Sérgio C. Buarque

O relator da reforma da Previdência na Comissão Especial da Câmara de Deputados, deputado Samuel Moreira, negociou várias mudanças na proposta original do governo, para viabilizar a sua aprovação. Com isso, teremos a reforma politicamente possível. Infelizmente, o possível raramente é o melhor para o país, quase sempre contém alguma injustiça, porque reflete as pressões de poderosos interesses no Congresso, e ainda arrisca carregar algum populismo, que sacrifica a racionalidade. Retirar a mudança nas regras do BPC-Benefício de Prestação Continuada foi correto, mesmo porque se trata de assistência social, e não previdência social. A exclusão do modelo de capitalização também faz sentido, na medida em que não enfrenta a questão central, que é o enorme déficit no atual sistema de repartição.

Entretanto, tirar os Estados e os Municípios da reforma é um absurdo, considerando o elevado e crescente déficit previdenciário que compromete a capacidade de investimento público, especialmente dos governos estaduais, que já somam um déficit superior a R$ 90 bilhões. Provavelmente a exclusão vai ser recuperada na versão final, porque  consiste, na verdade, em uma certa chantagem política, para forçar os governadores do Nordeste a saírem da posição ambivalente, e se exporem também na defesa da reforma, reconhecidamente impopular.

A mais lamentável e injustificada alteração do relatório foi a concessão aos servidores públicos, cedendo à pressão das corporações, com a redução da idade necessária para a aposentadoria integral (salário do último cargo ocupado) dos que entraram no serviço público até 2003. Enquanto a proposta original previa 65 anos para homens e 62 anos para mulheres, o relator reduziu esses prazos para 60 e 57 anos (cinco anos menos) respectivamente, ampliando o privilégio dos servidores públicos e, portanto, diminuindo a eficácia da reforma na contenção do déficit da previdência.

Refletindo quase um consenso nacional, o relator excluiu completamente as mudanças propostas pelo governo para a previdência rural, considerando as condições sociais precárias do trabalhador rural brasileiro. E, no entanto, os benefícios da previdência rural constituem parcela significativa do déficit previdenciário do INSS: com 33% do total de beneficiários do Regime Geral da Previdência Social (INSS), a previdência rural é responsável por quase 60% do déficit previdenciário, refletindo a enorme informalidade do trabalho no campo. Em 2013, cerca de 59% dos trabalhadores rurais não tinham carteira assinada, e apenas 43,6% contribuiram para a Previdência social, percentual que caia para 5,1% nas atividades informais (dados do DIEESE).

Pela regra atual, que foi mantida pelo relatório, os trabalhadores rurais não assalariados (segurados especiais) são isentos de contribuição, e podem aposentar-se com 55 anos as mulheres e 60 anos os homens, desde que comprovem 15 anos de atividade rural. A proposta do governo aumentava o tempo de contribuição para 20 anos, e criava uma pequena contribuição previdenciária vinculada ao faturamento anual da unidade rural, que não poderia ser inferior a R$ 600 por ano (R$ 50/mês). Considerando a informalidade, a dificuldade de comprovação de tempo de serviço e de contribuição, e mesmo o baixo nível de renda de parcela relevante dos trabalhadores rurais, a proposta do governo pode ser considerada injusta, e viável apenas para os produtores rurais de melhor produtividade.

É necessário, contudo, deixar claro que benefício sem contribuição não constitui previdência social, como inclusive está definido no artigo 201 da Constituição Federal: “a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”. Não se trata, evidentemente, de abandonar à própria sorte os trabalhadores rurais idosos, que não puderam contribuir para o INSS durante sua vida ativa. Mas, neste caso, a medida deve ser descaracterizada como de previdência social, e considerada como assistência social, a ser financiada pela arrecadação tributária geral, e não pelo INSS, que se financia através da contribuição dos trabalhadores ativos. Pode parecer uma simples alteração contábil, mas é fundamental para delimitar o déficit da Previdência e explicitar as regras de contribuição e benefícios.

Assim, os trabalhadores rurais que não contribuiram para o INSS e são comprovadamente pobres e inativos, quatro milhões dos atuais 9,5 milhões de beneficiários, numa estimativa grosseira, deveriam sair da Previdência social e passar a receber benefício do BPC-Benefício de Prestação Continuada. Como este só beneficia os idosos a partir de 65 anos, teria que ser reformulado para a incorporação mais cedo dos potenciais beneficiários. Com isso, dobraria o número dos beneficiários do BPC, que atualmente alcança 4,5 milhões de pessoas ( sendo dois milhões de idosos), com a correspondente redução das despesas da previdência rural. O custo será praticamente o mesmo, considerandoque o benefício do BPC é igual a um salário mínimo, valor predominante na previdência rural. Mas a fonte terá que ser outra: não mais a contribuição dos trabalhadores ativos, mas sim a receita de tributos vinculados à seguridade social. O que, em grande medida, já ocorre hoje, uma vez que o déficit da previdência rural é coberto por recursos da seguridade social.

Com esta abordagem, faria sentido elevar a alíquota da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das empresas, como proposto pelo relatório de Samuel Moreira (de 15% para 20%), porque este tributo está diretamente dirigido ao financiamento da assistência social. Muito criticado pelo ministro Paulo Guedes, porque estaria financiando a Previdência social com imposto, esta proposta seria correta apenas se os trabalhadores rurais que não contribuem fossem transferidos para o BPC. Em termos contábeis, reduziria o déficit da previdência rural, com a transferência dos benefícios para assistência social. Evidentemente, o simples acréscimo no CSLL não será suficiente para bancar o total dos beneficiários que sairiam da previdência para a assistência social, que conta com outras fontes de recursos, grande parte dos quais tem sido utlizados para cobrir o déficit.

Para concluir a reflexão em torno da proposta do governo e do relatório em discussão na comissão da Câmara de Deputados, uma simples pergunta: por que um professor merece se aposentar mais cedo que um trabalhador da construção civil ou um motorista de ônibus? Condições de trabalho? Desgaste físico ou intelectual? A pergunta parece pertinente, principalmente se for considerado que a energia utilizada pelo professor é conhecimento (e não músculos e nervos, exigidos dos outros trabalhadores), energia que não se desgasta e, ao contrário, aumenta e refina com o uso. Conhecimento e vivência que se traduzem em melhor qualidade do ensino. Se a intenção é melhorar a educação, o caminho é outro: valorização e aumento dos salários dos professores, e não uma pretensa compensação numa aposentadoria precoce.