Sei de cor “o poeta da cor”, como o chamou em remoto, mas atual e belíssimo ensaio, o grande cronista pernambucano Renato Carneiro Campos. Sei de cor este poeta nascido no Recife há 90 anos. Nascido e aos 31 anos tão cedo morto, também vítima, como outro celebrado poeta do Recife, Austro-Costa, de um acidente causado por um ônibus numa época em que o trânsito, como a própria cidade, ainda não entrara em colapso. Entre a data do acidente, 28 de junho de 1960, e o dia da morte, 1º de julho, o grande poeta agonizaria para martírio de si mesmo, de seus familiares e de seus muitos admiradores. Como uma invejosa megera, a morte o golpeara no crânio.
Pena está comigo desde a minha juventude, época em que meu amigo Bruno Ribeiro de Paiva, entusiasta dos seus versos, me apresentou à sua obra tão solar quanto cromática. Solar e cromática, sem embargo de ser musical, como se vocacionada a ser dita em voz alta, marcada pela cadência de redondilhas e decassílabos e por imagens tão imprevistas quanto belas e assertivas.
Num tempo em que muitos autores, pelos mais diversos motivos, abdicaram de ser memoráveis, Carlos Pena Filho é por excelência, no duplo sentido, um poeta memorável. Seus versos são fluentes e precisos e têm o esmalte de um incontornável iberismo. A sua musicalidade é onipresente e espontânea; e a sua musa, apolínea. Se, como afirmou Marcel Proust, o estilo não é uma questão de técnica, mas de visão, a poesia de Pena é uma espécie de grande lente pela qual surge um olhar que nos ensina novos pontos de vista para espaços e seres amados. É assim que traduz e interpreta a paisagem recifense e tropical, seus valores, sua luz, seus dilemas sociais. Foi assim que permaneceu entre nós.
A poesia de Pena é toda ela feita de água e de luz. Feita de uma água marinha, onde o poeta vai encontrar “sargaços”, “corais”, “praias”, “velas”, “ilhas”, impermanências e silêncios. Nos seus versos parece ressoar a ascendência portuguesa: o mar oceano o atrai e o encanta, assim como a claridade do Recife, uma cidade sempre a doer em nossos olhos como se espancasse todas as sombras.
Na vida real, mas ainda inspirado por essa luz ofuscante e vertiginosa, o poeta, ao tornar-se pai, não hesita, ao lado da sua jovem esposa, Tânia, em batizar a criança com um nome de eleição: Clara (praticamente um anagrama de seu nome). Eis num só signo toda a sua biografia, um nome-síntese, pois é à sombra da claridade (se não cometemos um infeliz paradoxo!) que se agiganta o terno olhar do poeta sobre a paisagem e os seres amados. Terno, sim, porque em Pena há uma permanente ternura. A ternura dos que querem compreender, dos que buscam trazer à luz a complacência da empatia. Até quando expressa angústia, esta lhe vem matizada de uma ternura apolínea, isenta de queixumes e lamentos sempre tão presentes nos autores líricos de todas as grandezas.
Pena, por tais características, como já sugeri em outro texto, estava se aproximando do limiar da lírica. Não por acaso em muitos poemas ele se afasta do uso da primeira pessoa, cedendo a voz à terceira pessoa, delineando assim um distanciamento, um olhar que toma distância, ainda que envolto daquela busca de compreensão de que falamos acima. É provável que, uma vez saído da juventude, enveredasse pelos caminhos de uma poesia mais social e mais coletiva, à qual, quem sabe, poderíamos chamar de épica, ou paraépica, da qual em vida se aproximou.
Consta que o poeta se sentia um pintor frustrado e daí ter se tornado um lírico que embriaga de cor a sua poesia. Como quer que seja, essa suposta “falta” é compensada pelo seu êxito em fixar imagens visuais (aqui, antes que me apontem uma redundância, observo que em Teoria da Literatura uma imagem não é necessariamente visual!). Enfim, se a cor e a água se encontram: é a aquarela. Se a cor, a luz e a água se tornam verbo: é a poesia de Pena — seus retratos, seus olhares, seu gosto por panoramas, seu amor pelo oceano, seu verso plástico e assertivo. Viva Carlos Pena Filho, o inspirado amante da luz tropical, o amoroso arquiteto da claridade recifense!
Perfeito. Só mesmo Paulo Gustavo, nem belo texto. Parabéns. Para todos nós.
Como admirador de Carlos Pena Filho, de quem memorizei vários sonetos, que poderia mais dizer, depois de uma análise tão aguda, tão rica, tão sensível do poeta? Absolutamente nada!
Tão bom quanto reler a poesia de Carlos Pena Filho, ler teu ensaio, Paulo Gustavo.
belíssima homenagem ao poeta azul: de cor intensa, salgada e molhada!
Agradeço muitíssimo a esses elogios tão “azuis” e generosos. Obrigado. Abraços