“Uma paródia para o novo presidente da CAPES, o criacionista Benedito Guimarães Aguiar Neto.”
Antes era o nada, o vazio absoluto. Deus flutuava naquela completa ausência, e padecia de um tédio incomensurável. Seus gestos e movimentos no meio do nada eram inúteis e desinteressantes. Para onde olhasse ou se deslocasse, tudo era nada, escuridão e silêncio completos, provocando solidão e uma infinita melancolia. Ao longo da eternidade, quando nem tempo existia, Deus tentava vencer o tédio brincando com o nada, suspirando ou soprando no vazio.
Numa dessas brincadeiras, Deus reuniu uma porção do nada na palma das mãos e, mesmo na ausência de algo visível, cuspiu sobre a concha fechada dos dedos, formando uma pasta viscosa. Deus sorriu, olhando aquela matéria primordial que, percebia, era uma grande novidade no meio do nada. Mesmo sem muito ânimo, Ele massageou a massa, criando uma bola macia e maleável. Satisfeito com aquele curioso objeto que acabara de produzir, Deus continuou brincando por mais uma eternidade, até que a bola secou e diminuiu. Quando perdeu o interesse, apertou a esfera com a sua força descomunal, quase como se a quisesse devolver ao nada. E, bumm! Uma assustadora explosão forçou a abertura da sua mão, e jogou uma luz forte no meio da escuridão, expandindo para todos os lados múltiplos pedaços da pequena esfera, que se deslocavam em grande velocidade.
“Que foi que eu fiz?”, perguntou-se Deus, assustado com aquele estranho, mas fascinante, fenômeno que se descortinava à sua frente: um universo de formas, luzes, cores e sons avançando sobre o nada e, desta forma, quebrando a monotonia da sua existência. Deus gritava e saltava de alegria, sorria o seu mais belo sorriso, acompanhava as surpresas dos movimentos e choques de corpos celestes, mais explosões e jogo de luzes. Percebeu que acabara de criar o universo, e se regozijava com a excepcional invenção, mesmo sabendo que não tinha sido exatamente esta a sua intenção.
Deus se alegrava com a imprevisibilidade da expansão daquela matéria pelo nada, das explosões que enchiam o espaço de belíssimas luzes e cores. Além da emoção, Ele observava o movimento, e percebeu um padrão naquela expansão da matéria avançando sobre o nada. Resolveu quebrar o padrão para provocar mais daquela adorável imprevisibilidade mas, cada vez que havia um distúrbio externo, o movimento recuperava o padrão. “O caos tem uma ordem”, pensou Deus, fascinado com o universo que, sem querer, acabara de criar. Ele entendeu que não podia nem devia interferir mais no movimento da matéria, que demonstrava uma clara e emocionante evolução natural e não controlada. Decidiu não mais intervir naquele curioso e interessante movimento de expansão. Seu supremo prazer era acompanhar a evolução e alegrar-se com as surpresas e novidades das mudanças no universo. Bastava agora flutuar no espaço que tinha sido criado, não mais o nada monotóno e sombrio, mas uma matéria em expansão e permanente evolução. Acabou o tédio e a melancolia divina. E quanto menos se envolvesse, maior a beleza e a emoção das transformações que aquela evolução iria oferecer à observação prazerosa de Deus. Quem sabe, levaria até, depois de alguns bilhões de anos de evolução, ao surgimento de espécies com vida e com pensamento, capazes de refletir e analisar a própria criação e os padrões de transformação da matéria, capazes de adorar o criador mas também de duvidar de uma vontade original e intencional de provocar a grande explosão e de formar a sopa primordial que deu origem à vida.
Meus cumprimentos pela alegoria, amigo Sérgio: bonita, bem construída e ferina!
Caro Professor Sérgio Buarque.
Sou leitora assídua da Revista Será, embora nunca tenha enviado um comentário, mas ao ler o seu artigo “Uma paródia para o novo presidente da CAPES…” quase que me senti obrigada. Parabenizo-lhe pela paródia mas, à vez, como pré-historiadora e pesquisadora Sênior do CNPq sinto uma grande preocupação do retrocesso científico/cultural em que o Brasil está mergulhando. Até onde? Até quando?
Digressão? Brincadeira? Sim, é peça de virtuosismo literário. O problema com essa brincadeira é saber se alguém que trate “deus” com fé religiosa conseguirá perceber a ironia e achar graça na brincadeira.
Sérgio, seu estilo refinado põe em cheque a opinião do presidente da CAPES, órgão que deveria cuidar do aperfeiçoamento do pessoal de nível superior. No centro disso, a Ciência, essa senhora exigente, deveria dar as cartas. Não a religião, campo de interesse e paixão individual, mas a dona Ciência, por seu método, sua lógica, seus testes, sua permanente aplicação da razão para explicar o que é possível explicar, e deixar sob investigação o que ainda não se pode explicar. Ao tirar a Ciência e a razão e tentar usar a crença e a fé em seu lugar, este senhor nos envergonha a todos os brasileiros que respeitam a fé alheia, mas não abrem mão de ter a Ciência e a Razão como guia das decisões coletivas. Parabéns.
Boa alegoria, Sergio. Postei-a a alguns amigos. Caos, com certeza. Quanto a estar associado a uma ordem, nunca saberemos. E se Ele continua tendo prazer em observar tal (des)ordem, certamente é um sádico…
Parabéns, Sérgio. Benvindo de volta à ficção
Cara Helga, um ponto precisa ainda ser esclarecido: a paródia não é contra os crentes de qualquer profissão religiosa, mas contra a adoção do criacionismo nas escolas, como se fosse ciência (“design inteligente” é apenas um novo rótulo).
Os deístas que continuem em paz com suas convicções, frutos, mais que tudo, de necessidades psicológicas. São os que optam pelos “confortos da desrazão”.
Lembro a posição do cientista americano Stephen Jay Gould, sobre ciência e religião, ao falar de “non overlapping ministeria”. Deus e almas imortais são do ministério exclusivo da religião, não objeto de investigação científica. Mas lembro também de Richard Dawkins, outra autoridade do mesmo campo. Este objeta que, sendo assim, a religião não deveria invadir o campo da ciência, o que faz ao proclamar os milagres: doentes que se curam a simples gestos, mortos que ressuscitam, etc. O criacionismo é também uma imbricação incabível da religião no campo da ciência, e como tal deve ser rejeitado.
Clemente, o texto do Sergio Buarque é brilhante, e nesse sentido usei “virtuosismo literário”, também pela fina ironia. Concordo com as tuas considerações, mas eu sou herética desde que fiz a primeira comunhão e não achei sangue de Jesus na óstia, e há muito concordo com Alain de Botton quando considera qualquer um com fé religiosa “slightly demented”. Pois é, estou polarizando, o que também é contraproducente e nem esqueço que Mussolini, antes de chegar ao poder e usar a igreja, foi autor da boutade “Se Deus existe, que me fulmine agora!” Minha única dúvida, ali no primeiro comentário, era se a parábola ia conseguir convencer algum criacionista que está fazendo uso político da religião. Que cada um tenha lá seu deus e sua preferência sexual. É o uso político da religião, o uso da religião junto com estratégia de tomada de poder e permanência no poder que temos que combater, desde os muçulmanos quando toleram o uso da religião islâmica na construção da califado do EI, até os cristãos que usam a religião em projeto de poder que não é de agora e tem vários formatos. Quem lembra quando tentaram impedir que Bertrand Russeil desse aula no Departamento de Filosofia do “College of the City of New York” por causa de uma campanha vil iniciada pelo bispo Manning da Igreja Epicospal Protestante? Uma batalha memorável dos 1930s para os 1940s, em que venceu a ciência. E nós nos anos 20 do século XXI…