Fernando Dourado

Senhora Li.

I

Wu disse que fiquei corada quando o juzhang  Cheng fez a saudação de praxe no salão de banquete da prefeitura. “Para a camarada Li, hoje promovida a gerente de operações, tornando-se nossa primeira zong jingli. Que permita pois a nossas balsas transportar toda riqueza possível, para o bem dos que vivemos aqui no delta do rio da Virtude Suprema. Kampai“. Por que eu haveria de corar? “É que você bebeu maotaiirmã Li. Eu também fico assim quando sou alvo de um brinde, não há nada de errado nisso. E ser saudada pelo chefe máximo, é mesmo uma grande honra”. Assenti e deixei a vermelhidão de minhas bochechas para lá. É fato que os chineses han coram quando bebem. Acompanhei o resto da cerimônia como se não estivesse ali, e tentei entender de onde vinha um certo desconforto físico. Sentia-me estufada, como se tivesse comido um ovo de pata sem sal. Quase não fiz ginástica nos últimos dias.

Amanhã, pela primeira vez em muitos anos do porvir, piscarão em meu painel as luzinhas correspondentes a todas as comportas da bacia urbana, e também as do estuário – cujas eclusas são controladas por um joystick. Bastará um movimento com a ponta de meus dedos para juntar e separar águas lacustres, marinhas e fluviais. “Veja a honra que o Partido lhe dá, Li. Apesar de tudo, quanta distinção. Parabéns”. Não sei quem era aquele velho que saiu meio bêbado, dizendo palavras tão oblíquas. Talvez seja o chuzbang, o diretor do subdepartamento que foi morar em Hubei e que chegou mais cedo para as festas de Ano Novo afim de evitar o pico das tarifas aéreas. Dizem que é um grande pão-duro. Mas talvez tenha vindo especialmente para minha cerimônia, não sei precisar. Apesar do quê, avô caquético?, fiquei pensando. Sim, acho que sei o que ele quis dizer. Baixei a cabeça, fingindo-me de agradecida. Balbuciei com insinceridade xiè xiè. Que atrevimento.

Divido as pessoas entre aquelas que podem me ajudar e as que me são potencialmente prejudiciais. O velhote não se enquadra mais em nenhuma dessas categorias, o tempo dele passou. A caminho de casa, as lanternas piscavam à porta dos salões de massagem. A casa de chá estava aberta, mas não havia ninguém na varanda. Quem estavam esperando, gastando energia à toa? Às vezes queria ser como essas mulheres que saem das mercearias com pacotinhos de gengibre ou que vão ao abatedouro logo cedo, comprar ossos de porco para fazer um bom caldo para seus maridos. Mas o fato é que não sou uma delas. E chega de pensar nisso. Preciso perder um quilo, sinto-me pesada. Amanhã retomo os exercícios. E, er, san, si, wu…    

II

Tivemos mais um inverno ameno, excessivamente brando, o que não é comum em ano do Rato, segundo a avó. Na maior parte das precipitações, só caíram águas mornas em gotas gordas e houve pouca pesca – a crer no que foi publicado pelo kezhang das Estatísticas. O lado bom foi que não tivemos formação de placas de gelo, mesmo na semana em que desabou sobre nós toda neve do mundo, e um casal de pandas perdidos foi visto à porta da oficina mecânica do velho Tsu, o manco.

Agora tenho que pensar em achar uma casinha próxima da estação de trabalho porque temo pelos longos plantões que me esperam. Optei por vender o apartamento de minha juventude, onde bem ou mal construí meus caminhos, e em cuja cozinha relia noite após noite minhas anotações, tentando descobrir os atalhos para subir na vida. Vender e comprar, comprar e vender. O velho Lo, o do cavanhaque indecente, pode me orientar sobre isso. Posso acenar com o que mais gosta, e ele é até capaz de perder algum dinheiro na transação, só para me agradar. Azar o dele, sorte a minha – é isto o que conta. “Mesma cama, sonhos diferentes”, como reza nossa sabedoria.

Foi assim que liguei para a imobiliária. Ao telefone, fiz gracejo com o velho e aceitei o convite invariável para comer caranguejos apimentados com feijão preto. Fiquei repugnada ao vê-lo chupar as cartilagens com os lábios brilhando como se tivessem sido besuntados de laca, mas disse todo o contrário. “Gosto de quem come com gosto. É sinal de virilidade, avô Lo.” Ele me examinou com lascívia. Baixei a vista e ele pagou a conta com um sorriso nervoso, um ar de galo velho que se anima.

Depois ele me levou à Casa do Córrego. “Hum, já soube que foi promovida. Talvez melhor do que mudar de morada agora, seja bom momento de manter seu filho na mesma escola que, aliás, é muito boa. Não esqueça que lá ele já tem colegas há anos. Para ele em especial, isso será muito importante, dadas as origens confusas.” Fechei a cara, mas ele insistiu. “Permaneça onde está, faça um sacrifício e mais tarde o esforço compensará”. Detesto a barriga alta dele, aquela nudez sem pudor, o cavanhaque longo e ralo. Fuza, pensei. Pensei, mas calei. E disfarcei a irritação com um sorriso. “Obrigada por me ajudar a pensar tio Lo. Minha família agradece. Agora conte-me logo se por acaso arranjará um comprador para meu apartamento.” Rejuvenesci-o alguns anos naquele instante para contar com o empenho máximo do velho pervertido.

É claro que se pudesse, e se não precisasse dele, o apunhalaria ali mesmo, e deixava-o estirado na cama, com uma faca plantada no peito. Quem era ele para falar de meu filho? Acaso tinha algum laço de sangue comigo? Ele estava ali para se satisfazer e resolver meu problema. Sou uma chinesa han. Tanto a pele dele quanto os olhos amendoados atestam que é quase um uigur, perdido nesta parte da China. Prefiro que eu formule os problemas; e que ele responda pontualmente ao que eu perguntar. Não gosto de quem mistura os temas. Penso direto, mas não falo direto.

III

Hoje eu podia carregar o vão central com a água limpa do Panda Risonho que, a muitos quilômetros daqui, recebe indiretamente um braço de rio que é tributário do Ying, que por sua vez nasce do degelo da montanha do Corcunda, na bruma central, perto da terra do Grande Timoneiro, onde o tempero é ardido. Adiei o quanto pude o carregamento e dei vazão mínima à eclusa. O vão precisava estar cheio às 11:48 para a subida do Szechuan, carregado de ferro para as pequenas aciarias. Mas eu queria alimentá-lo com o rio da Grande Paz cuja água estava mais salobra. Assim eu manteria em equilíbrio as águas ruins da bacia, tanto quanto possível segregando-as das boas. É claro que esse procedimento contraria o regulamento e o bom senso, e vou até me proibir de pensar nisso para não sofrer punição.

A avó disse no casamento do advogado Wong: “Cuidado, Li. A cabeça precisa falar com o corpo, disso sabemos todos, mas também as duas bandas do cérebro precisam se conectar. Ou você não conhecerá paz de espírito ou reconhecimento. E estará condenada a ser esquecida por todos, como foi até hoje”. Enquanto ela falava, eu só pensava que precisava estar à altura do que meus superiores esperam de mim, e que não podia fazê-los desconfiar que eu tinha meus próprios critérios de operação das eclusas. Deixei a velha falando o que quis e repassei mentalmente minhas prioridades. Vender o apartamento (Lo), achar casa (Partido), cuidar da transferência da escola de meu filho (Tsao). O mais importante é nunca permitir que Lo e Tsao se cumprimentem numa reunião do Partido. Ah, e pretendo envenenar a avó, se ela não morrer antes. Como ousou me falar sobre as bandas da cabeça? Acaso sou um bago de lichia? O lugar dela é no crematório provincial. Opero eclusas, já disse. Cada coisa em seu lugar, cada um com sua atribuição. Eu formulo, os outros respondem.

IV

Foi pelas mãos de Tsao que fui a Pequim, na minha única visita à capital, há mais de quinze anos, quando estava meio sem rumo na vida. Naquela época, passaram-se três dias e duas noites até chegarmos lá. A parte final do trajeto, nós fizemos num caminhão, e sem a ajuda de Tsao, eu não teria travado os conhecimentos pessoais que fiz no grande congresso, onde farejei fortuna. Só havia uma esteira na casinha do hutong onde vivia a família distante dele, perto da praça Tiannamen. Acho que Tsao foi dormir no parque para que eu me sentisse à vontade ali. Bebi o bom chá daquela gente meio servil e deixei que pensassem que tínhamos alguma coisa, Tsao e eu. Era o que me convinha. Graças a ele, fiz guanxi com o Pequeno Mandarim, meu primeiro homem, dono de uma fala pausada e de um olhar que me fez sentir nua. Se Tsao soube de algo entre nós, não demonstrou.

Quando voltamos, depois de uma semana em que poucas vezes estive com ele na capital, continuou me chamando para o concurso de pipas e para comer carpa à beira da represa. Não pareceu ofendido com a humilhação que sofreu. Eu passei a dizer não. Não mais procurei-o por bom tempo. Desde então, vim trabalhar na gestão de Águas de Comércio. Para quê mais preciso de Tsao a essa altura? O que importa se ele passou sede para me dar água na estrada de pó? Afinal, é um inexpressivo professor de matemática. Sou assim. Se não me importo, não me esforço para fingir. “Vê-se que você tem sangue de Cantão. Vá ao templo, queime incenso”, dizia minha mãe que me conhecia bem. Ser chamada de egoísta não me ofende. Não sei o que é isso, mas não saberia ser outra coisa. Eu, Li. Sou assim, nos damos bem, Li e eu, e separamos bem águas e compartimentos.

V

Não tardará e teremos que trabalhar à noite para efeitos de ajustes de turnos. E depois, o trânsito está se intensificando, como tudo na China, e eu preciso dormir. Isso é talvez o que mais me aflija. O pagamento das horas extras é bom e nada me impediria de ficar na cabine iluminada na escuridão, tomando meu chá e ouvindo rádio. Mas incomoda não poder ver a cor das águas no breu. Mesmo com luz artificial, os potentes monitores não captam os tons da massa líquida. E se, espero que não, eu misturá-las indevidamente? Wu falou: “Quando você mistura água da Alegre Andorinha com a do estuário, ou mesmo com a do Panda Risonho, você cria um mundo melhor, irmã Li. Você é uma facilitadora de tráfego da navegação, mas também é uma alquimista. A seu modo, é uma pequena deusa que pode tornar a água suja menos tóxica, e a água cinzenta mais azulada, dotando-a de vida. Assim fazendo, você fortalece a fauna. Isso salvará os bichinhos no dia em que as águas transbordarem e a situação sair de controle. Porque uma hora isso vai acontecer. Assim é a vida”. Odiei-a por ter dito aquilo. Não era atribuição dela. Chamar-me de irmã não lhe dá direito a tudo.

Wu foi além do tolerável. “Li, grande irmã, tente demonstrar interesse pelo outro”. Então pegou-se a me ensinar como entonar melhor o meu como vai? Abrindo aquela boca de pardal faminto, fechou os olhos e trinou ni hao ma? E me pediu para alongar: nii haao maaaa?, como faz um gweilo. Irritada, respondi em cantonês: “Bu hao, bu hao. Não sou um bárbaro do nariz grande”. Mas me contive até mesmo quando ela disse. “Você não sabe sequer disfarçar a falta de interesse que lhe inspira o outro. A mim, por exemplo, você só tolera porque tomo conta de seu filho quando convém”. Pergunto e não acho resposta: quem é ela para dizer isso, exalando aquele cheiro de quem comeu arroz dormido. Hao, hao, hao – disse para encerrar o assunto.

VI

Tínhamos estreado iluminação nova. “Foi o mesmo pessoal que sinalizou a pista do aeroporto de Xangai”, disse o engenheiro de mau hálito. Na segunda tarde de operação, meu filho sofreu um acidente. Caiu de uma castanheira e se ouviu o baque da cabeça contra o chão num raio de duzentos metros da árvore. Ele não chorou na hora. Desesperada, sem saber se ele ia despertar um dia do coma a que sucumbiu apesar dos sopapos que lhe dávamos, liguei para Tsao. O pai de meu filho é de Pequim, mas agora vive em Shenzen e tem outra família. Ignora-nos, mas merece meu apreço. A família dele me despreza, mas isso não me importa. Na posição dele, eu faria o mesmo. Sou assim. Mas Tsao está sempre à mão. Não misturo sangues.

Agora, contudo, dada aquela circunstância lastimável, só me restava apelar para ele que chegou preocupado, dizendo que chamaria o médico das altas patentes. Ao vê-lo, chorei e fiz de conta que éramos um só, exatamente como ele uma vez diz ter se sentido na estrada em que me deu a última garrafa de água, no dia em que aspiramos pó, a caminho de Pequim. “Você sabe que tem uma parte sua nessa história, irmão Tsao.”

Não misturo qualquer água, não misturo qualquer sangue. Opero eclusas. Deixei-o no hospital e dei uma passada rápida no trabalho, com medo de que alguém importante me procurasse. De lá, liguei para Wu e chorei. “Prometo que vou misturar todas as águas. Que vou permitir a passagem de peixinhos de água doce para a água salgada e vice-versa, irmã Wu. Mas vá ajudar meu filho”. Ela foi correndo. Preciso perder mais meio-quilo: Liu, shi, ba, jiu, sure… 

VII

Meu pai foi para os campos de chá em 1969 e só saiu de lá seis anos depois. Reeducado, dizia-se. Laodong jiaoyang, era o nome dessa prática nos anos de Mao. Minha mãe sacrificou duas meninas à espera de um varão, mas houve denúncia de aborto na danwei e meu pai precisou dar dinheiro ao diretor, que achou vestígios de feto à beira do rio, que não o levou por puro azar. Então vim eu ao mundo. Falávamos cantonês e eu odiei quando o mandarim se tornou obrigatório na escola. Meu pai era de Fujian, e conversava em dialeto hakka. Acho que não se devem misturar as pessoas que falam línguas diferentes porque é inevitável que tenham sangues diferentes.

Na festa de Wong, disse à avó que havia impureza no ar. Que poderíamos ser castigados. A festa deveria ser só para a família, mas tinha gente do Partido, da municipalidade e do distrito industrial. “Por que você não vê a China como uma só família, como faz a maioria?” Olhei-a com espanto. “Família é família. Minha família é mais importante do que todas as famílias juntas. E meus interesses são soberanos”. Odeio esse resquício de comunismo que remanesce na cabeça dos velhos. Gongchanzhuyi , como ainda chamamos. “E dentro da família, só considero os que falam cantonês – logo os familiares de minha mãe”. Ela me olhou com espanto. Por que? Ora, opero eclusas. Abro e fecho comportas. Seleciono o casamento ou a segregação das águas – é o melhor do trabalho. Sou assim. No mais, deixo o regulamento pensar por mim. Pelo menos até onde me convém.

VIII

Vendi o apartamento, comprei a casa e meu filho voltou a falar, apesar de ser meio esquisito. Achei na internet um curso “Como aparentar dar tudo de si sem realmente precisar nada dar”. Em cantonês, soa melhor e é quase engraçado. Passado o segundo ano da promoção, pouco a pouco melhoro. Aprendi que não fere o regulamento tirar água do rio do Porco e deixá-la no reservatório do Sol, também conhecido como o número 4. Não posso mantê-la ali por muito tempo porque ele recebe muitos dejetos do matadouro suíno e pode exalar cheiro, a depender do vento. Pouco a pouco, mantenho a vida como quero, em compartimentos estanques. As balsas de grande porte terminam atrapalhando a mistura ideal. Pois, a depender do calado, tenho que abrir a comporta principal. Tsao, o idiota, a chama de Amor. Rio de tanta pieguice e ridículo.

Ontem senti uma forte contrariedade. Desde o acidente de meu filho, a cretina Wu, que eu julgava minha amiga, tem saído com ele. Sim, com Tsao. São vistos juntos toda semana na casa de chá. Escrevi-lhe uma mensagem. “O que mais me entristece é saber que você já estava engatilhando com Wu quando eu ainda me recuperava do choque do acidente. Por que tentou uma reaproximação comigo, falando dos tempos que fomos a Pequim? Você sempre tem uma carta na manga. Sua paixão, seu amor, sua devoção a mim e ao Partido são mais mentira do que realidade. Me dói ver isto”. 

Para o perfeito idiota que é, até que foi rápido. “Não tentei reaproximação com você. E o Partido não está em causa. Nós nos reaproximamos naturalmente, como foi de regra durante anos, atendendo a um interesse pontual seu. Aliás, nunca me furtei a meus deveres de amigo e já coloquei em risco minha paz e reputação para fazer-lhe companhia na hora certa. E até para ajudá-la a superar momentos difíceis. Mesmo porque estar com você nunca foi para mim um sacrifício”. 

Enfim, nada mais tenho a tirar dele. O que importa isso agora? Destruí a mensagem.

IX

A sindicância começou no dia seguinte ao acidente com a balsa Amigos do Povo, apenas 24 horas depois de meu afastamento cautelar.

Foi assim. A primavera tinha chegado mais cedo e havia uma enorme leva de turistas de Kunming nos feriados. A balsa pediu passagem às 16:13 hs, avisando que estaria no ponto de travessia dentro de mais 35 minutos. O reservatório do Sol estava a ponto de sangrar, mas por uma razão mais forte do que eu, não abri-o. Preferi dar vazão total à Coelho Feliz, esperando que o leitor digital de nível autorizasse a passagem. A água ali estava escura e revolta, e achei que impressionaria mal os turistas fazê-los navegar sobre ela. Pelo menos foi isso que admiti para mim mesma. Então autorizei o timoneiro da Amigos do Povo a avançar. Foi fatal. O movimento fez com que despencassem de nariz de mais de dez metros de altura (12 metros e 14 centímetros, eles precisaram até nos noticiosos nacionais) no canal quase vazio. O prejuízo material foi grande, mas o pior foi o alto número de feridos, e a morte das velhotas – que vim a saber que eram do Vietnã. Por que tanto estardalhaço, se nem chinesas eram? Fuza.

A primeira a falar na audiência foi Wu. Não levantei a cabeça. “Sou amiga de Li desde a adolescência. Chamo-a de irmã. É competente no que faz. Mas não consegue ter ligação emocional com as pessoas. O mundo dela é ela. Não sei se o fato de ser manipuladora é falta grave nem estou aqui para julgar. Li vem de uma infância difícil e sempre teve problema identitário. O prejuízo de imagem que trouxe a nosso turismo pode ter sido grande. Mas talvez ela não se importe. Gerenzhuyi – individualismo imoral – é o que não lhe falta. É tudo o que tenho a dizer”.

O segundo foi Tsao: “Li não sabe o que é a conexão genuína, daí não poder ser uma boa cidadã. Deploro pelo filho que teve. A condição primária para que se interesse por alguém, é o interesse escancarado. É, ademais, saber que essa relação é proibida, e que ela está traindo uma terceira pessoa inocente. A segunda é que esteja embriagada de maotai, se me permitem assim dizer. O ai – o amor genuíno – lhe é estranho. Li usa as pessoas abertamente para que as peças se encaixem no figurino de sua conveniência. Se ela fez isso comigo, o que não dizer de como se sente o camarada Lo, um autêntico shi shen – um perfeito cavalheiro chinês?”

O velho Lo foi o último a falar ao juiz de instrução, também dirigente do Partido.

X

“A zong jingli Li poderia ser uma pessoa comum, não estivesse por trás de um grave acidente que faz mal à imagem de todos nós que vivemos na bacia hidrográfica da Virtude Suprema. A camarada Li representa sob mais de um aspecto o grande fracasso que foi a política de um filho por casal, a jihua shengyu.  Por excesso de mimos, dissociou-se do papel de integradora que lhe deveria assistir como filha, mãe, cidadã e até concubina. Li falhou flagrantemente na função de harmonizadora que assiste às mulheres de todos os tempos, para fazer do nosso um mundo melhor. A história da China não nos pertence como atores individuais, mas pertence a todos nós como peças de um mosaico milenar. Se todo indivíduo se comportar como o centro do Império do Meio, perdemos nossos nutrientes, que se espalharão na embocadura do mar.”

O velho Lo pediu um minuto para se aliviar no banheiro. A sala permaneceu em silêncio.

“Peço desculpas, a saúde nem sempre está de nosso lado e o próprio corpo nos emite ameaças. Mas retomo de onde parei. Li só tem olhos para o egoísmo e a manipulação. Para a satisfação de seus interesses, sem estabelecer conexão com o que ela não considere seu universo de pertencimento, que é quase nulo. Ela ignora um pilar do mundo a que pertencemos que é o bao – os créditos sociais que acumulamos uns perante os outros. Para ela, eles só trabalham em senso único. O dela. Ela maximiza tudo o que pode haver de negativo em quem lhe traz algum bem, e só valoriza quem a trata como a serpente que é. Li minimiza as boas passagens que a uniriam aos que lhe fizeram o bem. Bem este de que no fundo, não se acha digna. Trata-se de perversidade seletiva, de busca de pretextos para o não-vínculo. O mundo para ela é um imenso palco para baochou – onde se operam vinganças e pequenas vendetas, ditadas pelo voluntarismo”.

A sala parecia sopesar a fala daquele homem de quem se sabia tão pouco, apenas o bastante para temê-lo e respeitá-lo. Já fora autoridade grande em Xinjiang, uma espécie de prefeito de Urumqui.

“E já que ela diz confiar tanto na junta partidária para esclarecer os fatos, sugiro deferimento ao parecer do médico que a considera inapta para funções cidadãs, e, portanto, inadequada para o serviço público. Em tudo o que diz respeito ao universo afetivo e social de nossa comunidade, Li faz força para amesquinhá-lo e diminui-lo. Salvo em caso de ter interesse em viagens, companhia, sexo, promoção, consolo, orientação e afins. Má amiga, todos aqui sabem que não devemos fechar portas quando o que está em jogo são os deveres de amigo. No mais, ela executa seu clássico que é descombinar o combinado, alegar melindres de conveniência e fraudar liturgias de consideração. Daí que ninguém se interessa por ela sem um plano de contingência em mente. Assim faz ela, assim ela recebe de volta. A zong jingli Li tem aquilo que em nossa língua os jovens chamam de ziyou, o que as gerações anteriores condenam. Afinal, individualismo e egoísmo serão sempre componentes estranhas à China de sempre.”

Li sorriu com escárnio. E imaginou quem estaria naquele momento assumindo seu painel luminoso, abrindo e fechando eclusas. Wu tinha razão. Mais cedo ou mais tarde, as águas se misturariam. Quer ela quisesse quer não.

*