Hannah Arendt, em sua notável obra “As origens do totalitarismo”, diz, à certa altura, que, na ascensão do nazismo, as elites econômicas e a ralé se deram as mãos. É o que, salvo engano e guardadas as proporções, assistimos nas últimas eleições presidenciais e nesse primeiro ano de governo federal. Desapontado com a coalização PT-PMDB, que chegou ao poder após Lula acenar com paz e amor numa carta à nação, o eleitorado, em nome da anticorrupção e do antipetismo, optou por se inclinar à centro-direita. A Lava Jato, por sua vez, deu o tom moral para que se consumasse tal rumo. Não se contava, ao que parece, que a direita fosse ainda mais para a direita, incorporando o extremismo de ignorantes, boçais, fanáticos e dos agora autoproclamados “conservadores”, que orgulhosamente “saíram do armário”.
A ralé, assim, se viu muito bem representada pelo candidato vitorioso, que encarna como ninguém a extrema direita. Ele, como se sabe, tem (pelo menos por enquanto) um certo apoio popular, em especial entre aqueles que pouco se importam, por ignorância, revanchismo ou má-fé, com as pautas sociais das políticas públicas. Nem de longe, por exemplo, está posta na agenda do atual governo a questão da desigualdade social. Desigualdade que, como foi recentemente divulgado pelo IBGE, voltou a atingir um pico que nos envergonha e adia qualquer sonho de uma democracia mais consistente.
Enquanto isso, a ralé, que estava à espreita, sufocada nos seus anseios autoritários, abriu suas asas sobre nós, soprando seu ódio simplista, criando novas polarizações num país já há alguns anos polarizado. Eis que sobem ao proscênio os fundamentalistas evangélicos, os ressentidos em geral, os parafascistas, os políticos do chamado “baixo clero”, os oportunistas de plantão e por aí vai. A ralé foi subestimada e até ignorada, embora ela também seja filha das desigualdades extremadas que perpetua o vivermos sob o signo injurioso e injusto da casa-grande e da senzala. (Digo “também” porque ralé, para Hannah Arendt, é um conceito transversal às classes, independente dos extratos sociais e, portanto, pouco tem a ver com a pobreza e a miséria.)
Mas, aos trancos e barrancos, o atual governo já disse a que veio, exultando com a boçalidade em todos os níveis e em áreas sensíveis como a educação, os costumes e o meio ambiente. Pouco faz do que o País realmente precisa, mas faz muito ao dividir ainda mais uma sociedade já socioeconomicamente fraturada e doente, pois joga a imprensa contra o povo; evangélicos contra católicos; as instituições umas contra as outras. Desmontar é preciso, governar não é preciso. A ralé vibra porque, em sua cegueira, isso lhe dá a ilusão de que as coisas vão mudar a seu favor. A ralé vibra, porque à falta de argumentos, acredita no mito do “grande” líder, que, por sua vez, se escuda num patriotismo pueril e oportunista.
O circo de insanidades é de todos conhecido. Velhos pesadelos por vezes se camuflam em nomes de valores morais e cristãos: a censura é um deles; o ódio à arte, à ciência, à cultura é outro. A ralé, contra todas as evidências, é pré-freudiana numa “Era Freudiana”, como a chamou o crítico literário americano Harold Bloom, recentemente falecido. A ralé desliza numa Terra plana, se alimenta do frio prato da vingança e se arma dos pés à cabeça, na cidade e no campo; como ninguém, ela deseja o primado da força sobre o Direito (e assim que respeito terá pela Constituição Federal e por valores civilizatórios?). Deseja mais: deseja que o mundo continue polarizado, binário, reptiliano, primitivo como em tempos remotos.
Duas perguntas parecem se impor em tal cenário: Como desmontar o primado da ralé? Como desmontar a polarização? Diríamos: começando por varrer o simplismo, superando a lógica binária, sempre tão característica dos fanáticos e daqueles avessos, por natureza, má-fé ou ignorância, às nuanças e às complexidades do mundo atual (Cf. “El pensamiento dualista: ideologias, creencias, fanatismo”, de Francisco J. Rubia). Por isso, revanchismos de ambos os lados tendem a alimentar a fogueira das insanidades. As provocações se sucedem e se contaminam de parte a parte, sobretudo nas redes sociais. O fígado é mau conselheiro. Tripudiar sobre adversários nunca fez diplomatas, nunca aproximou pessoas ou nações.
O cerco aos radicais nada tem de fácil quando estes estão no poder. É preciso retirar as condições sobre as quais se apoiam, de onde, por assim dizer, deitam e rolam, fazendo seu tosco e perigoso espetáculo. O “nós contra eles” dos populistas de todos os matizes tem de ser apontado como permanente falácia. É preciso, pra citar Guimarães Rosa, deixar de “ver o mal em carne e osso”. Os messianismos só têm levado à morte e à destruição, o que existe, como escreveu o mesmo Rosa em sua obra, “é homem humano”. Sim, o nosso Guimarães Rosa, cuja literatura, tanto quanto a literatura de Marcel Proust, foi e é um permanente exercício de quebrar polaridades, de mostrar matizes, de fazer da dúvida um instrumento de melhoria e conhecimento do real. Assim, faço aqui minha humilde parte: para os que querem superar a polaridade, recomendo Rosa e recomendo Proust. Noutras palavras (e nisso, ressalto, não sou nada original), recomendo arte contra a barbárie e o obscurantismo. Arte contra a decadência até que as serpentes e lagartos voltem às suas tocas. A receita é velha, mas, na medida do possível, funciona.
Paulo Gustavo
Caro Paulo Gustavo,
Seu texto é uma beleza, de forma e de conteúdo.
Mas questiono as recomendações finais. Só se vence o fanatismo com o exercício da razão. E como pode nos ajudar nisso uma criatura que descrê do “bruxulear presunçoso” dela, e afirma que o maior propblema da humanidade é saber se Deus existe?
Quanto ao outro citado, com quem estou travando conhecimento só agora, motivado pelas suas referências, só encontrei, nas primeiras cem páginas do primeiro livro (No Caminho de Swann), sensaçõ0es, impressões, avaliações subjetivas, quase diria solipsísticas. Que têm elas a ver com o nosso drama?
Gratíssimo, Mestre Clemente, por sua leitura e seu comentário. Abraço grande