A nação inteira fala e discute sobre o desastre criminoso em Brumadinho. A imprensa só fala desta tragédia, e com razão. A cada dia o número de mortos identificados aumenta. Começou com 6, ontem, segunda feira, eram 60. No momento em que escrevo estas notas, terça feira, 29/01, às 13:30, já são 65 mortos. O noticiário fala entre 279 e 288 desaparecidos.
A população está irada, e com razão. Menos de quatro anos após o desastre, também criminoso, de Mariana, o maior desastre ambiental do país, temos um desastre muito maior em número de vidas. Em Mariana morreram cerca de 20 pessoas. Em Brumadinho deverá ultrapassar uma centena.
Quase nada foi feito na ocasião do desastre de Mariana. As suas vítimas não foram, até hoje, corretamente indenizadas pela Vale. Ninguém foi punido. Nem no setor público, nem no privado. Apenas modificou-se a legislação, tornando mais restritiva a construção de novas barragens. Tolice. O que se tem de fazer é punir os responsáveis, tanto no setor privado quanto no estatal, para que este tipo de crime deixe a gaveta da impunidade. Punir não apenas as empresas com multas (que, aliás, a maioria não paga), mas também, criminalmente, os seus dirigentes. Tornar mais eficiente a fiscalização – o órgão respectivo em MG tem uma falta de mais de 300 funcionários para desempenhar esta missão. Obrigar as empresas a desmontarem as velhas barragens e construírem novas, em locais menos perigosos e com tecnologia mais moderna.
Mas tudo isso não serão mais que paliativos. Eles podem adiar desastres, mas não evitá-los, pois o problema é mais profundo, reside no modelo de economia que adotamos no século XVIII e que está se exaurindo. E a responsável é nossa maneira de ser, é nossa ambiguidade, arrogância e irracionalidade. Somos os dois, deus e diabo, médico e monstro. Como diz Morin, somos homo sapiense home demos. Criamos coisas maravilhosas para ampliar nossa qualidade de vida e construímos instrumentos de autodestruição, com a mesma presteza e elegância. O desastre criminoso de Brumadinho mostra exatamente o desprezo que temos pela vida dos outros e pelos bens ambientais. Os desastres se sucedem e não tomamos as medidas corretas. Não tomamos consciência de que não podemos manter um modelo de desenvolvimento econômico que despreza a natureza, humanos incluídos.
Essa irracionalidade se reflete nos níveis micro e macro, no nacional e no internacional. Brumadinho é um reflexo do dilema global que vivemos.
Nos anos 1970 o mundo tomou consciência da finitude dos recursos naturais. E, sobretudo, com Os limites do crescimentodos Meadows e outros, de que o modelo de desenvolvimento que adotamos a partir da revolução industrial no século XVIII não tem futuro. Cerca de 120 milhões de pessoas por ano ascendem, atualmente, ao status de classe média, passando a consumir bens da modernidade, como alimentação industrializada, transporte, serviços de saúde, educação, segurança, energia e bens materiais domésticos e pessoais. O mundo não tem capital natural suficiente para fornecer todos estes bens, justamente requeridos, por mais que as tecnologias recentemente adotadas permitam economizar recursos naturais e energia por unidade produzida. Afinal, a economia realizada nestas unidades se desfaz com o aumento extraordinário do consumo destas mesmas unidades. Celso Furtado, já nos anos 1970, havia denunciado o mito do desenvolvimento. A terra não comporta 257 países e suas possessões[1], e 7,6 bilhões de pessoas com padrão de consumo similar ao dos países desenvolvidos, sobretudo que dentre as nações emergentes há algumas muito populosas, como China, Índia, Indonésia, Brasil, Paquistão, Nigéria e Bangladesh. Juntas somam quase a metade dos humanos, ou seja, 3 bilhões e meio. E em breve seremos 9 bilhões.
De nada adiantaram as reuniões multilaterais que se realizaram desde os anos 1970, a última das quais na Polônia (2018), focada nas mudanças climáticas. O desempenho dos 12 indicadores mais utilizados para examinar a saúde do meio ambiente demonstra que as medidas até hoje adotadas foram inócuas. Apenas a emissão de gases destruidores da camada de ozônio teve um declínio significativo. Os restantes – a) volume de água potável per capita; b) captura de pescado marinho; c) zonas mortas; d) cobertura florestal; e) abundância de espécies de vertebrados; f) emissão de CO2; g) mudança climática e h) população de humanos e bovinos – apenas pioraram entre 1960 e 2016.[2]
Aos poucos se dissemina no meio dos estudiosos do meio ambiente a ideia de que caminhamos para um inelutável desastre, a ocorrer em torno de 2040. Provavelmente antes. Paul Gilding, antigo dirigente do Greenpeace e hoje professor universitário, declara em seu livro A grande rupturaque os humanos não têm racionalidade suficiente para evitar o desastre. Mas, como consultor de empresa, é otimista, e acredita que quando o desastre chegar medidas serão tomadas, evitando o pior (a extinção da espécie), mas com custos humanos e financeiros extraordinários. Economias serão destruídas e milhões morrerão.
As saídas propostas, por sua vez, apresentam debilidades evidentes. A grosso modo, pelo menos três propostas disputam mundialmente a melhor saída da crise ecológica. A primeira, a hegemônica, é a do desenvolvimento sustentável, hoje sob a roupagem de economia verde. A segunda, bem disseminada no meio empresarial e científico, é a saída tecnológica. Ambas gozam de prestígio, e mostram enorme ineficiência.
Na medida em que os indicadores ecológicos apontam o crescimento da destruição ambiental, essas duas alternativas perdem prestígio. Ainda são hegemônicas, e provavelmente continuarão por um bom tempo. No entanto, uma terceira alternativa, que nasceu há não mais do que vinte anos, sob o estigma do ridículo, começa a ganhar corpo. Trata-se da proposta do decrescimento planejado. Seus congressos mundiais, que se realizam a cada dois anos, começaram em 2008, em Paris, com poucas dezenas de participantes, e hoje contam com milhares. Revistas acadêmicas e políticas, assim como grandes veículos como Le Mondee El País, já abriram suas páginas para divulgar e comentar suas propostas.
O decrescimento planejado parte do princípio de que a ideologia do crescimento econômico – a maior e mais importante ideologia desde o século XIX – é a alma do modelo econômico atual. Esta ideologia impulsiona as sociedades a um crescimento autodestruidor. É preciso quebrá-la, revendo nossos padrões de produção e consumo de forma radical. Reduzir o consumo (eliminando o ostentatório e desnecessário), buscar novas formas de produção (economia compartilhada, colaborativa e criativa), estimular novos estilos de vida, baseados em valores de felicidade (tempo livre para a família, os amigos e atividades saudáveis, nos esportes e nas artes) e não de acumulação de bens (valorizar a simplicidade), com adoção de medidas de reciclagem, reuso e alongamento do ciclo de vida dos produtos, com a extinção gradativa da obsolescência programada. Enfim, uma infinidade de medidas que permitam a prosperidade sem crescimento, como prega Tim Jackson. Ou “ser mais feliz, com menos”, como dizem os voluntários da vida simples.
Não significa decrescer a produção no mundo inteiro. Trata-se antes de crescer-decrescendo como propõe Edgar Morin. Crescer nos lugares pobres e decrescer nos ricos. Reduzir a produção de automóveis, mas aumentar a de ônibus e bike, reorganizando a mobilidade urbana, por exemplo. O essencial é que o balanço final seja de menos gases de efeito estufa na atmosfera, menos destruição da biodiversidade e menos poluição.
Se mais ousada e eficiente, essa alternativa conta, no entanto, com o desprezo dos políticos e dos empresários, e a incompreensão das pessoas comuns. Sua viabilidade é, assim, perto de zero.
Dessa forma, continuamos nos distraindo com os eventos imediatos e os “faits divers”. Nos indignamos com tragédias como a de Brumadinho, enquanto caminhamos britanicamente para o precipício. Não conseguimos imaginar que podemos desaparecer da face da terra, como outros animais (dinossauros) e outros hominídeos (homens de Neandertal). Nos imaginamos eternos, como deuses. E, na realidade, somos autodestruidores, como demônios insensatos e suicidas.
[1]Destes, 54 são possessões coloniais dos países desenvolvidos. E a maior parte do Reino Unido (13), França (12), Estados Unidos (7) e Países Abaixo (6).
[2]RIPPLE, W. J.; WOLF, C.; NEWSOME, T. M.; GALETTI, M.; ALAMGIR, M.; CRIST, E.; MAHMOUD, M. I.; LAURANCE, W. F. World Scientists’ Warning to Humanity: A Second Notice. BioScience, v. 67, n. 12, p. 1026–1028, 2017.
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