Nesta Semana Santa recém-finda, chamou a atenção o número de “dramas da Paixão” apresentados em Pernambuco, desde o famoso e pioneiro espetáculo de Nova Jerusalém, no Agreste, até encenações mais pobres e mais modestas espalhadas pelas várias regiões do Estado. Existem hoje “Cristos” mais altos ou mais baixos; “Marias” louras e morenas; “Judas Iscariotes” mais barbados e menos barbados. E um público para assistir às encenações, quase sempre compenetrado e fervorosamente compungido diante de um final que não muda: Jesus é julgado, condenado e pregado na cruz; Judas se suicida; Maria chora a perda do filho; as senhoras mais velhas enxugam as lágrimas nos lenços coloridos que trazem consigo.
Vi o Drama da Paixão, pela primeira vez ao ar livre, em Nova Jerusalém, quando era ainda um jovem estudante recém-ingressado na Universidade, e que iniciava um estágio na Sucursal de Pernambuco das revistas Bloch, entre as quais “Manchete” e “Fatos & Fotos”. Foi para esta última que viajei até Fazenda Nova, tendo como parceiro na tarefa o fotógrafo Clodomir Bezerra. O espetáculo era original, sim, mas muito longe da grandiosidade que exibe após ser monopolizado pela TV Globo, embora tenha recebido, noutros tempos, entre a pobreza e o fausto, patrocínio da Companhia de Cigarros Souza Cruz e do Banorte. O elenco da Paixão, de Plínio Pacheco, criador do espetáculo, era formado por atores pernambucanos, vários deles integrantes do Teatro Popular do Nordeste, criação de Hermilo Borba Filho. Entre estes atores estavam Clênio Wanderley, Germano Haiut, José Pimentel e outros mais. Nossa Senhora era vivida, se não me engano, pela esposa de Plínio, a sra. Diva Pacheco. Os figurantes eram os moradores do vilarejo, misturados com alguns pequenos agricultores do entorno. E a “cidade de pedra”, cenário do espetáculo, se resumia a alguns prédios inacabados.
Quando vejo, hoje, os espetáculos da Paixão encenados por artistas amadores na periferia do Recife e em tantas cidades do interior, não tenho como não recordar o maravilhoso mundo dos circos da minha infância, que quando apareciam, no período da quaresma, tinham por obrigação apresentar, na sexta-feira santa, o “Drama, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”, como os cartazes da propaganda informavam. Eram noites tão especiais que até mesmo o vigário da paróquia comparecia, embora em seus sermões, ao longo da semana, pregasse contra os movimentos provocantes dos quadris das “rumbeiras”; contra as músicas de duplo sentido do palhaço; contra o short extremamente curto da trapezista.
E foram muitos os circos de minha infância. E muitos dramas da Paixão representados. Guardo uma singela lembrança do Circo Copacabana, que baixou em São José do Egito com uma “troupe” superior a 50 integrantes, compreendendo mágicos, trapezistas, cantores, equilibristas, palhaços e uma “diva” especial que cantava e tocava acordeon – segundo os mais velhos, motivo de paixão recolhida de metade da população masculina da cidade. Não há como esquecer o Circo Fekete, cuja atração principal era uma bela jovem filha do proprietário, que além de cantora era também trapezista. Nem o Circo Alegria, onde um preto esguio – o próprio Alegria – encantava a platéia com espetáculos de mágica.
Talvez poucos integrantes daqueles circos de minha infância jamais tivessem ouvido falar dos grandes circos do mundo, como o “Circo D’Hiva”, da França, fundado em 1852 e apontado como um dos cinco maiores do planeta. Ou do Buglioni, também centenário e nos seus tempos áureos considerado o maior de todos eles. Maior ainda do que o Circo Tom Duffts, da Irlanda, criado há mais de 300 anos. Sob o teto de pano, algumas vezes cheio de remendos, aquela caravana de andarilhos externava seu amor ao palco e ao picadeiro, e fazia a alegria das cidades do Interior desse Brasil desigual.
Mas, nenhum deles deixou em mim uma lembrança mais forte do que o “Circo Teatro Araújo”, que depois de uma primeira parte do espetáculo cheia de atrações e de encantamento,encenava, sempre na segunda parte do espetáculo, uma peça teatral. Na Semana Santa, por dois dias seguidos, era obrigatório o Drama da Paixão.
Vivia o papel de Jesus, neste circo, um dos atores que ao longo da semana tinha desempenhado os mais diversos papéis nos dramalhões que o elenco encenava – “A Louca do Jardim”; “A volta do Filho Pródigo”; “Coração Materno” e tantos outros, que arracavam risos e às vezes lágrimas de uma platéia embevecida.
Este eclético ator era imberbe, e para viver o papel de Jesus teve que usar, evidentemente, uma barba postiça. O público, silencioso, acompanhava o desempenho dos atores, com um profundo respeito, algumas senhoras chorando quando o Cristo era açoitado por seus algozes. Após a crucificação, um efeito de luzes apagava e acendia sobre o palco, sons de trovões sacudiam o ambiente, como se Deus castigasse os “infiéis” que haviam sacrificado o seu filho. Final do espetáculo, entre lágrimas e aplausos a cortina se fechava.
O público aos poucos vai deixando o ambiente – no mesmo momento em que um forte vento começa a soprar, indicando possibilidade de chuva forte. A chuva demorou a cair, mas o vento foi impiedoso: de tanto soprar tão forte, acabou por derrubar a cortina que protegia o palco, onde o Drama da Paixão acabara de comover o público. Os que ainda não haviam deixado o ambiente se surpreenderam ao ver, por trás da cortina caída, “Jesus” com a “barba” derramada sobre o peito, sentado num banco de madeira , com uma garrafa de refrigerante na mão e um imenso sanduíche de mortadela na outra, porque os filhos de Deus também tem fome.
Como o dia seguinte era Sábado de Aleluia, não se falou mais no “Drama da Paixão”, embora o ator que representou Cristo não tenha mais aparecido nos espetáculos que se seguiram na temporada do “Circo Teatro Araújo” no Sertão do Pajeú. Esses atores de hoje desconhecem como era uma coisa bonita, os circos daqueles tempos.
Ivanildo Sampaio
Belíssimo texto Ivanildo. Daqui de Frankfurt, li em voz alta para Elba, que como eu, é também caruaruense. Nos identificamos com suas lembranças.
Também gostei muito, Ivanildo. Não sei o que teria sido de minha infância sem os circos. Foram eles que me trouxeram um sabor de mundo precoce, a que me acostumaria pelo resto da vida. Morador da rua da Aurora, vi o Tihany, o Bartolo, o Orlando Orffei e o Garcia, entre muitos outros. Era uma alegria quando chegavam. Os elefantes e os camelos bebiam água do rio Capibaribe (não sei se sobreviveriam hoje). Era desolador quando iam embora. De tanto ver os espetáculos, eu sabia de minha cama os números que estavam sendo levados ao palco só pela música. Uma maravilha, um encantamento.