Helga Hoffmann

O acordo Mercosul-União Europeia deve ser comemorado. Mas ainda terá que ser analisado em detalhe. Sobretudo porque depois do primeiro esboço ainda há muito por fazer até que possa ser aproveitado pelos produtores e consumidores dos dois lados do Atlântico. Não é simplesmente um acordo comercial, e mesmo acordos comerciais hoje em dia já não são mais apenas sobre tarifas aduaneiras.

A informação oficial disponível mais completa por ora está em 17 páginas publicadas 1 de julho de 2019 em Bruxelas, “Novo acordo comercial UE-Mercosul: O acordo em princípio” (“New EU-Mercosul agreement. The agreement in principle”).[1]Explicitamente não se trata de um texto legal, e sim, um resumo dos resultados das negociações da parte comercial do “Acordo de Associação UE-Mercosul” alcançados em 28 de junho. O “acordo em princípio” terá que se traduzir nas ofertas de acesso a mercado que virão de cada uma das partes envolvidas, mais de 30 países. Cada acordo de acesso a mercado, específico, terá que ter seu próprio texto legal, o que deve ser um processo de negociação que não tem necessariamente data final, já que sempre pode surgir alguma nova oferta de acesso a mercado partindo seja de países que integram o Mercosul, seja de qualquer um dos 27 países que integram a União Europeia.

Resultados concretos na exportação e na importação de produtos específicos ainda dependem do prosseguimento de negociações. Não dá ainda para comemorar a exportação dos premiados queijos mineiros para a França ou da maravilha que é o chocolate Dengo para a Bélgica. Nem festejar que um bom vinho francês ficará mais barato nos nossos restaurantes. Mas o Novo Acordo União Europeia-Mercosul está sendo devidamente comemorado no Brasil. O seu impacto é positivo desde já, considerando que “expectativas” é variável nada irrelevante na análise econômica. O Secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Marcos Troyjo, de fato o principal e competente negociador brasileiro desse novo acordo, acha que não vai demorar tanto assim para a economia sentir os efeitos: “as empresas já colocarão no seu radar” a abertura das fronteiras. Oxalá. E Troyjo lembrou que estão em negociação novos acordos com Coreia do Sul, Canadá e Japão.

“Vai demorar um tempo ainda, mas do ponto de vista da criação de um clima positivo, de expectativas quanto à nossa capacidade de nos conectar com o mundo, é muito importante. Foi muito positivo, como será positivo o ingresso do Brasil na OCDE.” Verdade. E quem disse isso não foi o atual Ministro da Economia Paulo Guedes, que vem martelando há tempos que o Brasil precisa se abrir ao mundo, e sim, o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo” (p. B5, 07/07/2019).

Será que o Brasil vai finalmente se livrar da crença no famoso “modelo de substituição de importações” dos anos 1950s? A própria CEPAL (a Comissão Econômica e Social da ONU para a América Latina e o Caribe) faz tempo mudou o seu modelo analítico para “regionalismo aberto”. Os documentos que marcam a mudança da CEPAL são de meados dos anos 1990s: “Regionalismo Abierto en América Latina y el Caribe”, 1994 e “América Latina y el Caribe: Políticas para mejorar la inserción en la economia mundial”, 1995. É verdade que já houve crítica acadêmica de que a mudança foi mais p’ra “regionalismo” do que p’ra “abertura”, e que veio tarde, pois já havia na América Latina um movimento geral de redução de tarifas de importação desde meados dos 1980s, resultantes das negociações da Rodada do Uruguai da OMC.

Argentina e Brasil foram, desde o início, os que mais contribuíram com argumentos teóricos e lobbies de indústrias para as políticas protecionistas que derivaram do “modelo de substituição de importações”. Países com população pequena nunca tiveram (não puderam ter) tanto entusiasmo por um modelo de mercado com produção autárquica que fosse superior à economia de subsistência. Mas o Brasil sempre teve, a favor de alguma autossuficiência, o seu tamanho, recursos naturais pródigos e população grande, o que funcionou por certo tempo, e permitiu que apoio do governo fosse vantagem competitiva. Parafraseando Pedro Malan, se inflação baixa não está no DNA do Brasil, protecionismo está, sim, no DNA do Brasil.

Dessa forma, o acordo Mercosul-União Europeia é só um passo, ainda que importante, para que o Brasil saia do isolamento em que já nem mesmo o tamanho lhe garante vantagens, um isolamento que apenas o prejudica no crescimento econômico, no investimento, na transferência de tecnologia, na produtividade. Hoje em dia, cada vez mais, as empresas operam no mercado mundial, e não apenas no mercado nacional. Vale para empresas em qualquer parte do mundo. Claro que há interesses conflitantes, dentro do Brasil, tanto quanto nos demais países envolvidos. O processo de ratificação pelos parlamentos vai mostrar que, desgraçadamente, ainda há político que classifica redução de tarifa de importação de entreguismo ou que rotula acordos de cooperação como “entrega de controle do país”.

“O Acordo em Princípio” cobre 17 capítulos que permitem ter uma ideia das potencialidades que se abrem.

  1. Comércio em Bens. É o capítulo mais extenso, trata de produtos industriais (UE eliminará tarifas sobre 100% dos produtos industriais em 10 anos, e o Mercosul promete liberalização para mais de 90% dos produtos, com transição especial para carros e autopeças) e de produtos agropecuários (em que serão eliminadas tarifas sobre 93% dos produtos agrícolas e de alimentos da UE, e esta promete liberalizar 82% de suas importações agrícolas, estabelece tarifas e quotas especiais para carne, açucar, etanol, arroz, mel e milho, e cotas e tarifas específicas recíprocas para queijo, leite em pó, fórmula infantil). Também trata das questões burocráticas de licenciamento, subsídios, regras de competição. Há um anexo especial sobre vinhos e bebidas alcoólicas, e outro sobre veículos a motor em testes e certificados técnicos.
  2. Regras de origem. São regras importantes em qualquer tratado de livre comércio, para definir a territorialidade, quando um produto é integralmente obtido em dado território, quais as operações que não conferem origem, e quais operações são permitidas para produtos que se originam em terceiros países. Há regras gerais normais e haverá exceções só para levar em conta a natureza de algumas poucas matérias primas exportadas para a UE.
  3. Facilitação de Comercio. Documentação, rapidez na expedição e liberação de bens nas aduanas. Assistência técnica nesse campo, inclusive digitalização.
  4. Remediação comercial. Também é algo normal em acordos comerciais e nas regras da OMC. É uma salvaguarda bilateral ou multilateral no caso de uma liberalização causar um prejuízo repentino muito elevado, algo como um surto destrutivo de importações em dado país. Já se advertiu que pode ser uma alegação para protecionismo. Mas registre-se que esse direito de salvaguarda é sempre bilateral.
  5. Medidas sanitárias e fitossanitárias. A rigor não há novidade nesse capítulo. São padrões que já estão em vigor, negociados há tempos na OMC, que o acordo UE-Mercosul explicitamente reafirma. Há uma frase evidentemente de marketing interno da União Europeia, de que “os padrões sanitários e fitossanitários da UE são inegociáveis”.
  6. Diálogos. Um capítulo sobre cooperação bilateral e multilateral em áreas como bem-estar dos animais, biotecnologia, segurança dos alimentos, luta contra a resistência anti-micróbios, observando-se que em todas essas áreas já existem órgãos científicos internacionais e alguns tratados internacionais.
  7. Barreiras Técnicas ao Comércio. As partes se comprometem a cumprir as disciplinas já estabelecidas na OMC e nas organizações internacionais que estabelecem padrões (ISO, IEC, ITU e Codex Alimentarius), e reiteram a necessidade de transparência.
  8. Serviços e estabelecimento. Aqui entra a liberalização de investimentos, provisões para o movimento de profissionais, estabelecimento de diferentes serviços (postais, transporte marítimo, telecomunicações, financeiros, comércio pela internet). Ao que parece a UE tem interesse especial no acesso a mercado em serviços.
  9. Licitações e compras governamentais. Aqui há promessas recíprocas de não-discriminação e de processos de licitação mais transparentes e justos. Esse é um mercado que talvez se amplie quando o aperto fiscal dos países do Mercosul der uma trégua. UE e Mercosul reafirmam o compromisso de cumprir o capítulo correspondente das regras da OMC. E a UE ofereceu ao Mercosul reciprocidade no nível central.
  10. Compromisso de garantir competição, regulação anti-truste e tratamento igual das companhias de ambos os lados.
  11. Subsídios. Estabelece trabalho conjunto e troca de informações e transparência em sistemas de controle de subsídios.
  12. Empresas estatais, empresas com privilégios exclusivos e especiais. Exige que estatais atuem no comercio de acordo com considerações comerciais de sua própria atividade. Ao mesmo tempo admite exceções para concessionárias de serviços públicos.
  13. Propriedade intelectual, inclusive indicação geográfica. Aqui há bastante detalhe nos planos para melhorar a proteção da propriedade intelectual. Discute-se copyright, marcas, design, patentes, variedades de plantas, segredos comerciais. De novo há referência ao cumprimento de acordos internacionais que já existem, inclusive na OMC, e o problema de garantir o seu cumprimento. E há uma ambiciosa cobertura de “indicações geográficas”, com o fito de proteger as “genuinas” indicações geográficas de alimentos, vinhos e bebidas da UE e separá-las das “não genuínas”, a ponto de proibir expressões “espécie de”, “tipo”, “ao estilo de”, “imitação”. Em tese um campo aberto para exportarmos nossas próprias indicações geográficas. E temos muitas de excepcional qualidade. Falta a organização para exportar.
  14. Comércio e desenvolvimento sustentável. Igualmente uma discussão antiga na OMC e na multiplicidade dos acordos multilaterais ambientais. As partes se comprometem a que mais comércio não se dê às custas do meio ambiente ou de piora nas condições de trabalho. Já é tempo de o Brasil sair da defensiva nessa área e mostrar o quanto, na comparação, a nossa produção e nossos produtos são “ambientalmente corretos”. E nem é novidade que às vezes alegações ambientais são o pretexto do protecionismo. Será preciso trabalhar com o mecanismo de resolução de disputas especificamente estabelecido para esse capítulo.
  15. Transparência. Já virou a ladainha de qualquer tratado. As partes reconhecem que o ambiente regulatório de cada uma delas pode ter impacto sobre o comércio.
  16. Pequenas e médias empresas. Reconhecimento de que estas têm mais dificuldade de participar no comércio e no investimento internacional. Cada parte terá na web um site específico com informações de acesso a mercado relevantes para pequenas e médias empresas.
  17. Resolução de disputas. Algumas regras de procedimento para o estabelecimento de um painel de arbitragem, em ultima instância.

[1]http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2019/june/tradoc_157964.pdf