalada:

Sua amiga Alisa implora que esqueça esse amor perigoso, mas isso ela não cogita. Edgardo aparece e diz à amada que terá de ir à França buscar aliados para a Escócia, mas antes pedirá sua mão. Lucia insiste que esse amor deve se manter secreto, e os dois, trocando anéis, se despedem num belo dueto:

Abrindo o segundo ato, Enrico aguarda Lucia ansiosamente. Normanno diz ter forjado uma carta de Edgardo para outra mulher. Lucia chega abatida e Enrico diz ter escolhido para ela um marido que poderá ajudar a tirar a família da ruína. Como ela diz que já está comprometida, ele lhe entrega a carta forjada. Abalada pela traição de Edgardo, Lucia espera a chegada de Arturo, seu futuro marido:

Na cerimônia do casamento, Arturo afirma ter ouvido boatos sobre o amor secreto de Lucia por Edgardo, mas Enrico os descarta e lhe dá o contrato de casamento para assinar. Lucia, arrasada, também assina o que ela chama de sua “sentença de morte”. Repentinamente Edgardo invade a solenidade e a acusa por quebra de promessa. O sexteto que encerra o ato, com cada voz expressando uma emoção diferente, é um dos mais belos números do repertório operístico:

Edgardo e seu arqui-inimigo, Enrico, desembainham as espadas, mas lhe mostra o contrato assinado por Lucia. Surpreso, ele devolve o anel a ela. No terceiro e último ato, Raimondo interrompe a festa de casamento para anunciar que, ouvindo gritos nos aposentos de Lucia, entrou e encontrou Arturo morto, e ela com o punhal na mão. Em meio à perplexidade dos convidados, entra Lucia visivelmente perturbada e “ouvindo” a voz de Edgardo em sua famosa cena da loucura, ao fim da qual não resiste e expira:

Ante o delírio e fim trágico da irmã, Erico sente remorso. No túmulo dos Ravenswood, Edgardo vê luzes no Castelo de Lammermoor e imagina Lucia festejando seu novo amor, mas ouve comentários dos que deixam o castelo sobre o “terrível destino” de uma “jovem infeliz”. Raimondo traz a notícia de que ela morreu. Edgardo fica sabendo que Lucia deu seus últimos suspiros chamando por ele. Arrasado, ele se apunhala para ir ao encontro da amada:

 

A cena da loucura em “Lucia di Lammermoor” teve uma fascinante sobrevida no palco, assim como no meio acadêmico. Eruditos que estudaram as partituras autografadas de Donizetti (os manuscritos que contêm os rascunhos da ópera inteira de seu próprio punho) descobriram que o movimento lento da cena (“Ardon gli’incensi” – “Arde o incenso”) foi concebido originalmente com o acompanhamento de um instrumento chamado harmônica de vidro, o que teria acrescentado um timbre estranho, mesmo exótico, à cena. Eis o instrumento numa obra do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791):

Ao que parece, segundo os pesquisadores Carolyn Abbate (Harvard) e Roger Parker (King’s College), os especialistas em harmônica de vidro residentes em Nápoles, cidade de estreia da ópera em 26 de setembro de 1835, envolveram-se num impasse contratual com o Teatro San Carlo, e Donizetti, sempre pragmático no tocante a esse tipo de problema, riscou essa parte e a substituiu por um solo de flauta. No vídeo abaixo com uma produção do Metropolitan Opera de Nova York de 2011, podemos ouvir a harmônica de vidro durante a cena da loucura de Lucia, num raro e louvável resgate deste elemento precioso da partitura:

A ópera foi um dos maiores triunfos do compositor, dentro e fora da Itália, conquistando a admiração dos mais ferrenhos críticos à ópera italiana, como Hector Berlioz (1803-1869). Não é por acaso que ela logo se tornou a mais estimada das óperas de Donizetti. Muito exata na proporção dos seus quadros, ela possui um rigor de construção ainda maior do que as melhores óperas que ele tinha escrito antes. É impecável a adesão da música ao texto e generosa a forma como se manifesta a invenção melódica do compositor. O magnífico solo de harpa, sugerindo o luar sobre o parque de Ravenswood, por exemplo, faz mudar o clima emocional da segunda cena do primeiro ato e prepara a entrada da figura inocente da protagonista. O mesmo se sente na elegíaca melodia do oboé que acompanha a entrada de Lucia no segundo ato.

A ópera se converteu, como disse o biógrafo do compositor Herbert Weinstock (1905-1971), num “símbolo do amor condenado pelo destino, destruído pela interferência das considerações sociais”. Como já sopravam os ventos de “Werther” do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), “é no estado amoroso que certos sujeitos razoáveis adivinham de repente que a loucura existe, é possível e está bem próxima: uma loucura na qual o próprio amor naufragaria”. Para o psicanalista francês Jacques-Marie Lacan (1901-1981), o ser do homem não poderia ser compreendido sem sua loucura, assim como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade. Em “História da Loucura” (1961), o filósofo Michel Foucault (1926-1984), ao descrever alguns dentre os “tipos de loucura” já reconhecidos entre os séculos XVIII e XIX, cita a paixão desesperada, ou decepcionada em seu excesso. Alguns anos após Donizetti ter escrito sua obra-prima, ele próprio enlouqueceria devido à sífilis. Na verdade, as suas óperas possuem, quase como um emblema, uma “patologia” do amor infeliz. Manifestada expressivamente nas mulheres, destacam-se, além da personagem Lucia, os papéis-título de “Anna Bolena” e “Lucrezia Borgia”.

Cenas de loucura são um dos mais persistentes clichês da ópera romântica, que vai buscar a suas raízes mais antigas nas sequências de delírio frequentes na “Commedia dell’Arte” e na ópera barroca (as diversas versões de “Orlando Furioso”, por exemplo). Há cenas de loucura em “Il Pirata” e “I Puritani” de Bellini. Mas estão, sobretudo, nos melodramas de Donizetti, que encontra nessa situação o modo de fazer a prospecção teatral – e musical – nos sentimentos mais profundos da personagem. Nesta fase da história da literatura e do teatro, em que a prioridade é dada a emoções exacerbadas e transbordantes, é com a perda da razão que se manifesta o excesso de sofrimento a que são submetidas personagens contrariadas em seus amores, atraiçoadas, reprimidas ou abandonadas. E, do ponto de vista vocal, os desvarios de uma mente perturbada são perfeitos para que se lance mão dos mais refinados efeitos do “bel canto”. Muitas são as cenas de loucura do teatro lírico do século XIX. Mas nenhuma delas é tão famosa – e por que não dizê-lo? – tão bem realizada quanto a de “Lucia di Lammermoor”.

Cantoras do mundo inteiro celebrizaram “Lucia di Lammermoor” desde cedo: a espanhola María Barrientos (1883-1946), a australiana Dame Nellie Melba (1861-1931), a austríaca Selma Kurz (1874-1933), as italianas Luisa Tetrazzini (1871-1941) e Toti dal Monte (1893-1975), a francesa Lily Pons (1898-1976). A lendária soprano norte-americana de origem grega Maria Callas (1923-1977) foi responsável pela renovação do papel-título em 1952, na Cidade do México. Desde então é o cavalo-de-batalha das sopranos, trazendo desafios técnicos e vocais sobre-humanos, além de exigir excepcional capacidade de atuação teatral por parte da prima-dona. Uma vez superados tais obstáculos, a cantora tem garantida uma gloriosa carreira e reconhecimento internacional. Além de Callas, Dame Joan Sutherland (1926-2010), Edita Gruberova, June Anderson, Mariella Devia, Natalie Dessay e Diana Damrau estão no seleto grupo de heroínas que se destacaram mais recentemente como Lucia.