Elimar Pinheiro do Nascimento

A Fundação Astrogildo Pereira organizou em São Paulo no dia 24 de agosto – aniversário do suicídio de Vargas – um seminário de titulo: Os desafios da Democracia, com quatro mesas, reunindo o tema central e adjacências fundamentais. Assim, a primeira rezou sobre os desafios da democracia, a segunda sobre o desenvolvimento, a terceira sobre desigualdade e inclusão social e, finalmente, a última sobre sustentabilidade. Além de exposições interessantes e provocativas, o seminário destacou-se pelo clima de tolerância e diálogo, peça rara hoje no País. Aqui não faço uma síntese das exposições e debates, mas sintetizo minha visão sobre a temática.

Quando se compara o cenário internacional de hoje, do ponto de vista da democracia, com 10 anos atrás, não há como não se preocupar. A democracia parece ameaçada, e não apenas no Brasil. Esta ameaça na realidade é de duas ordens. A primeira é mais visível, porém menos importante, e pode ser denominada de ativa: o crescimento de forças conservadores autoritárias, xenófobas e mesmo pró-fascistas. A segunda é menos visível, passiva, no entanto mais preocupante: a incapacidade crescente dos regimes democráticos em responder às demandas da população. O que acarreta a perda da legitimidade e é bem mais grave do que o crescimento de forças adversas, que não teriam futuro caso os regimes democráticos conseguissem ser eficientes, entregando aquilo de que a população necessita: segurança e infraestrutura em alguns locais, proteção social e saúde em outros, emprego em praticamente todos. Aparentemente, a democracia sofre de um envelhecimento precoce.

O levantamento 2017 Democracy Indexmostra um pequeno recuo do mundo democrático. 89 nações receberam notas piores do que em 2016, e apenas 27 conheceram melhora.  Em 2017, 76 países podiam ser considerados democracias plenas ou falhas, em 2010 eles eram 79.

O crescimento de forças de direita autoritárias e negadoras dos direitos humanos é notório. Desde 2017 os partidos de direita são maioria na Áustria, assumindo o poder. A Dinamarca desde 2015 é governada por uma coligação de centro-direita. A Finlândia, a Itália e a Hungria têm, igualmente, governos de direita. O Partido do Progresso, de direita, participa do governo da Noruega. PIS, um partido de direita, governa a Polônia. Na Suíça, a direita é dominante no parlamento desde 2015. Erdogan na Turquia assume uma posição populista cada vez mais intolerante com seus adversários. As eleições de 2017 na Alemanha, França e Holanda derrotaram a extrema direita, que, no entanto, cresceu, tornando-se a segunda força politica. Nos Estados Unidos e no Reino Unido a direita chegou ao poder. A América latina, nos últimos cinco anos, viu a direita chegar ao Poder na Colômbia, Peru, Equador, Chile, Paraguai, Argentina e Brasil. As exceções são o Uruguai e a Bolívia. A Venezuela deixou de ser um país democrático, com um governo autoritário e corrupto, envolvido no tráfico de drogas.

As razões do crescimento da direita são de ordem econômica, com os deslocamentos provocados pelas inovações tecnológicas e a globalização, e cultural, com o crescimento da migração e as ameaças à identidade dos grupos economicamente dominantes.

Cada país tem suas razões peculiares para assistir ao crescimento de forças que comprometem o desenvolvimento da democracia. Mas, no geral, há um crescimento da insatisfação com a democracia liberal, sobretudo com o crescimento da desigualdade e a perda de perspectiva de futuro por parte da população. A velocidade das mudanças provindas das inovações tecnológicas, aparentemente, com o crescimento das incertezas, aumenta a insegurança das pessoas que não conseguem mais visualizar o futuro. E sem uma perspectiva de futuro, o presente é sempre angustiante.

Nessa situação, simplificadamente exposta nas linhas anteriores, erguem-se dois desafios aos que acreditam na democracia, pois seu esgotamento demanda uma dupla recriação. O primeiro desafio é quanto à forma de representação, pois os mecanismos pelos quais a representação se materializa pedem uma renovação. A forma partido parece não conseguir mais desempenhar o seu papel de representar interesses de grupos sociais significativos no âmbito da sociedade. Em todo o mundo aumenta o leque partidário, fragmentam-se os mecanismos da representação. Partidos tornam-se legendas, perdem glamour e atratividade. O segundo desafio é o de recriar a forma de representar. O Parlamento, com suas pompas, sua burocracia, sua lentidão, não consegue criar procedimentos que alimentem a coesão social. Nem os poderes executivos, que, eleitos por minorias, governam com minorias ainda menores. Como diz Eric X. Li, os processos eleitorais tornam-se um circo dos horrores. Os eleitores, em muito lugares, em minoria, votam e pouco depois se arrependem, e os eleitos governam com apoios minoritários. Quatro ou cinco anos depois, tudo recomeça, os cidadãos são chamados novamente às urnas para votarem, e logo depois se arrependem. E com dois agravantes novos. O jogo eleitoral é cada vez mais manipulado por meios técnicos nas redes sociais. E seus resultados desvirtuados. Os governos, nas suas três instâncias – Executivo, Legislativo e Judiciário – são cada vez mais corruptos. Tudo isso contribui para a perda de legitimidade dos regimes democráticos.

Assim, a crença no fim da História com a vitória dos países democratas sobre os regimes socialistas, com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, mostrou-se uma quimera. Uma nova alternativa ergueu-se, com resultados surpreendentes. Enquanto o mundo ocidental, depois dos fantásticos anos 1990, ingressou em uma perda crescente do dinamismo econômico, a China continuou pujante, galgando o segundo lugar no ranking do PIB. Ao longo de mais de 40 anos de crescimento econômico contínuo, tornou-se “a fábrica do mundo”, com um parque industrial invejável, uma urbanização acelerada e a maior redução de pobreza. Tem, assim, o regime político de maior adesão junto a sua população, segundo institutos de pesquisa ocidentais. E uma população com a melhor expectativa de futuro. De maior poluidora do mundo, a China, aos poucos, arrisca tornar-se a maior referência de práticas sustentáveis. Seu sistema de planejamento permite-lhe alocar seus investimentos nos setores de maior futuro e maior competitividade mundial.

Há, ainda, um outro problema estrutural. A democracia liberal, restrita ao quadro nacional e prisioneira da necessidade de reprodução em tempo curto, não tem mecanismos para enfrentar problemas globais e de longo prazo, como as inovações tecnológicas e a crise ecológica. Esta tende a agravar-se, e muito, nos próximos anos, exigindo medidas mais drásticas e antipopulares, que os governos democraticamente eleitos não terão coragem de tomar.

Finalmente, as tentativas de enfrentar o problema com mudanças nas regras do jogo que regem a ascensão ao poder, como se faz no Brasil de forma frenética, não resolve o problema. Afinal, este não existe porque não temos a forma parlamentarista de governo ou porque não utilizamos o sistema distrital puro ou misto no processo eleitoral, ou ainda, porque não temos a candidatura avulsa. Outros países têm estas coisas e conhecem crises similares. O que mais fizemos, desde a democratização na década de 1980, foi experimentar normas eleitorais distintas. No próximo ano tentaremos mais uma vez, impedindo os partidos de se coligarem e tentando restringir o seu número no parlamento[1]. Porém não há chance de resolver o desgaste das instituições democráticas entre nós. O problema não é de forma, mas de conteúdo. A população cada vez mais acredita menos em instituições corruptas e soberbas como as nossas. A democracia liberal não sobrevive, com sua incapacidade de responder às demandas mais prementes da população, agravadas com o quadro de recessão mundial que parece desenhar-se no horizonte imediato. Foi em contexto semelhante que ela sucumbiu ao fascismo nos anos 1930. E o fez porque as forças democráticas não souberam unir-se, nem a reinventar.

[1]Isso, se os pequenos e médios partidos não conseguirem mudar a legislação atual e que deve vigorar no próximo pleito.