Cristovam Buarque

Past and future – (autor desconhecido).

Quem somos?

No dividido Brasil de hoje não há um sentimento de pertencimento, salvo nos mais restritos grupos de familiares, corporativos, sectários, elos partidários; somos diversos “nós” dentro da totalidade brasileira. Um destes grupos somos o nicho político que compõe os “democratas progressistas”.

Não somos força política com identidade ideológica, comportamental, propositiva, mas é possível nos definir como o conjunto de pessoas que se consideram democratas e progressistas; com visões diferentes do mundo, propostas discordantes sobre o futuro, mas unidas em quatro pontos:

  • Somos indignados com a realidade: a persistência da pobreza, o desequilíbrio ecológico, a desigualdade social, os preconceitos e intolerâncias de raça, gênero, sexo, religião;
  • Ainda que discordando dos propósitos e das estratégias, temos propostas alternativas para um mundo melhor e mais belo, com liberdade, eficiência, justiça, solidariedade, sustentabilidade;
  • Acreditamos que a política democrática é o instrumento para reformar a sociedade e construir as alternativas desejadas, promovendo avanço social, econômico e cultural;
  • Estamos comprometidos com: Democracia, Justiça Social, Eficiência na Economia, Respeito pelos Direitos Humanos e pelas Diversidades, Equilíbrio Ecológico e Harmonia com a Natureza.

Com estas condições, “nós” erramos ao fracassarmos politicamente ao perdermos o apoio dos eleitores nas últimas eleições para um grupoque representa o oposto do que defendemos para o futuro e que ameaça conquistas nossas do passado. Por isto, temos obrigação de entendermos nossos erros, como condição preliminar para nossos próximos passos na construção do Brasil que queremos.

Depois do susto na noite do dia 7 de outubro de 2018, todos nos perguntamos como Bolsonaro venceu: ele não tinha programa, nem partido; representava uma visão sectária retrógada, defendia posições que pareciam superadas desde a redemocratização que nossas forças tinham conquistado, não passava qualquer ideia de experiência. Na verdade, ele não ganhou, “nós” perdemos porque deixamos esgotar-se nosso tempo, ficamos sem projetos que seduzissem os eleitores, deixamos um país esfacelado e descontente, com milhões nas ruas contra “nossa corrupção e incompetência”. Estamos errando de novo ao nos perguntarem por que ele ganhou e não por que “nós” perdemos, quais foram “nossos” “erros”. Em apenas uma geração elegemos dois presidentes que falharam, não conseguimos eleger melhores, nem evitar a solução traumática do impeachment. E não perguntamos onde erramos. Apesar do cansaço e esgotamento com as duas décadas dos governos democratas­progressistas; apesar da violência, da corrupção, da recessão, do desencanto, da decadência como nação, Bolsonaro teve apenas 39,3% dos votos. “Nós” perdemos por nossos erros. “Nosso” primeiro erro foi não nos perguntarmos, sobretudo depois de 2013, onde estávamos errando, nosso erro atual começa em não querermos reconhecer nossos erros, nem fazermos a pergunta fundamental: onde foi que nós erramos?

ONDE ERRAMOS?

1 – Não apresentamos uma utopia nova.

Alguns de nós ficamos prisioneiros de sonhos utópicos obsoletos, outros não fomos capazes de formular novas utopias.

Os que se mantiveram fiéis a sonhos utópicos do passado não perceberam a curva da história, em décadas recentes: globalizando o mundo, limitando o crescimento econômico devido ao desequilíbrio ecológico; não entenderam ou se recusam a aceitar a evolução científica e tecnológica da inteligência artificial; reconhecem a aristocratização do proletariado moderno; nem as características da “era antropocêntrica”. Ficaram prisioneiros de utopias superadas; deixaram de ser progressistas, prisioneiros de crenças e valores do século XIX, irrelevantes para a realidade do século XXI e sem trazer esperança para o século XXII. Defendemos ligeiras evoluções, sem propostas nem estratégias transformadoras. Os que entenderam a nova realidade não inventaram nova utopia, acomodaram-se às posições conservadoras.

O fracasso do “socialismo real” e a falta de clareza de “novo socialismo” ou a inexistência de outro conceito que defina nova utopia limitaram nossas bandeiras ao aumento do salário mínimo, à garantia de direitos adquiridos, à ampliação dos direitos e liberdades individuais, à defesa do meio ambiente, à implantação de políticas assistenciais com transferências de renda para os pobres, à redução de jornada de trabalho e à defesa de avanços nos costumes relacionados a gênero, sexo, liberdade artística. Abandonamos sonhos utópicos que permitiriam ir além de simples ajustes e melhorias e ficamos aprisionados pelo pragmatismo e pelo imediatismo.

Caímos no eleitoralismo, passando a organizar nossas “bandeiras” em busca de resultados eleitorais imediatos, mesmo que isto exigisse tolerância com corrupção na gestão da máquina do Estado e irresponsabilidade nas contas públicas. Por falta de visão para o futuro, caímos no corporativismo. Passamos a representar as reivindicações de sindicatos de categorias profissionais, propostas de associações na defesa de interesses e objetivos específicos, ou de organizações não governamentais representando propostas setoriais. Substituímos a luta por um Brasil melhor por reivindicação para beneficiar grupos. Saímos de construtores da República para defensores das muitas republiquetas corporativas em que o País foi dividido. Por falta de um projeto comum pelo futuro, fomos responsáveis pela desagregação em marcha do tecido social e da nação como um ente coletivo.

Por pragmatismo, imediatismo e oportunismo, agimos como se não houvesse margem para transformações, revoluções nem utopias; apenas correções para as maldades que caracterizam a realidade econômica, social e cultural: concentração de renda e patrimônio, persistência da pobreza extrema; continuação de preconceitos e intolerância.

Prisioneiros das utopias mortas pelo avanço na realidade e nas ideias, prisioneiros das ditaduras de corporações, prisioneiros do imediatismo eleitoral, perdemos a chance de iniciar a implantação e de consolidar a ideia da igualdade no acesso à educação e aos serviços de saúde. Não adotamos o lema “o filho do pobre na mesma escola do filho do rico”, nem o compromisso de aproveitar todo o potencial de cada cérebro que nasce e vive no Brasil.

Não executamos, nem mesmo propusemos medidas responsáveis, que assegurassem a marcha estratégica na direção da igualdade na oferta dos serviços de educação e de saúde; deixando claro que esta igualdade permitiria justiça social, mesmo que ainda houvesse desigualdade na renda, devida à desigualdade no talento e na persistência de cada pessoa.  Não vimos que o vetor do progressoeconômico e social, a eficiência econômica e a justiça social estão na educação e na saúde de qualidade para todos.

2 – Não percebemos que a Justiça Social só se constrói sobre economia sólida e eficiente.

Mantivemos a visão da época em que os gastos públicos seriam o caminho para reduzir a pobreza, mesmo às custas do endividamento público e privado, ou da desapropriação financeira da população por meio da inflação. Aceitamos a ilusão de que o Tesouro Público é como um chapéu de mágico, com disponibilidade ilimitada de recursos financeiros.

O resultado desta irresponsabilidade fiscal, além de ser a justificativa constitucional para o impeachment de um governo “nosso”, provocou inflação, elevada taxa de juros, recessão e em consequência desemprego e aumento da pobreza, levando inclusive a retrocessos nos ganhos em anos anteriores graças a nossas políticas públicas. Não verificamos que os países que optaram por economias eficientes e sólidas têm hoje mais justiça social do que aqueles que preferiram a ilusão populista do social com relaxamento do rigor fiscal e desrespeito às regras da economia. Comparações entre Chile e Argentina e entre Colômbia e Venezuela permitem entender a importância da eficiência da economia como base para construir justiça social: os dois primeiros fizeram o dever de casa na responsabilidade fiscal, hoje estão melhores socialmente do que os outros dois. É comum economias eficientes sem justiça social, mas é impossível justiça social em um país sem economia eficiente. Apesar disto, a maior parte de nossos quadros militantes ainda reage a aceitar a necessidade da solidez econômica como alicerce indispensável, embora não suficiente, à justiça social. Preferem o simplismo irresponsável da irresponsabilidade fiscal

3 – Não entendemos o esgotamento do Estado

Com vocação populista, na busca prioritária de votos, com visão desenvolvimentista baseada em investimentos estatais, deslumbramento com obras e submetidos às pressões corporativistas, especialmente dos servidores do Estado, e sem querer enfrentar o desafio político de lutar por distribuição dos recursos limitados, caímos na velha ilusão de que os governos têm recursos ilimitados e capacidade de gestão dos interesses públicos. Não vimos que o Estado ficou insolvente financeiramente, por causa dos limites fiscais, e incompetente gerencialmente, por seu gigantismo e por seu aparelhamento ao atender às reivindicações eleitorais e fisiológicas.

4 – Mantivemos a visão tradicional de que as transformações sociais ocorrem dentro da economia, na distribuição da renda nacional entre salários, lucros, juros e impostos.

Não percebemos que, nas últimas décadas, a robótica, os limites ecológicos ao crescimento e a internacionalização das finanças e do comércio derrubaram as fronteiras econômicas, impedindo autonomia na execução de políticas econômicas nacionais, fazendo difícil e arriscada a intervenção voluntariosa da política na economia. Diferente do socialismo de até recentemente, no mundo global a revolução já não se faz por dentro de cada economia nacional, reduzindo a taxa de lucro e aumentando a taxa de salário e de impostos, mas na definição de prioridades que beneficiem diretamente à população.

No mundo contemporâneo, as relações econômicas nacionais estão amarradas por laços e variáveis internacionais. As utopias devemser buscadas usando o excedente que a economia eficiente produzir dentro de regras que dependem da economia global e das constantes e surpreendentes revoluções tecnológicas, assim como também dos limites ecológicos. Não percebemos, ou não quisemos aceitar que a manipulação política da economia pode trazer consequências negativas, provocando desequilíbrios ecológicos e monetários, recessão e desemprego, e impedindo a economia de gerar os recursos necessários para transformar a sociedade por investimentos diretos no setor social. O bom propósito social sem responsabilidade fiscal termina tendo efeito negativo.

5 – Aceitamos a privatização do Estado e rechaçamos a publicização de estatais.

Ignoramos que a estatização das últimas décadas não criou a oferta de serviços com qualidade que a sociedade, especialmente os pobres precisam, tampouco implantou a infraestrutura econômica, não percebemos que, diante da corrupção, por desperdício ou por roubo, e da ineficiência e baixa qualidade dos serviços, o discurso da privatização seduziu grande parte da opinião pública. Ainda mais diante do sucesso da privatização do setor de telefonia.

O Estado foi apropriado por sindicatos, empreiteiras, servidores e políticos que o usam para manterem e usufruíremo poder e suas vantagens patrimonialistas. “Nossa” alternativa não deveria ter sido a defesa do Estado Patrimonialista, ineficiente, desperdiçador, elitista e exclusivista, raramente com compromisso popular; tampouco deveria defender privatizações sem compromisso com serviços públicos, nem fechar os olhos ao enriquecimento pessoal pela “privataria”. “Nossa” posição deveria ter sido de colocar os serviços estatais para servirem ao público: com eficiência nos custos de seu funcionamento e com qualidade nos serviços que oferecem. No lugar de nos concentrarmos na defesa da máquina do Estado, deveríamos ter buscado atender ao interesse do Público. Mas isto se chocava com os interesses das corpo rações, com o fisiologismo e com o aparelhamento; e com a possibilidade de benefícios pessoais ou eleitorais, locupletação, privilégios ou diretamente pela corrupção. Além de valorizarmos mais o Estado do que o Público, relegamos o compromisso com a eficiência na gestão estatal; não levamos em conta que em alguns setores a gestão privada pode servir melhor ao interesse público do que a máquina do Estado; nem consideramos as consequências do descalabro de sucessivos e crescentes déficits orçamentários.

Ao mesmo tempo, deixamos de radicalizar na necessária intervenção estatal em setores como educação e saúde. Ao contrário, com uma visão “neoliberal-social” tomamos o ensino superior como escada social, apropriada por seus servidores, professores e alunos, no lugar de alavanca do progresso nacional; privatizamos as estatais colocando-as para servir à sua comunidade em benefício do povo e da Nação e promovemos as particulares com programas gigantescos de financiamentos para que os universitários adquirissem diplomas de cursos superiores. Não transformamos as universidades em motor do progresso e iludimos os jovens e suas famílias com diplomas de pouco valor para a carreira e comprometedores para as finanças pessoais dos diplomados endividados.

“Nossa” proposta deveria ter sido marcharmos para a publicização total dos serviços de educação e saúde, mesmo quando fossem utilizadasunidades com gestão privada para atender ao interesse público. Nisto estaria nossa radicalização possível: uma economia eficiente gerando os recursos necessários para financiar um sistema público de educação e saúde com qualidade igual para todos. Mas, por submissão, tradição teórica e interesses menores, e por vínculos com os servidores, preferimos ficar amarrados a serviços caros e ineficientes executados pelo Estado, em vez de atender às necessidades do público, dos usuários, dos doentes, dos alunos. Não vimos que o povo sofre com o mau serviço que recebe e é roubado pela corrupção a que assiste. Confundimos estatal com público e até hoje temos que explicar por que muitos de nós fomos contra a publicização do restrito direito a um telefone, ao ficarmos contra a privatização nas telecomunicações.

6 – Não percebemos a importância da utopia educacionista.

Sem a possibilidade de construir os sonhos utópicos e caindo no corporativismo que levou à irresponsabilidade fiscal, perdemos compromisso com uma utopia alternativa: a implantação de um sistema educacional com a máxima qualidade e igual para todos.

Esta utopia educacionista, que pode parecer atrasada em comparação com os sonhos da igualdade plena do socialismo, ou porque já está em prática em países capitalistas europeus e asiáticos, teria permitido fazer a grande transformação social e econômica do Brasil. Mas, durante os 24 anos de governos democrático-progressistas, o analfabetismo não foi erradicado, nem mesmo reduzido substancialmente; nossa educação de base se manteve entre as piores e certamente a mais desigual do mundo, conforme a renda da família.  Ampliamos três brechas que nos amarram no atraso e na injustiça: a brecha crescente entre a educação dos pobres e a dos ricos; entre nossa educação e aquelas nos demais países; e entre a educação que oferecemos a nossas crianças e a educação que o mundo contemporâneo exige para um jovem ser bem-sucedido eeficiente na construção de um país progressista.

A utopia possível de ser implantada em poucas décadas consistiria na revolução que substituísse a péssima qualidade e a abismal desigualdade do atual sistema, municipal ou privado, por um sistema público nacional com a máxima qualidade. Isto teria sido possível pela implantação, ao longo de duas ou três décadas, de um robusto sistema federal – na carreira do professor, nas qualidades das edificações e equipamentos, todas as escolas em horário integral – que substituísse, por cidades, o frágil sistema municipal.  Complementarmente, seria necessário um programa para, em 4 a 6 anos erradicar o analfabetismo de adultos. Se os programas “Escola Ideal” e “Brasil Alfabetizado” iniciados em 2003 tivessem continuado até o final de 2017, quando terminou o ciclo democrático-progressista, o Brasil seria hoje um território livre do analfabetismo e teria pelo menos

3.000 de suas 5.564 cidades com escolas públicas federais com a máxima qualidade e o mesmo padrão para todas as suas crianças.Mas não entendemos a necessidade, nem o potencial desta revolução, porque não fizemos antes nossa evolução ideológica de modernizar o pensamento progressista, do economicismo do século XIX para o educacionismo do século XXI.

No lugar da “doce revolução” desta estratégia revolucionária democrático-progressista, preferimos o eleitoralismo inconsequente e ilusório de atender e privilegiar o ingresso no ensino superior. Em vez da busca de universalizar o egresso no ensino médio com máxima qualidade para todos, independente da renda e do endereço da família, ampliamos vagas no setor estatal e criamos mecanismos para o financiamento do setor privado no ensino superior.

Foi uma opção conservadora, cujo fracasso já é visível na evasão de universitários que não acompanham seus cursos, apesar da queda na qualidade e nas exigências. Erramos ao preferir a proposta mais simplista, imediatista e eleitoreira de propagandear que um filho de um pobre já entra na universidade, no lugar da revolução de que todos os filhos de todos os pobres disputem vagas em universidades com a mesma base e chance dos filhos dos ricos; erramos ao não fazer com a educação o que se tem no futebol: pobres e ricos disputando igualmente uma posição entre os grandes times e na própria Seleção, graças ao fato de que a bola é redonda para todos, independente da renda da família da criança. Perdemos a chance de iniciar o processo de redondear nossas escolas substituindo o frágil e desigual sistema municipal por um robusto e igualitário sistema nacional. Se tivéssemos feito isto, praticamente todos os problemas brasileiros estariam sendo enfrentados de forma permanente, democrática e progressistamente, porque todos eles exigem educação de qualidade para todos.

7 – Politização dos valores

Impedidos pela realidade de fazer revoluções na economia e sem querer radicalizar nos compromissos e nas estratégias da publicização dos serviços sociais de educação e saúde, buscamos nos diferenciar dos “outros” por posições corretas no campo dos costumes, mas nos isolando de sentimentos da população. Passamos a ideia de sermos culpados da desagregação familiar, da violência urbana e da dissolução de valores morais. Com o desencanto da população, perdemos a disputa com os grupos religiosos e moralistas.

8 – Abdicamos de defender os símbolos nacionais.

Fomos corretamente defensores da Amazônia, da diversidade dos recursos naturais, das crianças, dos índios, dos direitos civis e humanos, mas descuidamos de nos identificar com os símbolos que unificam e fascinam o povo. A “direita” assumiu como se fossem dela: o hino nacional, a bandeira, as cores nacionais e até a moeda estável, embora esta tenha sido uma conquista de um governo do nosso campo, Itamar, FHC, e mantida no governo Lula. O resultado foi o uso destes símbolos pelas forças reacionárias, fazendo com que o povo tivesse a sensação de que “nós” democratas-progressistas éramos antipatriotas. Em agosto de 2016, um grupo de senadores, preocupados com a marcha em direção ao impeachmente suas consequências, levamos à presidente Dilma um

conjunto de sugestões: uma delas seria ela assumir que não era do PT ou de qualquer outro partido político e dizer que “meu partido é o Brasil” ; ela não o fez; dois anos depois, Bolsonaro ganhou voto com esta frase, que “nós” e a Dilma temos muito mais legitimidade para usar, mas não usamos. O povo gostou, e nós perdemos.

9 – Desconhecimento do “Espírito do Tempo”.

Assumimos o poder, em 1995, 1999, 2003 e 2010, sem o sentimento do “Espírito do Tempo”; sem entender nem aceitar para onde caminha a humanidade na sua marcha: a globalização, inteligência artificial, robótica, limites ecológicos, ampliação na esperança de vida, redução na taxa de natalidade, migração em massa, crescimento do sentimento individualista, “aristocratização” do “proletariado”. Assumimos apenas a marcha à liberação das cortinas e garantias de direitos humanos. Não tivemos proposta clara que unificasse a marcha histórica para esse novo mundo que surge: nossa economia precisa estar sintonizada com a globalização do comércio e do avanço técnico, convivendo com suas vantagens e problemas, ser tolerante com os imigrantes internos e externos, defender as reformas necessárias para enfrentar e usufruir o novo mundo.

Não percebemos a realidade internacional da “Cortina de Ouro” que divide o mundo não mais por países socialistas e capitalistas, países pobres e países ricos, desenvolvidos e subdesenvolvidos, Primeiro Mundo, Segundo e Terceiro Mundo, nem por “classes” sociais vinculadas à produção. Não entendemos que a divisão se dá hoje de forma ainda mais radical entre incluídos e excluídos, conforme à participação das pessoas no acesso aos produtos, serviços e valores da contemporaneidade, independente do País onde elas vivem. Continuamos com o velho discurso de Terceiro Mundo, quando o mundo inteiro é um Terceiro Mundo, dividido geograficamente por países, mas cada um deles dividido socialmente, cortado por uma cortina de exclusão, a “cortina de ouro” que serpenteia o planeta,  apartando a população de cada país entre incluídos e excluídos, separados por “mediterrâneos invisíveis” que excluem os pobres e aprisionam os ricos.

Não entendemos que em cada país a sociedade não se divide apenas entre trabalhadores e capitalistas, disputando a participação na renda social, mas que a apartação mundial  separa de um lado os trabalhadores e capitalistas do setor moderno juntos no superconsumo supérfluo, e do outro lado os excluídos da modernidade , sem acesso ao essencial para uma vida digna . Ao não entendemos isto, adotamos a defesa dos trabalhadores do setor moderno em busca de ampliar consumo, e oferecemos pequenas transferências de renda, capazes de eliminar a fome e até a miséria extrema, mas sem derrubar a “cortina de ouro”, nem promover a emancipação das pessoas. Oferecemos acesso a bens, sem oferecer cidadania, e deixando os pobres dependendo de que os novos governos mantenham a bolsa-família e a estabilidade monetária, sem o que a miséria volta. Ainda mais grave, a partir de 2004, substituímos a bolsa-escola que nós criamos em 1995 no governo do Distrito Federal e Fernando Henrique Cardoso levou cinco anos depois, para o Brasil, pela bolsa-família, sem a característica educacional. Transformamos um programa com potencial para oferecer renda imediatamente e revolucionar pela educação, em um programa que assiste pela transparência de renda sem transformação estrutural.

Sem poder defender o fim da propriedade do capital econômico e sua socialização, como o velho socialismo defendia, não nos comprometemos no sentido de socializar o capital do mundo contemporâneo: o conhecimento; oferecendo   a cada pessoa oportunidade   de acesso   à educação de qualidade, independente da renda da família. Não tivemos a sensibilidade, a percepção e a ousadia de ter como “slogan” a garantia de “o filho do trabalhador na mesma escola que o filho do patrão”.

Não entendemos o espírito da nova revolução para o mundo contemporâneo. Não exercemos o governo com propósitos emancipa dores: escolhemos servir à classe de trabalhadores privilegiados em convivência com os capitalistas, ignorando o papel revolucionário da socialização do conhecimento.

10 – Silêncio de intelectuais, desprezo às ideias e subserviência do pensamento universitário

Em grande parte, o espírito do tempo não foi percebido por causa do desprezo dos nossos políticos aos intelectuais, e da vergonhosa submissão destes aos políticos, às ideias e às siglas partidárias nas quais se inscreveram. Nossos filósofos e intelectuais públicos se atrelaram à dinâmica das siglas, se intimidaram ou aceitaram a visão anti-intelectual de que as críticas aos “nossos” fazia o jogo dos adversários. Deixamos de explicitar e alertar para a curva da história, e de ver a perda de rumo de nossos políticos e partidos com a marcha da civilização ao futuro. Em nenhum momento do passado os intelectuais próximos ao governo foram tão subservientes e calados. Nas prioridades, se contentaram em aplaudir a bolsa-família e o apoio ao ensino superior. Calaram diante do desprezo ao problema do analfabetismo e da tragédia que espera o Brasil devida à degradação de nossa educação de base. Silenciaram até mesmo diante da corrupção explícita e do aparelhamento que levou à falência gerencialdo Estado. Também silenciaram os intelectuais subservientemente diante da necessidade de reformas, abandonaram a aritmética e se transformaram em massa de manobra para justificar os erros políticos nas discussões sobre as reformas de que o Brasil precisa. Sem intelectuais ousados, independentes, sérios, ficou difícil a realização da necessária autocrítica que identificasse os erros em andamento. As universidades são o exemplo mais claro do silêncio vassalo, sobretudo porque foi consequência da convivência decorrida das vantagens e investimentos recebidos.

11 – Horror às Reformas

O “espírito do tempo” exige reformar velhas estruturas; mas, por sermos beneficiários dos privilégios, por apego ao presente ou para não incomodar às corporações, no lugar de apresentar nossas propostas de reforma comprometidas com os interesses nacionais e populares adotamos posições antirreformistas. Ficando como defensores do status quo, ganhamos apoio sindical e de opinião pública, mas perdemos legitimidade. Não fizemos, não defendemos e ainda nos opusemos às necessárias reformas que eliminariam privilégios ou que ajustariam a máquina econômica aos tempos atuais: da previdência, trabalhista, fiscal, bancária. Fomos governos conservadores: antirreformistas, reacionários, com horror às reformas. Viramos defensores do direito adquirido.

Não levamos adiante as modestas reformas na educação de base iniciadas em 2003, com o Brasil Alfabetizado para erradicar o analfabetismo, com o programa Escola Ideal pelo qual o governo federal adotaria as escolas de ensino fundamental em cidades pobres; nem com a valorização federal do professor municipal, com a complementação salarial federal depois da aprovação em exame nacional. Estes pequenos passos foram interrompidos porque nossos governos preferiram a submissão às corporações e nenhum passo substancial foi dado na direção da grandereforma: substituir o raquítico sistema municipal por um novo robusto sistema de educação de base. Nenhuma ação substancial foi feita no sentido de dar os passos necessários para que nossa educação de base tivesse qualidade, e qualidade igual para todos.

Aumentamos o número de vagas nas universidades, mas não fizemos a reforma universitária necessária. Por acomodamento e submissão às corporações universitárias, oferecemos recursos financeiros, mas não propusemos reformar as estruturas acadêmicas, sem as quais a universidade não participará da construção da sociedade do conheci mento no século XXI.

12 – Prisioneiros das siglas.

Sem perspectiva e sem compromisso de emancipar pessoas saltando a “cortina de ouro”, atravessando os “mediterrâneos invisíveis”, pela educação, caímos nas siglas partidárias como sendo a razão da política: não dividimos o espectro político entre os progressistas e os conservadores, mas, entre os de nosso partido e os adversários partidários; preferindo, quando necessário, aliança com corruptos e reacionários, desde que aliados, a aliar-nos a honestos e progressistas, se críticos às propostas de nossas siglas. Do ponto de vista das táticas eleitorais, a maior causa de nossa derrota foi a divisão intransponível entre PT e PSDB, guiados estes pelos aspectos eleitorais de cada sigla, sem qualquer razão ideológica mais profunda.

13 – Recusamos a radicalidade tática de alianças com progressistas do “centro”.

Não percebemos que em alguns momentos a aliança com o “centro” é mais progressista do que perder a eleição para os conservadores. A última eleição é um exemplo trágico desta situação. No lugar de termos viabilizado a eleição de algum dos candidatos do centro, preferimos perder, jogando o Brasil nas mãos do mais radical governo de direita que já tivemos na democracia, um dos mais conservadores hoje no mundo.

14 – Conivência, tolerância e locupletação com a corrupção.

De todos os erros, o mais visível pela opinião pública foi cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos. Além de abandonar prioridades básicas, preferimos fazer estádios a escolas.

Fizemos isto para atender à promiscuidade entre governos e empreiteiras,

permitir o roubo de dinheiro público e o enriquecimento de pessoas, muitas delas de nosso bloco democrata-progressista, mas também corruptas. Independentemente de o propósito ter sido o enriquecimento pessoal ou financiamento de campanha, o resultado foi a perda da bandeira da ética e a perda da confiança da população. Sobretudo porque antes representávamos e nos apresentávamos como a reserva moral na política e prometíamos ser diferentes do comportamento dos políticos corruptos anteriores. Além disso, caímos desbragadamente na corrupção do aparelhamento do Estado, entregando-o a incompetentes e corruptos que aplaudiam “nossos” governos enquanto roubavam nosso povo.

O resultado foi a desmoralização de nossos líderes, a degradação do Estado, a recessão, o desemprego e a violência que permitiram à direita fazer o discurso contrário, conforme o povo desejava. Entregamos à direita o discurso da ética, da bandeira nacional, do emprego, da segurança, do crescimento, do valor da moeda, do fim das mordomias e privilégios. Ficamos apenas com a defesa do meio ambiente, da diversidade e dos direitos civis.

15 – Culto à personalidade

Apesar da constatação da corrupção entre “nós” e entre aliados, sofremos de uma recusa à realidade e mantivemos culto à personalidade de diversos líderes, o que terminou aprisionando nossa linguagem, nossas análises, táticas e estratégias, e mantendo o vazio de propostas para o longo prazo. A amarra aos líderes do passado foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018.

16 – Desprezo à austeridade

Como progressistas, precisávamos ter sido a vanguarda da austeridade, mas preferimos defender o desperdício, assumindo que a austeridade seria uma bandeira reacionária. Ficamos contraditórios, falamos em equilíbrio ecológico ao mesmo tempo em que defendemos o aumento de consumo para todos os produtos, defendemos mais o aumento de automóveis do que a melhoria do transporte público; ficamos, na opinião pública, como defensores das mordomias no serviço público; mesmo sabendo que representam privilégios repugnantes, mantivemos tolerância com os benefícios de políticos e juízes; com os desperdícios evazamentos na máquina pública; não adotamos a crítica a privilégios de alguns na aposentadoria, nem na estabilidade funcional sem exigência de eficiência, dedicação e respeito ao público.

O correto seria defender a austeridade no setor público e no consumo dos ricos, defendendo justiça e eficiência da renda e do consumo dos pobres. Ficamos na história como protetores de privilégios e como construtores dos elefantes brancos para a Copa e as Olimpíadas, símbolos do desperdício. Deixamos que a direita adotasse o discurso e as propostas de austeridade e do fim dos privilégios.

17 – Descuido com a aritmética e preferência pela demagogia.

Apesar de que os governos Fernando Henrique e Lula tiveram responsabilidade fiscal, nós tendemos a ignorar a aritmética na hora de administrar as finanças e ainda mais nos discursos com as propostas que fazíamos. Ignoramos os limites financeiros na previdência e nos gastos públicos em geral. Com isto demos o aval para “nossos” governos nos conduzirem ao desastre que apareceu a partir de 2015, mas já alertado desde 2009 com a visão de alguns de que “a economia está bem, mas não vai bem”.

18 – Aversão à autocrítica.

Tudo isto teria sido evitado se ao longo dos anos tivéssemos feito autocríticas, buscando perceber nossas falhas e nossa falta de sintonia com o “espírito do tempo” e com o eleitor; e se tivéssemos despertado para o descontentamento popular com a corrupção, com a má qualidade dos serviços públicos, com os erros econômicos e com o divórcio entre opovo e “nós”. Mas até hoje, mesmo depois de perdidas as eleições e entregue o governo, ainda há uma nítida aversão à autocrítica. Muitos imaginam que a culpa é do eleitor que errou, sem perceberem que o eleitor sempre tem razão, até mesmo quando sua decisão eleitoral não é acertada em relação aos destinos da nação. A culpa é dos nossos erros e talvez o maior deles foi jogar o eleitor-de-hoje para votar contra os interesses do povo-de-sempre, incluindo os que não votam por terem menos de 16 anos e ou por não terem nascido, mas pagarão pelos erros da geração atual.

19 – A crença nas próprias narrativas.

Nosso problema não foi excesso de ideologia como dizem os adversários, mas falta de capacidade e de ousadia intelectuais para criar ideologias que se adaptassem à nova realidade do mundo, no avanço técnico e nas características sociais. Sem bandeiras, criamos slogans de marketing. E acreditamos neles.

No segundo ano, o governo Lula transformou o programa Bolsa-Escola em Bolsa-Família, os marqueteiros criaram o slogan de que este programa teria tirado 30 milhões de brasileiros da pobreza e levado à classe média, quando na verdade a bolsa-família conseguiu tirar o Brasil do mapa da fome enquanto a inflação não voltar, o aumento do salário mínimo acima da inflação diminuir a pobreza, enquanto não acontece recessão e desemprego. Nenhum destes programas representou transformações estruturais para erradicar o secular quadro de pobreza. Mas “nós” acreditamos na mensagem publicitária que criamos.

Com as cotas para ingresso na universidade passou-se a ideia de que os filhos dos pobres estavam todos ingressando na universidade; na verdade, dez milhões de pobres não sabem ler, apenas 50% dos filhos dos pobres terminam o ensino médio, poucos com qualidade, destes quasenenhum consegue ingressar na universidade, mesmo graças às cotas; quase nenhum dos que se beneficiam das cotas ingressam em boas universidades em um dos cursos com muita demanda. Mas nossos marqueteiros passaram a ideia de que os filhos dos trabalhadores estão entrando na universidade; e “nós” acreditamos na narrativa que criamos para ganhar votos, apesar de não ser verdade. Criamos um programa positivo, a um custo muito alto, o “Ciências sem Fronteiras” e passamos a acreditar no slogan de que este programa traria o desenvolvimento científico e tecnológico, apesar de que todos sabem do baixo retorno do programa.

20 – Caímos no neoliberalismo social.

Perdemos sintonia com o social e adotamos a mesma postura neoliberal de resolver o problema de cada indivíduo por apoio do Estado e não de todos por mudanças estruturais. Optamos pelos direitos individuais, no lugar dos propósitos sociais. Ficamos “neoliberais-sociais”. Somos descendentes distantes dos socialistas europeus, mas filhos dos democratas que sofreram a ditadura militar no Brasil e perderam seus direitos políticos. Por isso, prevalece ainda o ideário da luta para derrubar a ditadura, construir a democracia e recuperar direitos individuai s. Temos sido políticos da defesa dos direitos de cada indivíduo e sua corporação, muito mais do que políticos da construção de uma sociedade sólida, eficiente e justa; mais de pequenos auxílios e ajustes, do que de reformas estruturais. Por isso, não fomos até aqui políticos da “coesão social”, nem do “rumo histórico”. Somos parte dos responsáveis por um país sem coesão, dividido, e sem projeto de futuro, imediatista, por isso, populista.

 

Cristovam Buarqueé professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), foi reitor da UnB, governador do DF, ministro da educação e senador pelo Distrito Federal por dois mandatos.