Com a recente Opinião da Semana, na Revista Será?, que cobra justiça para o desvendamento e a punição dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, vários comentários – alguns de pessoas do meu círculo de amizade – foram feitos na linha de que “era mais uma estratégia de esquerdistas, dando visibilidade excessiva à morte de uma mulher até pouco tempo desconhecida.”
Outras se pronunciaram de forma ainda mais agressiva e chocante, também seguindo uma lógica maluca, sem entender que o que nos chama a atenção não é apenas a morte de Marielle. O contexto aponta para algo muito mais profundo: a completa dominação, por parte de forças milicianas, do aparelho de Estado do Rio de Janeiro. E é sobre isto que estamos cobrando das autoridades firmeza e determinação na apuração completa deste crime, que, como muitos outros, fere a democracia e suas instituições.
O que faz cidadãos comuns, pais de família e pessoas, até então serenas e equilibradas, se transformarem em monstros desprovidos de um mínimo de moralidade, soterrando em si valores básicos de civilidade?
Talvez o recente radicalismo político que dividiu a sociedade em duas correntes ideológicas, o petismo e o bolsonarismo, explique este fenômeno. Uma antípoda da outra, capturaram, pelas sutis forças da propaganda, potencializadas pelas fakes news nas redes sociais, corações e mentes de milhares de brasileiros. A realidade, para estes, torna-se simples e dicotômica, ou seja: eu, bom, ele mau. A partir daí, navegando nessa tosca embarcação, todas as causas de desgraças e fenômenos estarão associadas à outra corrente, numa visão perigosamente infantil e primitiva dos complexos fenômenos que movem uma sociedade como a nossa.
Na Alemanha pré-nazista, o antissemitismo foi utilizado como propaganda política, explorado por Hitler e seus estrategistas de propaganda como algo que uniria a sociedade alemã contra um único alvo: os judeus. Esse pensar dicotômico, próprio das ideologias antidemocráticas, como o fascismo, comunismo, e outros “ ismos” mais, é o passo fundamental para o controle das massas, alimentando a besta humana que existe em cada um de nós com o ódio e a intolerância em relação ao outro. Quando bem sucedido, o outro passa ser um objeto fóbico, gerando um terror que, como mecanismo de defesa do aterrorizado, só lhe deixa uma solução: a eliminação desse outro que o atormenta. Os nazistas foram buscar no antissemitismo da Idade Média lendas e traços dessa violência, e a reviveram com narrativas atualizadas.
Assim, aos poucos, uma das sociedades mais cultas da Europa foi capturada pela ideologia nazista, passando a ver o mundo de forma dicotômica, deixando instalar em seus espíritos os demônios da intolerância. E alimentada pelo nacionalismo, uma classe média ilustrada autorizou as mais perversas políticas e os atos de violência, expurgos e mortes perpetrados pelos nazistas e sua extraordinária máquina de guerra contra os judeus e outras minorias. Autorizaram a construção da filial do inferno aqui na terra, com os campos de concentração e a “Solução Final”, que matou seis milhões de judeus.
Este comportamento coletivo faz emergir no espirito humano o ódio demoníaco, alimentado pela intolerância, contra o outro.
Até quando os bolsonaristas radicais vão fixar-se nessa obsessiva ideia de que tudo o que – mesmo de longe, como foi o caso deste artigo – venha a atingir seu mito de extrema direita é motivo para ser associado ao PT e às esquerdas? Um mecanismo de defesa frágil e limitado, como se tudo o que está além do limite da realidade que sua tosca ideologia pode mapear fosse do PT, ou dele derivado. Ora, a sociedade brasileira é muito mais complexa do que esta pobre a danosa dicotomia rasteira, que tomou conta da nossa política. A nação e seu potencial futuro precisam de que as mentes se abram para ir além da política, e, neste sentido, os problemas como a violência, a desigualdade social, o racismo e o crime organizado, para citar apenas alguns, continuam sendo desafios à nossa democracia. Enquanto não forem atacados com estratégias competentes de curto, médio e longo prazos pelo governo e suas instituições, eles serão objetos de crítica. É assim que funciona uma democracia.
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Em tempo: os militantes e simpatizantes petistas agiram e agem submetidos ao mesmo tipo de comportamento, negando a realidade e colocando tudo e todos que não identificam em Lula um prisioneiro político, em Gleisi Hoffmann uma paladina das “forças libertárias da esquerda latino-americana” e a Venezuela de Maduro uma democracia, com os agentes da extrema direita, responsáveis por todo o mal que vem acometendo o Brasil. Ou seja, estas duas forças tão antagônicas quanto semelhantes em suas ideologias arcaicas e manipuladoras, dominaram a cena política do segundo turno, e, ao que parece, estão conseguindo apequenar o debate político a níveis rasteiros, inaceitáveis para uma nação como a nossa.
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