Tudo como dantes no quartel d’Abrantes. Pesquisas recentes, de fins de 2023, dão conta de que os eleitores permanecem colados aos votos que elegeram Lula e aos votos que tornaram Bolsonaro o segundo mais bem colocado nas presidenciais. Após um ano, não se dissipou a fidelidade canina a crenças, desejos e visões de país. Na qualidade de não especialista e de apenas cidadão, permito-me abominar qualquer complacência que teime em igualar Lula e Bolsonaro, por menos que possamos gostar de Lula ou por mais que se deva criticá-lo. Essa equação não funciona, uma vez que Jair Bolsonaro é sabidamente um extremista, o que Lula, convenhamos, nunca o foi. No entanto, por uma injunção digamos “linguístico-formal”, a equiparação de ambos como líderes parece inevitável. Será? Será que não há nisso um velado engano ou uma intencional postura? Muita gente, até onde observo, embarca nessa canoa furada.

Nunca será demais (embora boa parte da mídia o evite) apontar que numa das pontas da polarização o que nos espera é um projeto extremista e distópico, que extrapola o campo democrático, rasga as regras do jogo e trata os adversários como inimigos a serem eliminados.

Com a alegria das forças democráticas, as urnas abertas de 2022 também trouxeram a tristeza de um Brasil que apostou fortemente no modelo parafascista e autoritário de Bolsonaro, com todo o seu evidente desprezo pelo próprio povo, fruto, como se sabe, de sua psicopatológica e neuronal falta de empatia. Desprezo este escrito na sua fisionomia rancorosa e em seus gestos e palavras vulgarmente tóxicos. Se, como escreveu Guimarães Rosa, “Todo soldado tem um pouquinho de chumbo”, Bolsonaro, ex-soldado paraquedista, é todo de chumbo. E chumbo grosso. Manipulador de todos os medos do imaginário brasileiro, ele projetou sobre a “pátria amada” uma divisão continuada e insana, além de um discurso de ódio e de exclusão, cujo fim último seria uma guerra civil com ele, Jair, posando de salvífico general. 

Dessa forma, o quadriênio bolsonarista não foi mais que um governo voltado para a perpetuação do próprio poder. Nem a pandemia, que poderia ter sido “a manteiga no focinho do gato”, salvou as aparências. Com a proximidade do julgamento das urnas, os escândalos se multiplicaram em todos os níveis. O que viram de ganho em tal governo ou desgoverno? Tão somente, no plano dos afetos e do imaginário, o fortalecimento de pautas supostamente “conservadoras”, na verdade pautas extremamente reacionárias, negacionistas e obscurantistas. Dispensável dizer que pobreza e desigualdade social sempre estiveram fora da agenda. Por medo do “oitenta”, muitos ficaram no “oito” e, assim, mesmo sem concordar “in totum”, tornaram-se cúmplices do infame 8 de janeiro. Mas o oito já era oitenta! Como seria diferente? 

Concordo com o Prof. Conrado Hübner Mendes:  o “8 de janeiro foi contido, não derrotado”! O docente de Direito Constitucionalista da USP, em seu artigo de 11 do corrente, na “Folha de S.Paulo”, analisando as falas das autoridades no ato que marcou o aniversário de um ano do fatídico marco cronológico, bem observa: “A verve triunfalista e abstrata dos discursos esconde o que quer e revela o que não quer: a punição de gente poderosa e a prevenção de novas tentativas não só não começaram, como já parecem estar fora de cogitação. Os sinais e evidências são diversos”. Na mesma linha, o filósofo Vladimir Safatle pontuou numa rede social: “As forças da extrema direita continuam orgulhosamente atuantes, seus eleitores continuam no mesmo lugar”. Ou seja, o “oitenta” nos espreita sob a aparência de normalidade. Sem punição, com anistia e dona sabe Deus de quantos milhões de votos no País, a extrema direita tem razões para comemorar e seguir adiante impunemente.

Para concluir, é preciso dizer que os diagnósticos abundam, e muitos, à falta de imaginação e boa hermenêutica, ficam num círculo de giz de prender peru, requentando e aplicando pomposas teorias. Para se vencer a polarização, que é burra e empobrecedora, serão necessários prognósticos e diálogos, soluções políticas criativas e verdadeiro espírito crítico, além obviamente do rigor e da compreensão da lei, ou seja, cadeia para todos e não apenas para peixinhos de água rasa. A justiça brasileira precisa livrar-se de sua eterna navegação de cabotagem.