As ideologias políticas, aquilo que vulgarmente tentamos apreender como categorias de esquerda e direita, progressistas ou conservadoras, têm origens muito mais antigas do que possamos imaginar. Na verdade, suas raízes estão na origem do processo civilizatório, quando o conceito de propriedade foi instituído.
Em cima da posse e da propriedade, o homem fincou suas garras, construindo impérios, dominando pessoas e expandindo seus territórios por meio de guerras e matanças. Paralelamente, várias comunidades caminharam num sentido oposto, digamos, mais humano, vivendo experiências primitivas de socialismo, como os primeiros cristãos e outros. Estas duas correntes antagônicas, uma no sentido da legitimação da propriedade, por parte dos indivíduos, a outra na coletivização desta, vêm, ao longo da História, evoluindo numa conflituosa relação dialética, forjando processos qualitativamente superiores aos seus antecessores.
Surgem os Socialista Utópicos ( Claude de Saint-Simon, Charles Fouriere Robert Owenpara citar os mais importantes), com suas teorias e experimentos, tentando domar a fúria do capitalismo industrial que a tudo transformava, buscando, à custa da exploração da mão de obra, acumular o lucro de forma incessante e avassaladora, até que no Século XIX, com a importante obra de Karl Marx, consolidou-se o conceito do Socialismo Científico, e com ele, décadas depois, a Revolução Russa, a primeira e mais importante de uma série de revoluções socialistas. Uma das teses principais do marxismo é o conceito de luta de classes; outra, a teoria da Mais Valia.
Marx, em uma análise retrospectiva da História, prova que não bastava apenas boa vontade para resolver as contradições sociais, como tentaram as comunidades primitivas e os socialistas utópicos. O conflito estrutural que dividia os interesses de classes (aqueles que detinham os meios de produção contra aqueles que vendiam sua força de trabalho para que estes pudessem operar) só poderia ser ultrapassado por meio de luta e conquista do Estado, por parte dos trabalhadores, extinguindo-se enfim o conceito de propriedade individual, passando esta a ser coletiva. A teoria da Mais Valia, conceito um pouco mais complexo, afirmava, quase como uma descoberta tão importante como a de Galileu, que a única mercadoria que gerava valor por si mesma era a força de trabalho dos homens, e portanto, nada mais justo que estes – o proletariado – detivessem o controle do Estado, gerindo sua riqueza.
O SÉCULO XX
O século XX foi marcado por esta divisão ideológica, cindindo o mundo em dois blocos: o socialista e o capitalista. Um dilema – evidentemente sem falar nas milhares de mortes tentando implantar um novo tipo de sociedade, de onde emergiria um novo homem –, que afligia o socialismo, era que o Estado precisava ser necessariamente autoritário, para poder remover para o “lixo da História” séculos e séculos de injustiça e dominação cruéis. Do outro lado, o capitalismo flanava célere na sua marcha batida da produção industrial e tecnológica, em ambientes, digamos, com mais liberdade, posto que a democracia e suas eleições autorregulavam a natureza despótica do homem no poder.
Ainda no século XX, surge uma terceira variável, com um poder demoníaco para embaralhar mais esse cenário: a ideologia nacionalista, cadela mãe que pariu o nazismo e o fascismo. O saldo, com a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, são: 9 milhões de mortos e 30 milhões de feridos na primeira, e 47 milhões de mortos na segunda, sendo que destes, cerca de 6 milhões foram executados no Holocausto – a versão “mais aperfeiçoada” do inferno e da bestialidade que o ser humano é capaz de fazer contra seus semelhantes.
Após a 2ª Guerra Mundial, vem a Guerra Fria entre as forças hegemônicas dos dois blocos: americanos do lado capitalista e democrático, com sua política de dominação imperialista, e a União Soviética, regendo com mão de ferro seu bloco de países socialistas, também com sua política de expansão territorial, até que, em meados dos anos oitenta, o Bloco Socialista começa a ruir, findando-se em 1989, com a queda do Muro de Berlim, e 1991, com a dissolução da URSS.
A partir daí a democracia se impôs como um valor universal, ou seja, todas as ideologias agora teriam que conceber suas visões de mundo, suas estratégias de poder e suas políticas públicas transformadoras da realidade social sob a égide da democracia.
É uma frase curta: “Democracia como Valor Universal”, mas que carrega em seu bojo um enorme significante histórico. Representa uma importante passagem, um salto de qualidade do nosso processo civilizatório. Isto não significa a entrada no paraíso, pois, como disse em outro artigo[1], a Lei é fundada na contenção da pulsão humana, traço atávico da nossa barbárie, que se reproduz, latente, em cada novo ser humano que nasce. Civilização é aquilo que nos distingue dos animais, uma envoltória, um manto que tenta conter nossas forças pulsionais.
No bloco histórico que se inicia no Século XXI, novos conflitos e desafios surgem, como o fundamentalismo islâmico, porém os países, em sua maioria absoluta, esforçam-se para materializar este paradigma: democracia como valor universal.
AS IDEOLOGIAS DEVEM SER SUBSUMIDAS PELA PRÁXIS DEMOCRÁTICA
O século XXI destaca-se como era da comunicação. A internet e a tecnologia da informação e comunicação perpassam todas as sociedades, com maior ou menor intensidade, alterando suas formas de produzir, viver e interagir com o outro. E como fica o sujeito atravessado por tanta informação? No campo das formações ideológicas, somos herdeiros dessa longa trajetória da humanidade.
É evidente que as experiências históricas socialistas falharam na construção de novas sociedades, na vã esperança de criar um novo homem na terra, menos ambicioso, posto que desconheceria o conceito de propriedade privada. Dois erros estruturais: o primeiro foi subestimar a complexidade do desejo humano; o outro foi descobrir que aquilo que você toma pela força tem que manter, pelo menos por algumas gerações, na força, precisando suprimir, necessariamente, as liberdades individuais – caindo sempre em experiências de regimes totalitários, tão cruéis como aqueles regimes que tentavam substituir, aprimorando-os.
Assim, o que se impõe hoje é a adequação dos anseios utópicos humanitários, de um lado, com a fúria da acumulação de capital do outro – tendências que se confrontaram durante séculos – subsumindo-as pelo ambiente democrático. O capitalismo – aparente vencedor dessa disputa – precisa dar conta das contradições estruturais de seu modo de produção, onde quase sempre deixa um enorme rastro de pobreza e desigualdade social, ao lado da riqueza. Ao socialismo cabe atuar como força reguladora, apontando soluções para tais contradições do modo de produção capitalista – aliás, o único existente em nossa era moderna.
Socialistas e liberais, após séculos de lutas, encontram-se hoje juntos em cima de uma ravina da História, olhando o vasto futuro democrático que a humanidade tem pela frente. É neste universo que as diferentes visões e práxis políticas têm que atuar. Os desejos, assim como as contradições destas correntes ideológicas, têm que sofrer uma reinterpretação teórica, onde a liberdade do indivíduo, a tolerância e o direito à vida digna sejam pedras fundamentais da sociedade, garantidas pelas suas Leis.
O BRASIL
O caso do Brasil, onde um partido de esquerda, herdeiro dessa corrente histórica socialista (um herdeiro mal-ajambrado, é verdade), governou por 14 anos, finalizando seu capítulo com um impeachmente a prisão, por corrupção, de seu principal líder, acirrou uma polarização avassaladora, onde um líder de extrema direita se elege, surfando numa onda de irracionalidade antipetista. A extrema direita é herdeira da famigerada corrente ideológica nacionalista, que ressurge em contraposição aos atentados terroristas do fundamentalismo islâmico, atingindo o coração do mundo civilizado ocidental.
É certo que seu líder, Bolsonaro, foi convencido da importância da política econômica neoliberal, um capitalismo moderno, daí uma expectativa positiva no campo da economia, em que pesem os absurdos, por parte do seu núcleo mais próximo, com uma visão perigosamente medieval sobre os costumes e os direitos universais da diversidade humana.
MITOS
E onde fica o cidadão brasileiro nessa história?
Há uma componente operacional das ideologias políticas, iguais às religiosas, que é a necessidade de líderes carismáticos, cujos discurso e aparência vêm ao encontro dos anseios deste cidadão, capturando-o numa relação de submissão identitária ao mesmo tempo perigosa – posto que o afeto destitui a razão do sujeito – e nefasta, pois quase sempre seus resultados são antidemocráticos, marcados por uma certeza cega, calcada na rejeição ao outro, que pensa e age diferente.
A intolerância, mãe da bestialidade, emerge esmagando a rica diversidade humana, fragilizando o ambiente democrático.
O Brasil, portanto, está experimentando, em poucas décadas, os dois infernos: um mito de esquerda, e agora um mito de extrema direita, ambos com narrativas e práticas antidemocráticas – isto sem falar na corrupção do partido do primeiro como política de Estado, algo que demanda outro corte: o de elite política, patrimonialismo de Estado e sociedade civil, o qual não é objeto destas reflexões.
E AGORA?
O acirramento ideológico, estrategicamente manipulado nos meios de comunicação, aí incluídas as poderosas redes sociais, causou uma profunda fissura nos corações e mentes de muitos brasileiros. O processo eleitoral foi basicamente forjado no ímpeto emocional do eleitor – um desespero de querer, com seu líder, pôr um fim à alarmante estrutura de corrupção montada nos governos do PT.
O saldo positivo é que a democracia e suas instituições vêm absorvendo o tranco da irracionalidade coletiva. Outro fator positivo é que, bem ou mal, há os poderes legislativo e o judiciário como contrapeso institucional, evitando qualquer aventura ou arroubo do atual governo. Os discursos agressivos, as ameaças de perseguição à esquerda, os infames elogios aos torturadores durante o Regime Militar, tudo isso se dilui e não encontra espaço nem possibilidade de ser materializado em um ambiente democrático.
O governo tem o leme da nave nas mãos, a oposição, democraticamente, tem sua importante função reguladora e crítica a ser exercida, e o cidadão, que votou nas duas forças políticas no segundo turno, têm o dever de descer do palanque e exercer seu protagonismo, substituindo o ódio ao oponente pela razão crítica, consciente de que estamos todos no mesmo barco.
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[1]“É importante lembrar que a Lei, elemento fundamental em nosso processo civilizatório, é, antes de mais nada, um instrumento para conter a pulsão humana primitiva, garantindo as condições mínimas para sairmos do Estado de Natureza para o Estado de Sociedade. Lei, portanto, é contenção de uma pulsão humana, violenta, irracional e destruidora. A sua existência não é sinal de que a pulsão humana foi extinta, pelo contrário, é a mais clara prova da existência do horror humano primitivo, que, apesar dos milênios de processo civilizatório, permanece incólume, insistindo de forma incessante em cada gesto de violência de um ser humano contra outro. InNEGRITUDE, HERANÇA OPRESSORA( REGO, João)
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