“Rejeitei o princípio metafísico de que a política externa [de um país] não pode e não deve se preocupar com direitos humanos e outras questões que afetam o bem-estar de não-nacionais. Existe, contudo, um argumento pragmático em favor de pensar duas vezes antes de tentar introduzir justiça nos assuntos de outros povos. Este é simplesmente que – mesmo supondo que nossos líderes sejam sempre bem intencionados – eles não têm conhecimento suficiente para fazê-lo, e o resultado muitas vezes é uma desgraça maior do que adotar a pressuposição da não-intervenção. Não sei o que já causou [i]mais sofrimento: se a crença na inviolabilidade da soberania nacional, ou se o impulso moralista de intervir quando não sabemos o que estamos fazendo.” (Samuel Brittan,op.cit.p.47, tradução minha)
Alguém lendo isto hoje poderá imaginar que Brittan está se referindo à dúvida sobre o que fazer com a Venezuela. Ou à intervenção dos Estados Unidos no Iraque. Mas não: a observação é de novembro de 1999, numa palestra intitulada “An Ethical Foreign Policy?” proferida na reunião anual do National Council of Voluntary Organisations(entidade inglesa que congrega organizações comunitárias e de voluntários e dá assessoria e treinamento aos participantes nessas organizações). Certamente o público ali tendia a achar que o critério da moralidade deveria orientar a política externa. Mas critérios morais não têm um conteúdo único universalmente aceito, muito menos quando se trata de decidir, na base de tais critérios, quando se deve intervir em outro país. Inclusive há situações em que se podem apresentar critérios morais para não intervir (para além do critério da soberania nacional). Brittan parte de que julgamentos morais são inevitavelmente subjetivos (p. 38) e tenta mapear fundamentos gerais para uma política externa (sobretudo na Parte I do livro), se bem que deixe claro que é impossível elaborar um molde que seja aplicável a qualquer situação.
Os mais jovens talvez imaginem que o tema das relações entre moralidade e política externa vem do fim do século XX. Brittan mostra que o tema é mais antigo: por exemplo, já durante a crise de Suez, em 1956, deu-se um intenso debate entre os que achavam que a política externa [no caso, da Grã-Bretanha] deveria cuidar do chamado interesse nacional e aqueles que achavam que ela deveria ser governada também por considerações morais (entre as quais estava a de refrear-se de invadir um outro país cujo governo não havia cometido nenhuma agressão física ou embarcado em grosseira violação de direitos humanos). É certamente irônico que no fim do século XX a situação se inverta, e os argumentos morais agora sejam usados não para deixar de intervir, mas sim para justificar a intervenção, questionando-se o caráter absoluto da soberania nacional.
A sua palestra sobre ética na política externa examina de forma tentativa alguns critérios de intervenção, em teoria. E em seguida, Brittan testa tais critérios em casos concretos: a ação da OTAN na guerra do Kosovo, a ação internacional relativa à Indonésia no Timor Leste, a guerra do Vietnã, Putin e a Rússia na guerra da Chechênia, o episódio do pedido de extradição de Pinochet por um juiz espanhol. A modo de conclusão, aparece o que transcrevemos na abertura desta resenha, ou seja, deve-se pressupor a não- intervenção, mas tal pressuposição pode/deve ser derrubada quando as circunstâncias sejam suficientemente prementes.
Os afoitos dirão que ele é mesmo “o típico economista de dois lados”, argumentando “por um lado isso, por outro lado aquilo”. No fim, Brittan resume: a primeira prioridade da política externa, como em muitos outros assuntos, é o princípio utilitário negativo: “Não cause dano.” Esse é o critério de julgamento. Segundo ele, para a Inglaterra, isto seria começar por não mais vender armas e parar de recepcionar no Palácio Real representantes de ditaduras repulsivas. Aliás, a crítica à exportação de armas é um dos seus temas constantes, e ele chama a atenção para a contradição entre a alegação de um governo de que sua política externa é ética e o envolvimento desse mesmo governo em promover exportações (a venda de armas incluída) com o argumento de que estas contribuiriam para promover crescimento e emprego no país.
Against the flowcomeça com ensaios de política externa, com o cenário internacional. O primeiro é sobre o 11 de setembro, duas semanas depois de ocorrido (p.3). Como faz sempre, junto com o evento, datado, discute um ponto teórico mais amplo: aqui, é a necessidade de construir alianças para combater o terrorismo, sem esquecer que isso é diferente de conciliar quanto a princípios. De um lado…, buscar aliados. De outro lado…, isso não significa “elogiar regimes que praticam amputações e açoitamentos e se recusam a reconhecer a humanidade de seus cidadãos do sexo feminino”(p.6). Se bem que essencialmente as idéias de Brittan sobre política externa continuem as mesmas, o 11 de setembro e o terrorismo mudaram um tanto sua ênfase, pois está mais disposto a admitir incursões em outros países dos quais emanem ameaças do terrorismo, do fundamentalismo religioso intolerante, ou outras ameaças ao modo de vida das nações ocidentais. “Mas estas devem ser o mais possível limitadas e breves.” (in“This is Not a Time for Boy Scouts”, p.17).
É em análise econômica, porém, que Samuel Brittan mais se destaca. Há 40 anos é colunista econômico do principal jornal de economia do mundo, o Financial Times. Seu rigor analítico e a escrita escorreita serão reconhecidos por quem quer que alguma vez o leia, e lhe valeram inúmeros prêmios, títulos de professor honorário de várias universidades, bem como a atribuição de título honorário de nobreza na Grã-Bretanha “por serviços ao jornalismo econômico”, além da Legion d’Honneur.
Sua crítica, com frequência mordaz, não poupa o que às vezes chama de “business economics” ou “crenças em benefício próprio de representantes do mundo dos negócios ou sermões desatualizados de políticos”, a ponto de concluir que o nome mais adequado para essas crenças seria, adaptando Marx, a expressão “Lumpeneconomics” (in“What They Did Not Teach You in the Economics Course”, p. 352). Não é por acaso que um dos prêmios recebidos é o George Orwell. Brittan tem abarcado um imenso espectro de temas atuais entre nós: além dos temas de política externa já referidos (globalização, ONU, imigrantes, exportação de armas, guerras, segurança internacional, terrorismo), tratou de dificuldades da previsão econômica, metas de inflação, a taxa “correta” de juros, combate à recessão e à inflação, mercado de trabalho, previdência, apreciação e depreciação do câmbio, corrupção, o poder e os limites do Estado, e mais. Nem a relação entre “felicidade” e nível de renda ficou de fora (p. 247). E em um belo discurso com pitadas autobiográficas proferido na Sociedade Judaica da Universidade de Oxford em março de 2000 relata sua experiência com o judaísmo ortodoxo quando criança e como deixou de acreditar em religião, para em seguida tratar da religião como legado cultural, e da armadilha que é usar a religião – qualquer religião – para reforçar a solidariedade de grupo às custas da indiferença ou do ódio dos fora do grupo (p.224). Ou seja, mais uma vez está no fundo tratando de política externa em nossos dias, da violência e suas relações com religião, do mesmo modo como já havia, no início do livro, indicado a conexão entre análise econômica e política internacional (in“My Enemy’s Enemy Is Not Always My Friend”, p.13, e depois em vários outros comentários sobre exportação, venda de armas, câmbio).
Apesar de Against the flowser uma seleção dentre ensaios escritos entre 2000 e 2005 (com uma ou outra exceção), o livro continua extremamente atual, pois Brittan, ao comentar um tema, leva em conta tanto a experiência histórica quanto o debate teórico pertinentes. Ademais, apenas uma parte dos ensaios trata de questões de conjuntura; boa parte lida com debates teóricos que prosseguem, como é o caso dos artigos sobre Keynes, Milton Friedman, Hayeck, Bertrand Russel e outros luminares, e sobre o ensino de economia, na parte final do livro. E grande parte das questões de conjuntura, por não terem sido resolvidas em definitivo, continuam atuais aqui e agora.
Brittan já foi classificado como convicto e persistente defensor da economia de mercado e como um “liberal clássico” (no sentido europeu), para quem os governos devem se concentrar em suas funções essenciais de segurança interna e externa, fornecimento de bens públicos, que o mercado não consegue oferecer, e em tentar corrigir os piores efeitos colaterais de atividades privadas e do comportamento individual. Mas o simplismo desses rótulos não faz justiça à riqueza da sua contribuição ao debate intelectual e à formulação de políticas. Mesmo porque podem existir divergências quanto ao que sejam “piores efeitos colaterais” em cada circunstância. Um forte senso de justiça e a busca de formas de conter a violência entre grupos humanos permeiam seu texto. O individualismo que ele proclama no subtítulo deste livro está explicado no trabalho que apresentou na Royal Institute of Philosophy Conferenceem 1997 (p.209), “In Defence of Individualism”. É um resumo de muitas nuances para o velho debate filosófico entre individualismo e coletivismo, entre liberais e comunitários. Mais uma vez, tenta desmontar rótulos, mostrando incoerências de alguns agrupamentos políticos: por exemplo, algumas vezes os que defendem o mercado são autoritários quanto a regras de comportamento individual, e os que atacam o mercado e querem o Estado na produção são tolerantes em questões de comportamento. Embora nesse caso seja bom lembrar que a principal experiência concreta de “socialização dos meios de produção” certamente era também “estatista” no que se refere ao comportamento individual: ainda em 1962, só quem tinha licença especial do Kremlin podia ler jornais estrangeiros na URSS. Em todo caso, é preciso ler o libelo de Brittan contra o primarismo de “um falso raciocínio que identifica individualismo com interesse próprio e interesse próprio com egoísmo”.
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*O artigo comenta Samuel Brittan, Against the Flow: Reflections of an Individualist, Atlantic Books, Londres 2005. Baseia-se na resenha publicada na revista Política Externa(vol. 15 no.4, 2007), que já não existe. Fiz pequena alteração, pois continua atual neste ano de 2019, nas polêmicas sobre a política externa brasileira e sobre o liberalismo.
Para quem nada conhecia desse autor inglês, o artigo de Helga Hoffmann foi uma aula. Fiquei pensando com meus botões sobre um tema que foi motivo de minhas últimas reflexões e escritos enquanto estive na Academia. Além dos motivos que justificariam a intervenção em outros países apontados por Samuel Brittan, talvez devesse constar também a proteção aos imigrantes. Não por questões morais genéricas, mas sim por interesse próprio dos nacionais que neles habitam, mesmo que temporariamente. Realizava a primeira pesquisa com imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, quando acompanhei as profundas mudanças na própria estrutura do nosso Ministério das Relações Exteriores, ao tempo em que era ministro Fernando Henrique Cardoso. Depois, como presidente, aprofundou a política coordenada por uma secretaria especial criada para dar assistência aos brasileiros imigrantes em outros países. Até então, aquele ministério atuava com interesses predominantemente comerciais. Em toda região da Nova Inglaterra, por exemplo, os assuntos consulares se concentravam praticamente no consulado de Boston, um consulado apenas honorário. Acompanhei a transformação deste, com atribuições que passavam a ser predominantemente voltadas para a assistência aos imigrantes brasileiros. Uma novidade para um país que, até meados da década de 1980, não conhecia o êxodo dos nacionais. Portugal serve de lição, por sua população ser maior fora do país do que a que nele habita. O Brasil, país de dimensões continentais, está longe disso. Porém sua população imigrante hoje já é expressiva o suficiente para justificar intervenções pontuais em assuntos que, num certo sentido, ultrapassam os limites da soberania nacional. O grande problema é que os países de origem dos imigrantes são em geral menos poderosos, no jogo das nações, do que os de recepção dos imigrantes. E esse é um dos dilemas de século XXI.
Teresa, obrigada por ampliar a discussão. Nenhum texto de Samuel Brittan leva a ideia de intervenção tão longe ao ponto de um país A intervir em país B para proteger seus nacionais que emigraram para B. Ele está fazendo considerações sobre como julgar intervenções militares, essas que se discutem no Conselho de Segurança da ONU, que a ONU não aprova, e depois acontece a invasão a despeito disso, como Líbia e Iraque. Não está tratando de consulados. Imagino que todo país tem consulado, com maior ou menor eficiência em cuidar de seus nacionais que estão fora do país, legais ou ilegais. Brittan trata pouco de emigração/imigração, e seus escritos são anteriores à crise de refugiados na Europa. Mas argumenta em favor da livre movimentação de pessoas como parte de uma economia global em “Let the huddled masses go free” (p.75) e já na passagem do século defende que seja eliminada a distinção entre refugiado e imigrante, pois “são parte da humanidade comum os povos em países pobres tratando de melhorar sua situação assim como refugiados fugindo da tortura e da opressão” (p.81). O apelo moral é para abrigar refugiados econômicos e políticos sem distinção, o que é polêmico, e até agora os tratados internacionais distinguem entre imigrante e refugiado. Não é argumento moral para intervir em outro país. Por outro lado fiquei em dúvida sobre a sua definição de emigrante, pois a população de Portugal é 10,3 milhões e portugueses vivendo fora de Portugal, sobretudo na Europa, são algo entre 2,2 e 2,3 milhões. Segundo as estatísticas da ONU, de Eurostat e do governo português. O que pode acontecer é que a Venezuela ainda chegue a essa descrição de quase metade da população fora do país. Brittan não tratou de Venezuela e, em tese, não sabe, no caso concreto, o que causa mais dano, o sagrado respeito à soberania nacional ou o impulso moralista de uma intervenção. E mesmo ali estou com Moises Naim: uma intervenção militar só faria com que uma situação péssima ficasse pior ainda.