Paulo Gustavo

Gilberto Freyre.

Tive o privilégio de conhecer Gilberto Freyre, ainda que socialmente e ainda que separados por décadas de diferença de idade. O privilégio de ouvi-lo falar. De vê-lo gentilmente agradecer em público ao garçom que o servia na Fundação Joaquim Nabuco. Tive até mesmo o privilégio de entrevistá-lo para um jornalzinho estudantil e de observar, por essa entrevista, o seu cuidado com as palavras e o seu prazer de encontrá-las e dizê-las. Freyre exemplificava muito bem o que Jorge Luis Borges certa vez agudamente observou: que resvala para o texto a felicidade de um autor em escrevê-lo.

A propósito da felicidade de escrever, lembro que um dia flagrei-o nos jardins do Museu do Homem do Nordeste cercado por estudantes do Ensino Médio. Falava, já não recordo o quê. Os estudantes atentos ao seu redor. Me aproximei para investigar a cena. A certa altura, numa ênfase cenográfica, saiu-se com estas palavras: “O que fiz, o que escrevi, devo a esta munheca aqui” e, ato contínuo, levantou o braço com o punho fechado num gesto triunfal. Era um modo comunicativo de passar aos estudantes a sua organicidade de escritor e intelectual. Um achado feliz de sua própria felicidade de escrever e de realizar.

No tão lúcido quanto já famoso ensaio-prefácio que escreveu para a edição venezuelana de “Casa-Grande & Senzala”, Darcy Ribeiro afirma, com propriedade, que Gilberto Freyre “de certa forma fundou — ou pelo menos espelhou — o Brasil no plano cultural, tal como Cervantes a Espanha, Camões aLusitânia, e Tolstói a Rússia.”  Antes do surgimento, em 1933, da obra clássica de nosso autor, era como se ainda não tivéssemos chegado a uma síntese, e a nossa história, fragmentada e dispersa, fosse apenas caudatária dos grandes centros do mundo. Com Freyre, é como se nos mostrassem um Brasil novo, um país que já existia e que nos era contraditoriamente desconhecido. Formava-se, assim, um desenho de algo surpreendente, cuja recepção crítica não foi logo de todo unânime. Com sua formação intelectual realizada nos Estados Unidos e na Europa, mas deixando-se levar, sobretudo, por sua intuição profunda e proustiana, Freyre escreve um ensaio canônico e caudaloso em que afloram novas perspectivas e visões, algumas até então apenas latentes ou pré-conscientes. Se o livro — “Casa-Grande & Senzala”é científico e documentado, é o poeta, o grande poeta que havia no autor, que dá o verdadeiro tom, ao seduzir o leitor com uma escritura encantatória, fértil em símbolos e imagens dinamizadoras de nosso imaginário. Estava assim criado o mais influente conceito de “brasilidade” que a nossa inteligência já forjou.

Realizada aquela obra — que transborda e continua em outros livros como “Nordeste”, “Sobrados e Mocambos” e “Ordem e Progresso”, e que teve a sua semente inicial na dissertação “Vida Social no Brasil em Meados do Século XIX” —, não tardou um reconhecimento internacional. Para despeito de muitos e glória de todos os brasileiros, Freyre saiu conquistando aplausos das maiores autoridades mundiais. Aplausos, láureas e condecorações. Nomes como Fernand Braudel, Lucien Febvre, Asa Briggs, Juliánó Marías e Roland Barthes deixaram testemunhos eloquentes de admiração e respeito.

Com a obra freyriana, o negro entra na História do Brasil. E entra pela porta da frente, com o statusde co-colonizador. Entra com o enriquecimento cultural que trouxe da África para o Brasil. Uma África que, para nosso autor, na prática, “governava” o País, rivalizando com o mero e oficial “reinado” da Europa. Promove-se, entre nós, a dissociação do negro do contexto de perversões gerados pela escravidão. Essa distinção, para a qual previamente Freyre tão bem se habilitara, realçou o contributo inarredável que o africano nos deu, de par com o nativo e o europeu, para a formação de nossa cultura.

Ao lado do Freyre essencial que vive no antropólogo e no historiador social, há os outros Freyres, muitos deles clamando por intérpretes, por críticos, por dilatadores de visões. Há o Freyre cronista (vem de ser lançada uma seleção de suas crônicas) e o criador de instituições, o conferencista e o político, o empreendedor e o visionário, o crítico literário e o ficcionista. Sua multiplicidade de interesses e sua versatilidade intelectual levaram-no ao plural de si mesmo e agora o trazem sempre atual para estes dias de sua posteridade.

Por ocasião de homenagem, na sede da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, logo após sua morte, presenciei o filósofo espanhol Julián Marías aconselhar “que se completasse a sua obra”, resgatando suas potencialidades e seu exemplo — “Gilberto Freyre consideraba las cosas desde una pluralidad de puntos de vista”. Com a visão que muitas vezes só o homem de outra cultura possui, Marías logo sentiu o relevo convidativo de suas sugestões e de sua prosa “multidimensional” — para usar o termo com que a ela se referiu o crítico Eduardo Portela. O que Julián Marías viu foram os Freyres em Freyre. Muitos que chegam até nós sem o formol dos anos. E muitos que estão até para nascer. Comemoremos os 120 anos de Gilberto Freyre. O presente é nosso.