Helga Hoffmann

A verdadeira cor ninguém descobriu ainda.[1]Mas há algo de marrom da extrema direita, algo de vermelho da extrema esquerda, não se sabe em que proporções. E houve até quem escrevesse que, seja marrom ou vermelho a verdadeira cor, o fascismo amarelo é o maior perigo que ameaça a França desde a Guerra da Argélia.[2]Certamente a verdadeira cor não é verde, como veremos, ainda que líderes de “coletes amarelos” em algumas cidades também tenham incluído a proteção do ambiente na lista heterogênea das quarenta e tantas reivindicações. O horror da violência foi mais visível em Paris, mas não faltaram registros em Lyon, Nantes, Marseille, Toulouse, Lille.

O movimento começou como protesto contra o aumento do preço dos combustíveis. Reclamações contra esse aumento já apareciam em várias partes da França desde outubro, sobretudo em lugares do interior em que o carro é usado em longas distâncias entre a casa e o trabalho, a casa e as compras. O aumento do preço dos combustíveis ocorre na França todo ano em abril, por ação de um imposto sobre o consumo de energia, cujo valor é fixado na lei orçamentária nacional de cada ano e pode sofrer aumentos adicionais nas prefeituras (os “départements” franceses). Esse imposto recai sobre derivados do petróleo e outros produtos a serem utilizados como combustíveis ou no aquecimento, e afeta assim a população inteira, inclusive agricultores. Não é simplesmente algo que incomoda os motoristas de automóveis, apesar de que foram estes os que reclamaram de inicio. O montante arrecadado por esse imposto é dos mais significativos no total da arrecadação do estado francês e é repartido aproximadamente em 55% para o governo central, 25% para as prefeituras e 20% para as regiões, usado sobretudo para financiar uma ajuda social a desempregados fornecida pelas prefeituras e a manutenção da rede rodoviária e infraestrutura.

Desde 2014 há um componente ecológico nesse imposto, conhecido como TICPE (“Taxe Intérieure de Consommation sur les Produits Energétiques”).[3]A fórmula foi a de introduzir gradualmente um componente de carbono que torna o imposto proporcional às emissões de CO2 geradas pelo produto. O cálculo desse componente é complicado e implica estimar o custo de uma tonelada de carbono. Enquanto o preço do petróleo caiu, não se percebeu que o componente de carbono foi subindo gradualmente no total do imposto TICPE. Mas a partir de 2017 o aumento no TICPE foi sentido, e o aumento total previsto para 2019 era alto, de uns 18%.

Na tentativa de conter as manifestações, o Primeiro Ministro Edouard Philippe propôs, em 5 de dezembro, suspender o aumento desse imposto na lei fiscal de 2019, enquanto não se encontrarem “boas soluções”, e a Assembleia Nacional aprovou por 358 a 194, depois de 5 horas de debate.

Vá alguém explicar o que implica eliminar esse imposto a algum manifestante de colete amarelo a destruir vitrines em Paris? Ou vá alguém tentar explicar isso a uma radical que ainda festeja a Revolução de Outubro e vestiu seu colete feliz a prever a queda de Macron “não porque houve pancadaria no Arco do Triunfo, mas porque os coletes amarelos pararam a circulação de mercadorias há três semanas”(sic). Sim, também alguém assim está proeminente entre os coletes amarelos: os vidros quebrados seriam apenas de lojas de luxo, de onde viriam os ternos de designer do Primeiro Ministro Edouard Philippe. Ou o que dizer a quem se limita a insistir que força eleitoral não é representação social, sem qualquer interesse pelos detalhes da governabilidade?

Será fascismo amarelo, quando pretende simplesmente invalidar a eleição? E quando despreza escalões intermediários de representação, dos sindicatos aos partidos e o Parlamento? Pois entre as reivindicações está também a convocação de novas eleições parlamentares.  Ou é simplesmente anarquia, quando o movimento não tem estrutura nem representantes que possam discutir as propostas que o governo já apresentou ao Congresso para tentar apaziguar os manifestantes? Pois há outros resumos da situação que o governo Macron enfrenta: os coletes amarelos bloqueiam estradas, põem fogo em veículos, quebram a torto e a direito, inclusive atacando prefeituras, destroem a economia, com a cumplicidade e/ou incentivo dos derrotados pelo voto. Apesar de tudo, alguns analistas a posteriori interpretam como difusão da “democracia participativa”, em qualquer domínio e com qualquer método.

Importa saber como funciona (ou funcionava) esse imposto que foi o gatilho dos protestos, para tentar entender o desenrolar dos acontecimentos depois das primeiras reclamações. Não é só no Brasil que é difícil basear a política econômica em racionalidade. Pois o governo inicialmente tentou enfrentar o movimento defendendo a lógica da geração do aumento do preço dos carburantes. É um imposto sobre o carbono, no país onde se celebrou o Acordo de Paris sobre o Clima.[4]Mas não funcionou, pois então já havia aderido aos coletes amarelos quem não quer nenhum aumento de impostos, além dos grupos que argumentam que é preciso reduzir impostos para a economia se expandir. E aí passou a prevalecer no movimento a posição “não queremos política ambiental com incentivo e desincentivo via tributação”. E como o que predomina é a raiva difusa, não se deram conta de que quando a política ambiental não se faz por incentivos de mercado ela tem que ser feita por “comando e controle”.

Mas aí resolveu aderir ao movimento a turma que diz que não é preciso aumentar imposto algum desde que volte o famoso Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, lá apenas ISF. Eis uma maneira de fugir, assim, da dura realidade de que uma redução de impostos, junto com o aumento de gastos exigidos pelo movimento, significa um aumento do déficit fiscal e da dívida pública (que agora podem voltar a tocar perigosamente os tetos estabelecidos nos acordos de Maastricht da União Europeia). O ISF existiu na França por décadas, mas sempre foi criticado principalmente por ineficaz. A campanha contra o ISF foi amplamente divulgada no mundo todo quando Gérard Depardieu apareceu festejado por Putin e com sua nova cidadania russa, em protesto contra impostos na França. Desde janeiro deste ano o ISF foi transformado em imposto sobre patrimônio imobiliário, e desde então Macron passou a ser tachado de “presidente dos ricos”. E o tema central dos coletes amarelos, junto com a redução dos impostos, passou a ser o da justiça tributária, o de “chamar os ricos a contribuir”.

E não é que o presidente americano Donald Trump, célebre partidário da redução de impostos dos ricos, resolveu publicar sua opinião no twitter, pela terceira vez, sábado, dia 8 de dezembro? Tentou introduzir no movimento, que mais ou menos esquecera os temas ambientais e de imigração, uma contradição mais: “Um dia e uma noite triste em Paris. Talvez seja hora de por fim ao Acordo de Paris, ridículo e extremamente caro, e entregar o dinheiro às pessoas reduzindo os impostos.“ Trump incluiu no tuíte imagem de turba com “We want Trump” como se fossem os coletes amarelos. E concluiu: “I love France.” A diplomacia francesa reagiu e mostrou inclusive que a imagem era de Londres durante uma visita de Trump.

Isso tudo no tuíte de Trump no mesmo dia em que o Procurador da República em Paris, Rémy Heitz, fazia o balanço da mobilização policial, com o número recorde de detidos em Paris, 1082 pessoas, e passando de 1700 em toda a França: em sua maioria homens de menos de 40 anos de idade, sem antecedentes judiciais, vindos de diferentes regiões da França, e entre eles havia, como detalhou, “perfis mais característicos, provenientes da ultradireita e da ultraesquerda”. Ainda que houvesse alguma redução no número de manifestantes, havia aumentado a violência dia 8 de dezembro. E assim o Procurador anunciou, também, o reforço policial e no judiciário, mobilizando a magistratura inclusive no domingo, por causa do aumento excepcional de audiências e processos, e a necessidade de identificar e punir os autores de violência.

Em geral todos os partidos e grupos acham que todos e cada um têm razão de se manifestar. Mas as razões são por vezes contraditórias, e até incompatíveis. E assim o movimento acabou convergindo para o ataque à figura do Presidente Emmanuel Macron. Já foi assim no primeiro dia de violência, 1 de dezembro, quando foi vandalizado barbaramente o Arco do Triunfo e entre as pichações no monumento podíamos ler “Macron démission”. Mas agora os analistas passaram a falar da arrogância e do formalismo do Presidente, das suas atitudes que levaram os franceses a sentir que “o Presidente não se importa com o francês comum”. A culpa seria do “estilo imperial” do Presidente. E do fato de que seu partido, o PREM, Partido da República em Marcha, tendo desmoralizado os partidos tradicionais, não conseguiu construir uma estrutura com capilaridade suficiente no país todo para transmitir ao Presidente as queixas da população. O PREM tem poucas prefeituras. E agora, de repente, os analistas passaram a recordar o fato de que 43% da população está tão “desesperada” que votou ano passado nos extremistas Le Pen ou Melenchon. Pois é, uma parte compareceu às marchas dos coletes amarelos.

Em 10 de dezembro o Presidente francês se dirigiu a nação para tentar acalmar os protestos. O tom foi conciliatório, reconheceu que alguma vez suas palavras podem ter ofendido alguém, mas é claro que o elegante Emmanuel Macron jamais será o que possa ser chamado de “tipo popular”. Atendeu algumas das reivindicações, aquelas relacionadas com o poder de compra de assalariados e aposentados, e prometeu um debate “mais próximo ao terreno” para envolver os cidadãos na transição energética,  falou na necessidade de reforma do Estado e maior descentralização. De maior destaque, a promessa de um aumento de 100 euros mensais para os trabalhadores atingidos pelo SMIC, o salário mínimo francês por hora, sem custo algum para o empregador (ou seja, não é exatamente um aumento do mínimo propriamente dito, mas alguma bonificação que os especialistas ainda estão estudando de que modo se dará). Além disso, anunciou que será anulado, para as aposentadorias modestas, o imposto CSG (a chamada Contribuição Social Generalizada que financia gastos sociais). E tratou de explicar porque não faz sentido restabelecer na França o ISF.

O impacto das novas medidas do governo entre os “coletes amarelos” ainda está sendo avaliado. Começaram as pesquisas de opinião sobre o efeito a prazo das manifestações, tanto econômico como político. Qual o custo dos bloqueios, depredações, e do aumento das atividades de segurança e no Judiciário? Já as consequências políticas do recuo do Presidente Macron de imediato, e nos próximos anos e eleições, poderão ser tão contraditórias quanto são contraditórios os “coletes amarelos”. De qualquer modo, temos pela frente uma era de aumento da instabilidade política na Europa, não só na França.

[1]O título plagia Laurent Joffrin. “Quelle est la couleur des gilets jaunes?” é o título de sua coluna de 10 de dezembro de 2018 no diário Libération. Pergunta que ele não respondeu.

 

[2]Mas não chegou a ser lembrada explicitamente a OAS, a organização secreta de franceses contrários ao fim da Guerra da Argélia que desafiou o governo de De Gaulle com ações terroristas quando este decidiu reconhecer o direito dos argelinos à autodeterminação.

[3]Esse componente de carbono foi introduzido no mesmo ano em que a França aderiu a uma associação de mais de mil empresas em 74 países que formam a Carbon Pricing Leadership Coalition (CPLC), cujo objetivo é criar medidas fiscais e sistemas de comercialização de certificados de emissão de CO2 que sinalizem aos atores na economia, consumidores ou produtores, a necessidade de reduzir as emissões.

[4]Chegou a ser atribuída a Emmanuel Macron a frase “você não pode ser ecologista na segunda e ser contra o aumento da gasolina na terça”. Mas não vi confirmação disso.